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Fotografia: Duda Las Casas
Publicado a: 23/08/2022

Devastei o Meu Jardim por Você já circula.

Onde raio é que estavas quando Érika Machado vivia ao pé de ti e nem reparaste?

Fotografia: Duda Las Casas
Publicado a: 23/08/2022

Agora sob o seu próprio nome, a cantautora e artista visual brasileira residente em Lisboa acaba de lançar um mini-álbum de canções-miniatura em que surge no auge das suas muitas virtudes, fazendo parecer umas coisas, mas dando-nos a descobrir outras conforme vamos retirando uma camada de cima da outra. Vai sendo urgente atentar nela, pois o que tem para nos dar é mesmo muito bom. E importa até fazê-lo porque, se por cá ainda não é conhecida (sendo famosa no Brasil) deve-se isso muito à xenofobia e à misoginia portuguesas, que lhe travaram a carreira.

Vive em Portugal uma das cantautoras e artistas plásticas mais cativantes que surgiram no Brasil nas últimas duas décadas. Veio para fazer um mestrado e um doutoramento na Universidade de Coimbra e por cá ficou, em Lisboa, para se afastar de gente tenebrosa como Temer e Bolsonaro e porque aqui encontrou o amor. Famosa no seu país, e muito especialmente no estado de Minas Gerais, com vários discos lançados, prémios ganhos, colaborações com Milton Nascimento, Pato Fu e outros tantos, não parou a sua actividade em terras portuguesas. Poucos repararam, no entanto, pois o seu nome ficou escondido por detrás do do projecto Spicy Noodles, que por cá lançou um álbum homónimo (Lux Records) em 2020. É agora, e finalmente, em nome próprio que Érika Machado se afirma deste lado do Atlântico, com um mini-álbum que tem por título Devastei o Meu Jardim por Você.

A edição marca o final de um projecto que foi apoiado pela Ibermúsicas e que teve como título Como é Que Faz?. De Fevereiro a Abril deste ano, Érika Machado foi fazendo directos pelo Instagram para mostrar como é que cria as suas canções, do momento da composição ao da produção (partilhada com mestre John Ulhoa, que fez a mistura e a masterização do disco) – destas canções para ser mais precise, aquela que dá título ao pequeno CD e as restantes duas, “Mandinga” e “Maria Joana”. O lançamento público aconteceu no passado domingo 21 de Agosto, com dois extras, um concerto online e um videoclipe de “Mandinga”, realizado pela própria. Este final apresenta-se como um princípio para o resto que aí vem: há um álbum na calha, para daqui a não muito tempo, e a possibilidade de esta natural de Belo Horizonte continuar com o mesmo formato que agora estreou, de mini-álbuns, com a edição de outros volumes.

E que formato é esse? O de canções-miniatura que pouco passam de um minuto, numa fórmula de aparência hiper-pop justificada por este tempo de short attention span, provocado pelo imediatismo das redes sociais e da cada vez maior velocidade da era digital em que vivemos. Claro que, com Érika Machado, esta questão vem com toda a ironia, senão mesmo com sarcasmo: o factor pop e adolescente é uma capa, uma bonita camada externa que cobre outras que somos convidades a levantar, uma a uma, para descobrir o que mais se esconde debaixo do que se julgaria superficial. 



As letras têm segundos e terceiros sentidos, falam-nos afinal – nas entrelinhas do que numa primeira audição parece inocente – de sérias questões sociais, políticas e existenciais. Umas tendo que ver com o Brasil fascista, racista e homo-transfóbico de hoje, de um Portugal cada vez menos simpático (como por exemplo a xenofobia antibrasileira e a misoginia que aqui Érika encontrou e lhe bloquearam, inclusive, a carreira artística – quem escreve este texto tem testemunhado isso mesmo em primeira mão) e de um mundo que se diria em já irremediável descontrolo. A música conta com melodias descomplicadas que depressa entram no ouvido, mas a electrónica por baixo da voz tem uma condição experimental que nos faz lembrar figuras como Éliane Radigue ou Morton Subotnick.

E como não podia deixar de ser, Érika Machado faz acompanhar a música com a sua arte visual, cuja tem exactamente as mesmas características. A capa de Devastei o Meu Jardim por Você mostra uma menina, que depressa percebemos ser a autora, de ar cândido mas armada com uma tesoura, cortando as flores que a rodeiam com uma subtil alusão de crueldade. Em outra imagem de divulgação do CD encontramos a mesma menina, mas desta feita com dentes de vampiro. O exemplar que me calhou está acompanhado por um cartão em que Érika surge com enormes olheiras e a legenda “eu adoro um drama”.

Vai sendo mais do que altura de atentarmos nesta mineira tornada alfacinha. Como agora mais uma vez se confirma, o que tem para nos mostrar é de uma qualidade muito, mas mesmo muito, acima da média, chegando a ser surpreendente e desconcertante e obrigando-nos a fazer algo que a humanidade parece estar a perder: vislumbrar o que está mais adiante, descobrir, ter uma percepção activa, pensar, ter espírito crítico.

Brincando com uma frase-modelo que vamos encontrando pelas paredes de Lisboa, tipo “onde estavas na greve dos enfermeiros?”, apetece deixar esta a quem ainda não ouviu a Érika: “Onde raio é que estavas quando a Érika Machado vivia ao pé de ti e nem percebeste?”.


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