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Fotografia: Inês Subtil/Vera Marmelo
Publicado a: 14/04/2022

Na impossibilidade de se explicar, veja-se e ouça-se.

Odete + Ece Canli: “Uma das coisas que nos estimulou foi essa procura de onde é que a linguagem falha”

Fotografia: Inês Subtil/Vera Marmelo
Publicado a: 14/04/2022

Não passou em nenhum noticiário, mas um portal foi aberto na Ribeira Grande, cidade na ilha de São Miguel, na quinta-feira passada. A sua localização exacta? O Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas, local que agradaria certamente a Nathan Bateman. No entanto, fica o aviso: se se dirigirem neste momento ao local, não vão encontrar qualquer vestígio desta ocorrência. E onde vamos dar quando por lá passamos? Ninguém sabe bem ainda, porém, pode-se atribuir a culpa desta abertura às investigadoras do som Odete e Ece Canli, que voltam a desafiar as leis da física esta noite no gnration, em Braga, e amanhã no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa.

Alguns dias depois desse primeiro acontecimento no Tremor, ligámos-nos pelo ZOOM para perceber com as próprias que fenómeno inexplicável (inenarrável talvez seja mais acertado) foi este e o que podemos esperar das suas repercussões.



Quando tempo estiveram em residência nos Açores?

[Odete] Para aí oito dias.

Qual foi a base de entendimento inicial para começarem a criar em conjunto?

[Odete] Nós não nos conhecíamos, basicamente. E o que aconteceu foi: nós conhecemo-nos nos Açores no primeiro dia da residência, assim mesmo tudo acelerado, e o que nós fizemos foi começar a conversar, perceber as nossas referências, o que é que havia em comum, o que é que dava para fazer a ponte e fizemos esquemas de uma possível narrativa. Eu vinha com esta narrativa/história que lhe propus. Eu tenho um macro-projecto de escrita e queria usar esta colaboração para aprofundar um bocadinho uma zona da ficção que envolvia uma personagem que ia numa jornada para uma gruta e perdia-se dentro da gruta. E a gruta depois tinha assim umas secreções psicadélicas e a personagem ficava mesmo perdida lá dentro porque absorvia a partir da pele essas secreções, essa humidade psicadélica, e acabava por ficar completamente perdida-

[Ece Canli junta-se à conversa]

Tínhamos começado há relativamente pouco tempo. Não sei se queres acabar o teu raciocínio, Odete, desculpa a interrupção.

[Odete] Era essencialmente isso. Essa história serviu como ponto-de-encontro para começarmos as duas a experimentar sonoramente essa narrativa. Foi esse impulso inicial.

Não se conheciam, mas já tinham ouvido a música uma da outra?

[Odete] Já tinha ouvido [a música da Ece]. Mas uma coisa é tu conheceres a música de alguém, outra coisa é saberes como é que a pessoa é, como é que ela trabalha…

E foram fazer esse trabalho de casa quando receberam este desafio?

[Odete] Eu já conhecia. Quanto a ti, Ece, não sei [risos].

[Ece Canli] Conhecia a música, sim [risos]. E conhecia o tipo de trabalho que ela estava a fazer. E também temos muitos amigos em comum.

A Odete falava desta história que tinha trazido no início. Como é que foi olhar para isso e partir daí, Ece?

[Ece Canli] Estavas a falar sobre o texto, Odete?

[Odete] Sim, eu estava a contar que tinha esta ideia, partilhei-a contigo e depois nós estivemos a criar juntas o esquema do que é que seria. Mas, no fundo, o que nós fizemos não foi necessariamente… eu não trouxe uma história escrita e a Ece compôs som, não foi isso que aconteceu. Eu tinha uma ideia muito abstracta de uma narrativa para podermos ter alguma coisa para trabalhar juntas e a Ece disse, “ah, ya, bora”. E depois começámos a debater uma série de referências que tínhamos e começámos a fazer um esquema, impulsionadas pela ideia de ter uma narrativa. E foi um bocado isso.

[Ece Canli] Sim, porque também é difícil sem conhecer. A Odete trabalha muito com narrativas mais conceptuais e precisávamos mesmo desses momentos, [e de perceber] o que significa este tipo de som. Não [podia ser] improvisar só por improvisar. Queríamos mesmo ter uma base. Depois fizemos momentos e cada momento significa-

[Odete] Uma fase da narrativa, uma sensação, um objectivo. Foi muito assim que nós trabalhámos e estruturámos o processo de criar este esquema de coisas, que no fundo era uma partitura super detalhada. Depois foi tentar converter essa partitura em som. Não nos conhecíamos, foi um processo de tentar conhecermo-nos uma à outra através dessa passagem para o papel das nossas referências e aquilo que nós queríamos e para poder perceber um bocadinho qual é o mundo da outra. Foi um bocado world building. Aprender a construir um mundo conjunto a partir dos nossos próprios mundos.

A residência aconteceu nos Açores. Só foi aí que estiveram juntas a trabalhar, certo?

[Ece Canli] Sim, em Dezembro.

Costuma-se dizer que existe um sentimento ligado a esta questão de se estar numa ilha. Vocês sentiram esse impacto?

[Ece Canli] Sim, muito [risos]. Fomos em Dezembro e estava a chover muito. Essa escuridão reflectiu-se muito no trabalho e na narrativa que estávamos a criar. E estávamos na Ribeira Grande, que é mais isolado. Quer dizer, não é a capital.

[Odete] Acho que tanto eu como a Ece nos tornámos esponjas do lugar, veículos para canalizar tudo o que se passava à nossa volta, não só o contexto do COVID como o contexto da ilha ou as nossas vidas pessoais. Todos os contextos foram-se acumulando e transformados nesta peça.

Fazendo um parênteses, eu acho que a ideia do lugar também é uma ideia muito presente no trabalho porque a ilha o que nos permitiu não foi só um lugar geográfico como [deu-nos] um estado. E a Ribeira Grande é um estado muito particular [risos]. Acho que nos tornámos um bocadinho afectadas, no bom sentido, por todos esses estares, por todos esses lugares, pela chuva, pelo cinzento, pelo mar à volta, pela dimensão meia que rural, meia que isolada, meia que urbana. Assim um limbo quase. A Ribeira Grande era um lugar numa encruzilhada.

[Ece Canli] E a narrativa começava num tempo muito muito passado mas também tinha uma cena quase futurística, e acho que a ilha tem essa cena.

[Odete] Todas essas dimensões temporais marcaram-nos em termos de experiência. Não é que nós queiramos, não foi uma coisa que nós necessariamente procurámos, foi uma coisa que se fez presente no nosso corpo e na nossa maneira de processar aquilo que queríamos.

[Ece Canli] Estávamos fazer muitas improvisações e a parte “Montanhas” — demos nomes aos momentos — chegou a ter sons do ambiente e é muito mais folclórica mas misturada com beats (o presente).



Pude assistir a parte desta performance no Tremor e uma das coisas que me deixou mais curioso foi o posicionamento que escolheram para cada uma na sala.

[Odete] Nós queríamos envolver as pessoas. Queríamos que esta cena do lugar fosse mesmo uma coisa. Queríamos puxar pela escuta mais do que pela dimensão de “isto é uma coisa de palco e vocês estão a ver-nos fazer alguma coisa lá”. E à partida criar duas frentes já faz com que haja uma confusão de perspectiva. Já não te sentas e vês uma coisa. Já envolve engajamento, pelo menos de vista. E de repente, como aquilo é um quadrado, tu pores uma pessoa num lado e pores outra pessoa do outro quase que intuis… é uma espécie de sugestão que o público preencha o resta e esteja ali connosco. Parece-me um modus operandi mais convidativo do que a dimensão de “está aqui uma coisa e vocês sentam-se a ver essa coisa”. Foi uma tentativa nossa de criar uma bolha, um ambiente de escuta. Podemos ter sido mal sucedidas, mas tentámos [risos].

[Ece Canli] E também estava a pensar: quisemos quase criar ilhas. Por acaso, no início queríamos ficar mais no centro e o público à nossa volta, mas por causa de coisas mais práticas, como a quantidade de pessoas na sala e o som, sentámo-nos a discutir como podíamos criar essa ilha. Muitas coisas que fazemos no concerto é quase uma conversa, damos muito espaço uma à outra. E é fixe mudar o foco do público: eles podem seguir visualmente.

Sinto que vocês são muito ponderadas nas ferramentas que usam, por isso queria perceber que material é este que usaram na performance. Estavas a usar o Novation Circuit, Odete…?

[Odete] Era o Ableton Push.

E a voz e a flauta transversal. No teu caso, Ece, o que usaste?

[Ece Canli] O meu instrumento principal é a voz, claro. Estava a usar microfones e pedais para processar. E trouxe dois sintetizadores. É isso, basicamente. Isto também foi muito interessante para nós porque juntamos… eu faço tudo em analógico e a Odete usa muito software. E juntámos estes dois poderes, digamos assim [risos]. E aquilo que eu não conseguia fazer ao vivo a Odete conseguia. E vice-versa.

Depois da estreia no Tremor, vão ter mais dois concertos, um no gnration, em Braga, e outro no TBA, em Lisboa. O resultado final não vai sofrer alterações em relação ao que aconteceu na Ribeira Grande ou vão deixar espaço para isso nestas sessões que aí vêm?

[Odete] Não temos tempo de mudar nada porque é literalmente depois de amanhã [a entrevista aconteceu na terça-feira, dia 12 de Abril].

Podia existir algum espaço para improvisação…

[Odete] Eu não corro esse risco no sentido em que não há tempo. Não me sinto segura para estar a improvisar sobre aquilo, principalmente quando há outra pessoa envolvida. Claro que eu e a Ece podemos estar e ir improvisar, mas há um cuidado para com o público também, creio eu, não quero estar ali a maçar as pessoas com as nossas improvisações. Se não é uma coisa que está trabalhada, eu não gosto de improvisar só por improvisar neste contexto. A não ser que seja explícito que o estejamos a fazer. Como não é, prefiro não fazer. Mas quem sabe no futuro se isto não vai para outros sítios.

[Ece Canli] Exacto. Em termos de tempo não podemos explorar muito, mas depende o que cada espaço tem [para nos dar]. Nós adorámos o Arquipélago. O que podemos fazer é trazer outro tipo de luz, por exemplo. Podemos talvez explorar um pouco o som quadrifónico porque usamos quatro colunas de PA e até estávamos a pensar no Arquipélago também brincar com a sonoridade. Fazer quatro canais. Não sei se temos tempo [risos]. Talvez estas coisas possamos explorar mais um pouco mas em termos de staging e material não vamos mudar muito.

[Odete] Mas claro que não quero fechar a coisa. Pode acontecer. O TBA é aqui ao lado de minha casa, quem sabe se eu não levo o resto do meu material e não estou lá… quem sabe.

Estão a pensar em editar isto de alguma forma?

[Ece Canli] Não pensámos nisso, mas depois do concerto recebemos esse feedback. “Ah, ok, vocês têm um álbum e tem que ser editado” [risos]. E depois pensei, “seria fixe porque até podemos desenvolver mais alguns materiais”.

[Odete] Eu sou uma pessoa que gosta muito da música performada e tenho de pensar muito bem que música é que edito. E tenho pensado cada vez mais o que é que significa para mim editar música. No outro dia estava a ver o Sun Ra e a perceber qual é a importância do modo performativo, da roupa, da luz e da presença em palco para a música. E estava a comparar as duas coisas, os discos e as performances, e a perceber que são coisas radicalmente diferentes. E entender como é que isso me afecta, o que é que me faz sentido. Este trabalho é tão performativo, vive tanto da nossa presença e do nosso corpo, que se ele fosse editado teríamos que pensar muito bem como iríamos fazê-lo.

[Ece Canli] Concordo totalmente. No meu trabalho a solo, e no teu também, Odete, temos os nossos álbuns, mas acho que cada concerto dá outra vida ao material por causa dessa performatividade. Se editarmos algo vai ser mesmo diferente daquilo que fizemos no palco.

Para finalizar, e tendo em conta o trabalho de investigação musical e não só que ambas têm feito, existe alguma ideia/manifesto que gostavam que não se perdesse na transmissão para quem vos vai ver e ouvir?

[Odete] Eu acho que há muitas ideias… para mim é muito difícil falar às vezes de música e do que é que as pessoas vão retirar da experiência sonora. Retirar no sentido intelectual do termo. Para mim o que é quase mágico nesta experiência que fizemos as duas é que sinto que aquilo que se retira — e também pelo feedback que fui tendo — depois não é nada palpável. Não é mesmo palpável. Não é fácil de narrar. Mesmo para mim a experiência do concerto, de o fazer, não é facilmente narrável. Eu acho que se há alguma coisa para retirar disto é mesmo a incapacidade de falar sobre ela. E acho que isso em si é uma potência, mesmo.

[Ece Canli] O feedback mais fixe e bonito que ouvi foi: “vocês abriram um portal”. É interessante porque era isso que nós queríamos fazer exactamente. Qual portal? Para onde? Não sei.

É difícil pôr-se por palavras, é verdade. Se era esse o vosso propósito, foi cumprido.

[Odete] Acho que sim. Até porque, não sei se terei revelado demasiado, Ece, mas pensando naquilo que nos impulsionou no início da narrativa… a personagem, a um certo ponto, perde capacidade linguística, ela perde capacidade de perceber a realidade, de a narrar. Começa a perder-se, a dialogar dentro de si, e acho que essa sensação ficou muito na peça. E é fixe porque no fundo foi uma das coisas que nos estimulou, essa procura de onde é que a linguagem falha, quando é que é impossível narrar alguma coisa. E é bom termos conseguido isso de alguma forma [risos].

[Ece Canli] É uma perda de linguagem, mas abre outro tipo de comunicação. Linguística pós-linguística. E acho que a música também tem esse poder.


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