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Publicado a: 17/01/2016

Orelha Negra: Negros como a noite

Publicado a: 17/01/2016

[TEXTO] Bruno Martins [FOTO] Direitos Reservados

 

Dezasseis de Janeiro de 2016 fica marcado como o dia em que o hip hop subiu ao palco do Grande Auditório do Centro Cultural de Belém. Não foi situação inédita, até porque os senhores desta noite eram repetentes nesta casa, inclusivamente no modo e no propósito com que se apresentaram perante mais uma plateia esgotada. Há quatro anos, Sam The Kid, Fred Ferreira, Francisco Rebelo, João Gomes e DJ Cruzfader, também tinham estado neste palco a apresentar os esboços já bastante compostos daquele que viria a ser o segundo disco dos Orelha Negra. Quatro anos depois, a receita foi a mesma: mostrar as canções do terceiro trabalho ainda sem data de lançamento marcada, mas que poderá surgir no arranque da Primavera.

Em 2016, os Orelha Negra são uma banda de reconhecimento nacional. Longe vão os tempos dos concertos em parques de estacionamento – e que boa é essa memória – ou no Musicbox ainda às apalpadelas à procura de algo novo. Hoje, repetentes no palco de uma das mais importantes casas de cultura do País, cruzamo-nos com jovens a usar caps de Run DMC e com senhoras de meia idade com casacos vison para combater a noite fria de Janeiro ali junto ao Tejo. Reconhecemos na plateia, com cadeiras instaladas até ao palco para se ter a certeza que o maior número possível de pessoas assiste à primeira apariação em público das novas canções do quinteto, DJs e beatmakers e também conhecidos fadistas da nossa praça. O que leva toda esta esfera geracional e social ao CCB?

O grupo volta a desafiar-nos. Convida-nos a sentar e a escutar, apenas. Desarmados, sem conhecermos um acorde, um sample, um scratch ou um riff que seja do que vai ser tocado. Vamos desarmados, mas disponíveis. Preparados para ser surpreendidos qb. Não vamos às cegas nem nada que se pareça, porque, por muito amplo que seja o espectro sonoro dos Orelha Negra, por muito reduzidas que sejam as fronteiras musicais do colectivo, os dois discos e as duas mixtapes serviram para perceber com que linhas é que estes músicos se cosem: hip hop, soul, funk. Música de raiz negra.

Se o primeiro disco foi uma apresentação clara as intenções deste verdadeiro pingue-pongue musical entre dois DJs – um nos pratos e scratches, outro nos samples e MPC – com uma bateria, um baixo e teclados; o segundo trouxe-nos um maior experimentalismo e uma breve incursão por territórios brasileiros psicadélicos. Em 2016, ao terceiro disco, os Orelha Negra voltam ao radar americano. Sam The Kid, que, com o seu trabalho de digging nos samples, costuma ser o motor de ignição e a roda pedaleira para os ambientes, terá voltado a agarrar-se à sua colecção de clássicos da música negra norte-americana – que devem ser datados algures entre o fim da década de 1960 até ao início dos anos 2000.

A música é o combustível de sempre. Nem um único microfone de voz se encontra no palco. São 21h19 quando vemos os primeiros vultos no palco do CCB. Por detrás de uma espécie de véu, surgem os cinco, na disposição a que já nos habituaram: do lado esquerdo do palco – de quem está de frente para o palco – temos os dois DJs. A meio, como um condutor de orquestra a olhar nos olhos, a sorrir, a levantar o braço para apontar tempos, breakbeats, avanços e recuos, está o baterista. Do lado direito, baixo e teclados. Todos eles com os seus bonés, à excepção de João Gomes – que exibe orgulhosamente uma carapinha ao estilo soul power. Lançam um tema meio ambient, de tonalidades escuras a aproveitar o véu que ajuda a construir um jogo de sombras. As primeiras palavras sampladas são de Maria de Lurdes Modesto (obrigado, motores de busca!). “Pega-se na vida. Bate-se a consciência do dever cumprido com a saudade. Junta-se coragem. Salpica-se de alegria, lágrimas, ternura e orgulho. É indispensável uma dose de conhecimento das realidades circundantes para enriquecimento do paladar. E já está. Pode-se servir todos os dias pela vida fora. Bom proveito, meus amigos.” Vamos a isso.

Começa o serviço de cerca de uma hora e quinze minutos que nos faz perceber que o grupo está a tocar cada vez melhor. Chega a ser impressionante a química que existe já entre os cinco elementos numa altura em que o disco nem sequer estará finalizado. Cada canção é já um verdadeiro trabalho de filigrana, rendilhado hip hop, fazendo-se notar uma maior massa sonora que sai das colunas e um trabalho ainda mais colectivo na construção dos temas. O virtuosismo e a execução sublime de cada um com conta, peso e medida, a surgirem nas alturas exactas quando a música assim exige e ficamos com a certeza de que os Orelha Negra estão de volta à raiz negra quando ouvimos batidas clássicas de hip hop, vozes que gritam “break it down” por entre puro scratch; ou quando Sam The Kid dispara coros gospel pesadíssimos e cheios de volume e paixão que choram: “I wanna be ready/I wanna be ready/I wanna be ready/Ready to put on my long white robe”.

Os cinco músicos oscilam, dançam, back and forth, sincronizados. A plateia, impressionada e sorridente, acompanha. As cadeiras do CCB deverão ter de levar uns apertos nas bases para voltarem a ficar seguras. Ainda mais quando salta uma batida a piscar o olho ao rock – lembramo-nos de “We Will Rock You”, dos Queen, mas sem Brian May a solar na guitarra. Surgem mais ritmos pesados, grandiloquentes, Francisco Rebelo a acrescentar tonalidades ainda mais graves aos saxofones baixo ao estilo Morphine que Sam The Kid vai disparando. Estão mesmo mais negros! Daqui a pouco descem seis bolas de espelho, redondas, e já percebemos o que aí vem: as influências do disco sound de Detroit – referências que a banda já tinha beliscado, por exemplo, em “Round 4 Round”. E voltamos ao hip hop clássico, com um sample de voz de Notorious BIG (“It was all a dream”).

Entramos então na recta final. Sem saber nomes de faixas, sem termos quaisquer referências ou explicações da parte da banda, que continua sorridente. Pudera: não se nota uma falha – e podia falhar tanta coisa… As únicas conversas com a plateia são feitas apenas através de vozes pré-gravadas: “Façam barulho!”

Sai mais um pequeno brinde para a plateia do CCB: duas breves versões de “Bitch Don’t Kill My Vibe” – de Kendrick Lamar – e outra da faixa do momento, “Hotline Bling”, de Drake. Bastava uma mini-dica vinda do palco que saltaráimos todos sem hesitar das cadeiras para dançar. Para encore, um regresso ao passado, com “961 919 169”; “Throwback”, do segundo álbum, e “M.I.R.I.A.M.”. É mais uma ajuda na definição daquilo que serão os Orelha Negra em 2016: uma banda que volta a piscar às sonoridades da Motown ou Stax. A julgar por esta primeira apresentação, será um trabalho mais rico, também mais complexo, mas que despertará a curiosidade e vai convidar à descoberta de todas as camadas que os cinco músicos vão criando.

Dia 30 de Janeiro repete-se a dose no Hard Club, no Porto.

Espreita aqui a fotoreportagem de Vera Marmelo: “Sete fotos de Vera Marmelo na noite dos Orelha Negra no CCB”


 

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