pub

Fotografia: Chris Costa
Publicado a: 07/03/2021

Numa missão de salvamento. Em carne e osso.

O Saturday Service de Dino D’Santiago a purgar Portugal

Fotografia: Chris Costa
Publicado a: 07/03/2021

“Quando mandarem o meu puto de 17 anos para a terra dele, para onde é que ele vai?”. A pergunta retórica veio da boca de NGA depois de se juntar a Dino D’Santiago na emotiva “Por Nós”, já a celebração (a manifestação também não ficaria mal…) ia avançada. Visivelmente emocionado, o líder da Força Suprema colocou esta questão recorrendo ao próprio filho para trazer uma narrativa que já deveria estar mais do que fechada há bastante tempo: a de que um miúdo negro nascido em Portugal depois da viragem do milénio ainda pode ser visado com este tipo de tratamento, como se estivesse num sítio onde não pertencesse só por causa do tom da sua pele. 

Esta é apenas uma das pontas que une o autor de Filho das Ruas a Mamadou Ba, dirigente do SOS Racismo a quem esta festa dentro da festa — sopravam-se 31 velas ao PÚBLICO — era dedicada, muito por culpa de uma perseguição que lhe é feita há algum tempo e que culminou numa petição hedionda que foi criada com o objectivo de o expulsar de Portugal. Se isto é surreal em 2021 num país que se tem como evoluído, ainda mais inacreditável se torna depois da autêntica surra espiritual que o artista de Quarteira e companhia deram ontem à noite, um grupo composto por talentos extraordinários (e racializados) que trouxeram um bocadinho de si para o palco improvisado na redacção do jornal, em Lisboa.

O Rimas e Batidas, presente na sala, testemunhou uma atmosfera comovente, e a portentosa introdução pertenceu à actriz Isabél Zuaa, que reclamou o seu espaço e lugar de fala enquanto mulher negra, trazendo um pouco da dor que, colectivamente, se sentiu aquando do espancamento de Cláudia Simões ou da morte de Bruno Candé, falando de casos recentes que marcaram a agenda nacional. O tom era ditado aí, mas depois seria a música a definir a sua força: sentiu-se in loco a energia completamente contagiante de novas estrelas do panorama PT como Julinho KSD (“Kriolu”) ou Vado MKA (“Nhôs Obi”), a experiência autoritária de NGA na já referenciada “Por Nós” ou o afrofuturismo de mestre de prétu (aka Chullage) em “Fidju Maria”; a elegância de Kady em “Diz Só”; e ainda um throwback a 2008 com Sam The Kid (o que aconteceria se fosse lançado em 2021…) em “O Nomeado” e um encontro cheio de trocas de elogios numa “Roda” com Virgul

Se musicalmente a carga emocional impulsionou a fasquia para níveis que não são facilmente traduzíveis para palavras, o estandarte visual não lhe ficou atrás: MAKA (Museu de Arte e Kultura Africana) Lisboa, projecto de Francisco Vidal e Namalimba Coelho, ocupava o cenário com capas em que se destacavam pessoas racializadas e desenhos de mártires involuntários da luta como Alcindo Monteiro, Giovani Rodrigues, Cláudia Simões e Bruno Candé. Durante a emissão, Vidal foi desenhando a cara daqueles que passaram pelo centro para cantar — era bom que todo aquele material fosse transportado para um museu e não fosse encostado num canto qualquer…

A sessão não se fez só daqueles que apareceram — a socióloga Cristina Roldão e o prodígio Tristany também marcaram presença, mesmo que invisível para quem estava em casa –, gritando-se sem subterfúgios na mensagem e na forma sobre este movimento afro-português, que não é novo, longe disso, mas que parece ter encontrado, no mesmo espaço e tempo, uma geração de novos e antigos avançados pensadores musicais, sociais e políticos que têm o poleiro e o discernimento para criarem real impacto num país em negação e em silêncio sobre o racismo institucional há demasiados anos. Se a união faz a força, este conjunto de pessoas reúne o poder para mexer com estas águas turbulentas. Dêem-lhes o microfone para a mão.

Não foi o Sunday Service de Kanye West — não teve os músicos, os coros, nem sequer o público à volta –, mas a voz de Dino foi gospel e soul que chegue para que o consideremos como tal. Não seria complicado imaginá-lo num registo semelhante, quando pudermos voltar a estarmos próximos: se ontem levitámos com uma sala condicionada por uma pandemia, fica complicado não sonhar com uma ida até aos céus com uma “missa” liderada pela cara deste Mundu Nôbu onde o crioulo de Cabo Verde e o português são um só. “Nu sta djuntu!”


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos