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Fotografia: Afonso Martins
Publicado a: 03/01/2019

Matrafona é o título do novo EP da produtora lisboeta.

Odete sobre Matrafona: “Quis apropriar-me de algo tão ofensivo para uma miúda trans como eu”

Fotografia: Afonso Martins
Publicado a: 03/01/2019

Durante o último mês de 2018, Odete, artista multidisciplinar lisboeta, lançou o EP Matrafona pela naivety, sub-editora da naive.

É visível – ou audível – o modo como Odete aglutina reggaeton, batidas sincopadas dos mais variados tipos, noise, vozes chipmunked, techno, industrial ou música erudita numa amálgama coesa e bem fundamentada. O sampling sente-se como a peça central neste trabalho e é impossível ignorar a vertente instrumental de Odete, que tem um background de música erudita, tendo aprendido – e aqui gravado e utilizado – flauta transversal e outros instrumentos. Quando terminamos de ouvir o projecto fica também patente a intenção de jogar em paralelo com som e identidade de género, daí o título provocatório e a música incatalogável, muito por culpa da natureza experimental do trabalho.

Num período marcado por um estado de espírito mais instável – como refere no Bandcamp –, Odete apresenta o seu primeiro projecto pela naivety com uma visão sólida e bem delineada, independentemente do modo como o faz. A produtora falou com o Rimas e Batidas sobre música erudita, o sampling, “xs destruidorxs do patriarcado” Stasya e GYUR e o futuro mais visual de Matrafona.



Como surge o Matrafona e a tua relação com a naivety?

A minha relação com a naivety é basicamente proveniente da minha relação de amizade com a Violet. Ela apoiou-me desde sempre, convidando-me para a Rádio Quântica e motivando-me. Quando lhe disse que tinha feito um EP, ela sugeriu lançar e eu aceitei! E, na verdade, fazia todo o sentido com o espírito da sub-label da Naive: algo que não fosse tão sério no sentido tradicional, ou seja, que não estivesse preso a uma ideia de composição ou de sonoridade já compreendida e distribuída. Algo mais descomprometido com a expectativa – quase que provocando uma sillyness no sentido de romper com um “good sense” ou uma sanidade musical que se parece propagar infinitamente na música de clubbing mais ouvida. Algo mais absurdo e perturbado e, simultaneamente, cute. Estou a falar da naivety mas também do EP! Sempre foi essa a minha intenção com estas músicas: brincar um bocado com a minha própria experiência de clubbing e de ouvir certos géneros musicais, até que todas as referências se tornassem uma caixa de ferramentas, um playground. E é também daí que vem o título Matrafona – porque não só queria apropriar-me de algo tão ofensivo para uma miúda trans como eu, mas também jogar com o símbolo e o ícone que a matrafona representa. Se formos ao Norte de Portugal, uma matrafona é uma personagem de Carnaval que pega em referências de vestuário feminino e as corta e cola de maneira “silly“, absurda, até que se deixe de perceber qual a identidade da pessoa.

Ao longo do teu EP surgem várias vezes sons de violinos ou de instrumentos de sopro. Tens alguma relação especial com estes instrumentos ou com a música clássica?

Eu estudei flauta transversal durante seis anos, numa escola de música do Porto. Não só estudei flauta, como tive aulas básicas de formação musical e coisas assim que eles nos obrigavam a ter para acompanhar as aulas de instrumento. Dito isto, todos os instrumentos de sopro que aparecem no EP são gravações que fiz propositadamente para as tracks! Agradeço mesmo ter tido essas aulas porque me abriu um mundo do qual retiro muita coisa hoje. Hoje em dia ouço pouco daquilo a que chamas “música clássica” – ouço quase como fetiche histórico e acho também que é assim que uso certos instrumentos ou melodias. Uso-as para compor uma espécie de universo, ou pelo menos para dar um certo vislumbre, que é ahistórico (se é que esta palavra existe). Os violinos aparecem como referência romântica e burguesa, corrompidos por synths de maneira a estabelecer esta ponte entre o que sonho e o que estou a ser agora. Quase como se me servissem para uma fantasia que é massacrada pela contemporaneidade da electrónica.

sampling nota-se como um ponto central na tua produção. Quais foram os teus processos de produção e que máquinas usaste no Matrafona?

AHHHH SAMPLING! Sim! Sampling é uma das bases do meu trabalho. Não só de sons que arranjo pela Internet, como packs que amigos me dão ou mesmo coisas que gravo com um gravador. Há uma track específica em que eu quis tornar isso muito claro – que o sampling era a base do meu trabalho – que é o “All My Selves Fucking Each Other”. O que fiz foi recolher e gravar sons de vários períodos em que me interessei por compor e colocá-los todos a roçar-se numa track – desde a flauta transversal, aos bongos, aos samples de motas, etc. Tudo isso representava para mim um interesse e uma fase específica. Então deixei que o processo de sampling e colagem de coisas se tornasse evidente e se permitisse ser também uma brincadeira autobiográfica. Eu usei um gravador ZOOM, Ableton e um Nano Kontrol. Simples :D.

Fala-nos desta “Runaway As A House”. É capaz de ser das faixas mais sugestivas tematicamente, principalmente pelo uso destes samples.

Sugestiva do quê? Eu usei samples de Rupaul, se é disso que falas :P. Uma das minhas preocupações neste EP era a falta de linguagem quanto ao meu corpo queer, trans. A falta de comunidade. E como essas duas faltas quase que se interligam. Quando eu fiz esta track eu não parava de pensar na história de práticas queer que sempre foram “neglected” e que não foram escritas como sendo história, história performativa e oral. Falo de coisas como runway e desfiles (a prática de slaying the HOUSE DOWN com um simples andar, selling them clothes and them body) e a prática da cultura de ballroom que era criar uma casa, uma “house“, que era entendida como a família que cada um cria para além do sangue e que estará lá para te apoiar e para te ajudar. Ainda que eu não faça parte dessa ballroom culture, não deixo de entender esse conceito e prática de comunidade que é uma “house” como algo que nunca é escrito como fazendo parte da nossa história enquanto pessoas sem lugar. Daí o título e, talvez, daí os samples de que falas.

Neste EP tens remixes de Stasya e GYUR. És muito individualista na tua produção?

Not really. Eu convidei outras pessoas, mas nem todas conseguiram confiar em si próprias o suficiente para fazerem e entregarem o remix (o que não significa que não lançarão os remixes no futuro) – coisa que percebo perfeitamente. Stasya e GYUR são artistas mesmo muito underrated que eu acho que são dxs melhorxs aqui em Lisboa e aproveitei para lhes dar alguma plataforma que elxs merecem. As outras pessoas são também artistas underrated que eu adoro e que acho que fazem todo o sentido com aquilo que estou a fazer. Falo do Yizhaq, da Fylha, Kerox, etc. QUEM SABE NÃO VIRÁ UM EP DE REMIXES, QUEM SABE.

Com que artistas gostarias de trabalhar no futuro?

Ui, hard question… Eu adoraria trabalhar com a Violet, mas ela está tão ocupada que pronto… Esperarei uma altura melhor. Adorava fazer algo com o Kelman Duran ou com a 8ULENTINA, duas pessoas cuja música me inspira.

Tens intenção de integrar vídeo ou algum trabalho visual neste EP? Tendo em conta a tua multidisciplinaridade, poderia fazer sentido!

TENHO E ESTOU A TENTAR ORGANIZAR-ME PARA CONSEGUIR FILMAR. MAS COM CALMA QUE ESTA GENTE É TODA MUITO PARTIDA E OCUPADA E DEPRIMIDA <3.


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