pub

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 28/12/2021

“Como a África do Sul salvou o deep house” seria a tirada possível, mas é mais invenção criativa do que realidade. Esta sonoridade viajou muito, num vaivém entre as Caraíbas, Durban e Soweto, mas foi pela Nigéria que chegou ao resto do mundo.

O som do amapiano: de onde veio, onde está e para onde vai?

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 28/12/2021

Amapiano ou “como a África do Sul salvou o deep house” seria a tirada possível, não fosse esta totalmente falsa; percursos completamente díspares e uma tendência para ocidentalizar toda a expressão cultural. Esta sonoridade viajou muito, num vaivém entre as Caraíbas, Durban e Soweto, mas foi pela Nigéria que chegou ao resto do mundo.

Já não é novidade para ninguém: a África do Sul tem cartas para dar na música, seja em que expressão (preferencialmente das ditas com alma) for. Ora pelo trompete de Hugh Masekela, ora pelo ritmo mbaqanga, popularizado enquanto jive ou gumboots por Paul Simon no mítico Graceland, ora pela sua pop inebriante que nos anos 80 afirmava a sede de mudança contra o regime racista, retrógrado e desumano do Apartheid. Mais recentemente, nomes como Black Coffee, Sho Madjozi e DJ Lag já ressoam entre as playlists dos serviços de streaming e a cena jazz das várias cidades chega a bandas sonoras de filmes e às editoras de tastemakers como a Brownswood Recordings, de Gilles Peterson. É, indubitavelmente, um mercado que exporta tendências, e já o é há cerca de quatro décadas, pelo menos.

A sede de liberdade era catalisadora e um ponto em comum dos mais antigos dos supracitados, assim como dos artistas que faziam da pop a sul do verdadeiro Velho Continente, que se inspiraram nos ritmos zouk e dancehall das Caraíbas para dançar e espantar as maleitas. Esta pop, não raramente chamada “boogie” ou “bubblegum”, faz parte do caminho que nos leva ao tópico deste texto. Nesse contexto apareceriam lendas como Don Laka e Benjamin Ball, ou, mais tarde, os apurados V.O., cuja malhona (perdoem-nos o termo, mas não há outro que faça justiça) “Mashisa” ainda parte soalho nos dancefloors, e Thami Mdluli (produtor de dezenas de hits que se afirmaria a solo enquanto Professor Rhythm e seria trazido de novo à ribalta por via da Awesome Tapes from Africa).



Se os primeiros soavam ocidentalizados, o som distintivo de África impregnava tanto o famoso EP de V.O. como as peças de Mdluli. Ainda que as batidas fortes das Caraíbas e das Antilhas pesassem no ritmo, os arranjos vocais transportavam o que faltava em latitudes pop mais nórdicas, um traço comum das expressões negras abaixo do equador, e os sintetizadores afirmavam-se como principal meio de criação. Assim, surgia, no início dos 90s, o kwaito, género que iria ocupar as pistas de dança do continente e que seria preguiçosamente apelidado house à moda da África do Sul.

Fazendo scroll na história toda para tempos mais recentes, passando à frente de nomes como Arthur Mafokate, chegamos aos anos 2010s, altura em que o kwaito atinge um ponto de rotura, ou de regresso ao underground, sendo reapropriado noutras zonas do país. O caso mais famoso desta transformação e reapropriação é o gqom, de Durban, que começa em produtores e MCs como Menzi, Phelimuncasi e DJ MP3, conhece o seu ponto caramelo em DJ Lag ou Citizen Boys e regressa ao mainstream por via de Babes Wodumo e, mais recentemente, Sho Madjozi. Um som tenso, feito de vocalizações em contratempo, hesitações e balanços perigosos que vai buscar aos sub-graves em ondas (que lembram os bons tempos do dubstep, aqui e ali, ainda que sem evidente ligação) e sons de percussão pouco secos – a banda sonora perfeita para competições de drift de carros de legalidade dúbia.

Do mesmo kwaito, quase em antítese ao qqom e, provavelmente, graças ao próprio, surgiu o agora incontornável amapiano, uma afirmação mais melódica, mas não menos etérea das expressões de dança da África do Sul. A lembrar o som espacial do deep house — sem qualquer tipo de relação com este, tanto na origem quanto na estética e no ritmo —, em que as modulações e os ecos distorcem tempo e espaço, o amapiano desfaz as suas repetições nos truques de produção, mas também no espaço que devolve às vozes em detrimento dos MCs. Cantado, e bem cantado, o tipo de música popularizado pelo veterano DJ Maphorisa e por Major League DJz, Kabza De Small ou DJ Sumbody é um convite aos vocalistas para regressarem às pistas de dança, criando um espaço de namoro com sintetizadores e, não raramente, o piano para explorar linhas melódicas.



Com os ingredientes certos para ser extrapolado para outras fronteiras, o género não se ficou pela região de Joanesburgo por muito tempo — e Maphorisa chegou a passar o deserto e a Namíbia para duas colaborações com o cantor angolano C4 Pedro, em “Spetxa One” e “African Beauty”, ambas do álbum King Ckwa. O convite aos vocalistas, contudo, formalizar-se-ia com a interpretação nigeriana do amapiano, que usam as melodias quase cerimoniais e os ritmos quebrados para dar uma nova vida ao género, tendo mesmo sido catalisador para uma nova expressão do mesmo na zona mais setentrional do continente: depois de quatro discos a explorar o registo em colaboração com Kabza De Small, entre 2019 e 2020, Maphorisa regressa com o parceiro do seu grupo Scorpion Kings com uma adição ao combo na voz de TRESOR, em vez de recorrer a vocalistas convidados.

O mercado nigeriano, uma das economias mais vibrantes do continente africano, foi uma peça-chave para a afirmação do género além-fronteiras, e artistas como Mr Real e Rema, ainda que não primem pela tensão que define a versão sul-africana do amapiano, desdobram-se em arpeggios hipnotizantes de sintetizadores para grudar melodias e criar verdadeiros earworms. A projecção em Lagos e na diáspora nigeriana, do Reino Unido aos EUA, são uma consequência inevitável de um género que se propaga tão bem na rádio quanto nas pistas de dança, recolhendo o consenso que foi recusado ao gqom.

O género está indubitavelmente lançando, tendo tomado o Boiler Room de assalto, recebido louvores da Rolling Stone e começando agora a entrar pelo nosso território dentro por via da confirmação de Major League DJz no ID_NOLIMITS. Mesmo na África do Sul, diz a cantora Busiswa à publicação norte-americana, “é a primeira vez que um género nosso passa mais nas rádios do que um internacional”. Um fenómeno, que nem à conta da fama internacional, no mainstream e no underground do gqom, parecia possível. Feitas as contas às hipóteses da África do Sul tomar conta das ondas sonoras, do FM e do streaming, com mais de 40 anos a cozinhar expressões novas, a afirmar independências e liberdades, o singrar do amapiano só surpreende quem anda distraído. Sejam bem-vindos!


pub

Últimos da categoria: Ensaios

RBTV

Últimos artigos