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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/05/2023

Rap alternativo, spoken-word e a ponte entre instrumentação e produção digital num novo EP.

O Simples Mente: “É uma descrição muito honesta de todas as dificuldades que tens quando és puto”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/05/2023

Para Léo Amorim, 23 anos, natural de Viana do Castelo mas atualmente residente no Porto, o ponto de viragem pode muito bem ter sido ‘Trabalho & Conhaque’ ou ‘A Vida Não Presta & Ninguém Merece a Tua Confiança’ (2015), de Nerve. “O que me fez escrever o primeiro texto foi esse álbum. Aliás, acho que esse álbum é o motivo que me levou a ter entrado tanto no rap.” Hoje, Amorim assina como O Simples Mente e apresentou na passada sexta-feira, 19 de maio, o seu segundo EP, O Puto.

Tal como Nerve, O Simples Mente não é autor de um rap convencional. Prefere não definir a sua música em termos de géneros, até porque é o resultado de muitos cruzamentos e camadas, mas o novo EP certamente tem uma forte componente de spoken-word e diversas texturas musicais, onde os instrumentos acústicos se fundem com os loops e as programações eletrónicas digitais.

“Meio que sempre foi um sonho. Se calhar não acontece com toda a gente, mas no secundário já escrevia poemas e barras, vá, já tinha coisas para dizer”, explica ao Rimas e Batidas. “Mas nunca tinha avançado para de facto fazer música.”

Esses textos não tinham necessariamente um lado musical, mas existia a ideia da performance. Aliás, mais tarde viria a ganhar um concurso de Poetry Slam no Porto. “Nunca mostrei o que escrevo para as pessoas lerem, mas adorava dizê-los. Já eram poemas feitos para serem ditos. Não tinha propriamente a ideia porque não me via como alguém capaz de fazer música.”



Ainda assim, Léo Amorim tinha um background ligado à música. Tinha estado numa academia até ao nono ano. “Depois abandonei a música e chateei-me mesmo com ela. Mas mantinha o contacto e estava entrosado na rede do pessoal que tinha estudado comigo.” Uma dessas pessoas, que se tornou um colaborador essencial no seu percurso e em particular neste novo EP, é o multi-instrumentista Marrquise.

Há cerca de cinco anos, numa Passagem de Ano, mostrou-lhe um poema que tinha escrito, “Girassol”. “Dropo do início ao fim acapella e ele diz: ‘eh pá, espetacular, adorei e adorava poder musicar isso, fazer uma cena ao piano para juntarmos’. Ele começou a fazer a composição da ‘Girassol’, mas só em 2019 é que gravamos uma live session. Ou seja, eu não tinha propriamente experiência. Tinha um poema, ele tinha um piano, éramos amigos e ‘bora fazer isto acontecer. Acabámos por gravar live e lançámos para o YouTube, mas sem propriamente um plano de fazer música para a frente. Aconteceu naturalmente.”

Dois anos depois, já a viver no Porto, Léo Amorim reencontra uma amiga de infância Lee, da banda As Docinhas que possuía um estúdio caseiro. “Por acaso encontrámo-nos uma vez aqui na rua. Ela tinha um homestudio e eu na altura estava a trabalhar, e basicamente saía do trabalho, ia comprar uma garrafa de vinho e ia para a casa dela brincar [risos]. Para alguém que tinha este sonho, foi a primeira pessoa que me ensinou a fazer música no computador. Fui apresentado ao que é um homestudio e a bedroom producing. Desde aí que pensei fazer um projeto. E todas essas cenas começaram a dizer-me: se eu gosto de música, de ver estes poemas em música, também quero experimentar ser eu a cantá-los.”

O resultado foi o primeiro EP, Vino Blanco at 4AM (2021), co-produzido por ambos, de natureza mais digital. Trata-se de um disco bastante experimental, de espírito livre, onde cabem texturas trap, ritmos de kizomba, influências emo ou dance pop. “Para mim o que representa o primeiro EP é despreocupação e liberdade total, e não dizer que não a nada. Que tal hoje experimentarmos fazer uma dance music de discoteca? Why not? Porque não inventamos uma história que eu te traí e vamos fazer um kizomba em que te estou a pedir perdão? Vamos explorar e, essencialmente, divertir-nos. Aquilo era a parte do dia em que podia ser eu. Depois de um dia todo no escritório, chegava ao fim do dia e era tipo ‘deixa-me divertir-me sem qualquer barreira e vamos perceber o que é o auto-tune e o quão divertido isto é e os sítios onde podemos chegar’.”



O Puto, o segundo EP apresentado agora, é um disco mais maduro e musicalmente mais elaborado. Mesmo os poemas, que acabam por ser uma “coletânea” desde que Léo Amorim começou a escrever durante a escola secundária, são mais sérios, sentimentais e sofisticados. “Vêm de um sítio muito mais sóbrio, com a ideia que tenho sobre o que a minha imagem é. Também já tinha mais ou menos um conceito porque reparei que todas as músicas falavam de uma personagem. É um processo longo, de anos, enquanto o outro é uma libertação muito espontânea, feita com o que vier à cabeça.”

E que personagem é esta? “O EP é escrito pelo Puto e fala sobre O Puto. É uma descrição muito honesta de todas as dificuldades que tens, principalmente quando és puto e estás na escola ou num meio social. É a história e evolução de um adolescente com muitos pensamentos e uma série de emoções em turbulência contada na primeira pessoa, o que corresponde a um desabafo.” E existe muito de Léo Amorim n’O Puto? “Sim, há”, admite.

“Girassol”, o primeiro tema apresentado ao público, está incluído neste disco. E Marrquise compôs todos os instrumentais para os outros poemas, tornando este um EP a meias. Como estuda na ESMAE (Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo), convidou vários colegas para, de forma espontânea, irem acrescentando os seus inputs. O processo levou quase dois anos e, embora tenha sido “frustrante”, O Simples Mente descreve-o como um verdadeiro “trabalho em conjunto”. “Nós estávamos abertos, era algo muito orgânico, a que outras pessoas pudessem dar o seu input. Foi um processo em que eu e o Marrquise estávamos constantemente a bater bolas e abertos a pessoas que gostassem e pudessem ir a estúdio connosco darem o seu input.”

A maioria dos textos, recorda, foram escritos em noites de insónias. “Funciona como uma consequência e uma cura. A sensação de que estás mesmo sozinho e podes ser o que és no teu íntimo, contigo próprio… Ninguém está a ver e a vida não está a acontecer, portanto não tens de cumprir com nenhuma expectativa.”



Outra pessoa que o inspirou particularmente foi o artista norte-americano Hobo Johnson. “Em termos de escrita, conheci há uns anos um artista que se chama Hobo Johnson e na ‘Cangas’ até tenho uma referência para ele, quando digo ‘estamos a ouvir o álbum do Frank e está tão bom’. E depois descobri que ele tem um Toyota igual ao meu, e o primeiro álbum dele tem a ver com ele viver no carro, que é de 1992, do mesmo ano do meu! E eu meio que fiquei um bocado obcecado por ele e nota-se [risos].”

No que toca à música, agrada-lhe especialmente a fusão entre digital e acústico e tudo o que isso significa. “Gosto muito da produção clássica, de como captar uma bateria em estúdio, mas também gosto muito da cultura homemade, de pessoas sem formação que querem experimentar. Isso encanta-me. O que pretendo fazer é misturar os dois mundos ao máximo, não achando de todo que um é melhor do que o outro. Quero usar o máximo de ferramentas para chegar a um som próprio. O que me atrai é originalidade, não é virtuosismo nem técnica. E o meu maior desejo é alcançar isso.”

Neste momento estão a delinear uma formação que possa, eventualmente, levar os temas de O Puto para os palcos porque a ideia seria sempre apresentar o EP com um formato de banda. No passado sábado houve o evento de lançamento na GOCA (Galeria e Oficina de Cerâmica e Azulejos), em Viana do Castelo, com um carácter distinto. O Simples Mente e Marrquise convidaram seis artistas para desenvolverem ilustrações baseadas no disco, que entretanto se tornaram azulejos graças à oficina de cerâmica que ali funciona. Assim, durante sete semanas, poderá visitar-se a exposição de O Puto. “Deu origem a mais arte ainda e isso é brutal, porque tem a ver com os valores com que foi feito o EP.”


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