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Texto: Paulo Pena
Fotografia: A. Hilliard
Publicado a: 15/06/2020

O braço-direito de Aubrey Graham tem muito para contar.

O que aprendemos com a entrevista de Noah “40” Shebib à Rolling Stone

Texto: Paulo Pena
Fotografia: A. Hilliard
Publicado a: 15/06/2020

Aos olhos de quem contempla à superfície um imenso e arrebatador céu estrelado escapa, por vezes, o conjunto de elementos que compõem o mesmo. Quantos átomos formam uma estrela? E quantas estrelas são necessárias para brilharem tanto quanto uma supernova? Nesta escala astronómica, fenómenos galácticos como Drake concentram em si um brilho incandescente que ofusca toda a matéria envolvente a esta preenchida constelação. Pois bem, serve a analogia espacial para dar a conhecer, por meio da sua entrevista à Rolling Stone, a história de como Noah Shebib saiu do buraco negro onde caíra. Posicionem os vossos telescópios e observem a trajectória deste cometa. 

Diagnosticado com esclerose múltipla aos 22 anos, o então promissor produtor e engenheiro de som viu o vidro da sua vida rachar. No auge de se ser jovem adulto, Noah passou a enfrentar a iminência de um fim sofrido e prolongado. Qualquer doença auto-imune tem efeitos devastadores em quem costumava ver uma vida pela frente (como deveria ser). Pelo que, em certos casos, a aceitação da doença pode ser um processo moroso. O agora “braço-direito” do ícone Drake foi um desses casos resistentes na procura da cura, e a princípio nada fez para lutar contra este mal. Vários foram os episódios tragicamente alarmantes em que o produtor sofreu danos acrescidos por culpa de episódios provocados pela sua condição clínica. A título de exemplo, destaque-se um incidente durante a última tour do cantor canadiano, depois de um concerto, onde perdeu o controlo do seu corpo. Hoje, a caminho dos quarenta (mais precisamente nos 37), 40 concilia os tratamentos com uma vida o mais normal possível, mais virada para o estúdio. 

Os créditos de Noah Shebib na discografia de Drake valeram-lhe uns quantos prémios e a relação entre ambos já conta com alguns anos. Em 2016, Drake dizia “40 the only one that know how I deal with the pressure” na faixa “Weston Road Flows”, ou ainda “40 got house on the lake, I ain’t know we had a lake”, em “Sacrifices”, no ano seguinte, o que ilustra a cumplicidade da dupla espelhada no “we”. 

A sua produção caracteriza-se pelas ondas sonoras abafadas pela densidade dos sons submersos – como se deambulassem no fundo do oceano – que navegam por géneros indefinidos, e subiu à tona a 13 de Fevereiro de 2009, aquando o lançamento da mixtape So Far Gone, com o suspeito do costume e Oliver El-Khatib. 40 revela que parte dessa atmosfera auditiva se deve ao plug-in “lo-fi”, que recria a sensação de se ouvir a música através de uma parede (algo como ir à casa de banho de uma discoteca e sentir o ressoar do sistema de som a partir de lá).

Dedicado a Drake desde o início, 40 vê a relação musical com a figura mundial como se fossem uma banda, assumindo o papel do guitarrista principal. Talvez seja por isso que nunca tenha lançado um projecto a solo, tampouco trabalhando a fundo com alguém para além do habitual Drizzy. Ainda assim, apesar do sucesso partilhado com Champagne Papi, e independentemente do reconhecimento dos seus pares, tais como Mike Dean, um recorrente parceiro de Kanye West e Travis Scott, Noah descredibiliza o seu trabalho, dizendo que não gosta dos seus beats, das suas misturas, da sua música. Mais, culpa o seu sucesso na sorte do jogo-roleta da indústria. “A indústria da música é como a lotaria”, afirma. 

Criado em Roncesvalles, Toronto, Shebib descreve a sua terra-natal como um cruzamento entre a pobreza e o privilégio. Cresceu, numa casa espaçosa e povoada, a ouvir Sade e hip hop dos 90s, influenciado pela sua irmã Suzana que lhe deu a conhecer mixtapes nova-iorquinas do DJ Nasty e do DJ Evil Dee. As suas raízes, além de demograficamente dispersas, trazem no sangue veia artística (permitam-nos a incongruência científica para efeitos estilísticos – bem sei que são as veias que “trazem” o sangue). Afinal, o seu pai –- par e conhecido de Francis Ford Coppola –- esteve por detrás do clássico do cinema canadiano Goin’ Down the Road. Por isso, seguindo as pisadas caseiras, o pequeno Noah, ainda criança, deu os primeiros passos artísticos através da representação, o que cedo originou uma sensação de falsa e efémera fama da qual se distanciou emocionalmente desde cedo.  

Mais tarde conheceu Oliver El-Khatib na escola, com quem partilhava ascendência libanesa. Enquanto Oliver trabalhava numa loja de retalho ligada à cultura hip hop, Noah ia desenvolvendo a sua produção junto do grupo The Empire, descrito pelo próprio como os “Wu-Tang de Toronto”. Influenciado por Just Blaze, os seus instrumentais descansavam, de preferência, no leito de suaves cordas, enquanto esperavam dele a agressividade dos kicks snares das valentes malhas de rap. 

No seguimento dessa vontade de saber mais e diferente, Noah foi estudar para o Trebas Institute, motivado pela mentoria de Noel “Gadget” Campbell, “o padrinho do hip hop canadiano”, com quem ainda trabalha nos dias que correm, e cujo estúdio caseiro testemunhou o baptismo de Noah Shebib como 40, alcunha atribuída por Illy e Payback, repescada à referência bíblica a “40 dias e 40 noites”, uma vez que o engenheiro de som trabalhava horas a fio, noite (e dia) dentro sem parar. Esta dupla representaria mais um desgosto na vida do canadiano: anos mais tarde, Illy e Payback, os seus “anjos da guarda”, como os recorda, seriam assassinados. 



O primeiro contacto com Drake deu-se posteriormente. Por volta de 2005, 40 ouvira o rapper na rádio e imediatamente reconhecera uma propensão em Drake para rimar num dito “40 type beat”. Foi em 2007 que o conheceu pessoalmente, durante a gravação do vídeo de “Replacement Girl”, tendo passado ao cantor uma compilação de beats como cartão de visita. Drake nunca mais deu sinal, e caso Oliver não tivesse puxado as orelhas ao seu amigo, provavelmente esta história não estaria a ser contada. O que é facto é que 40 voltou a ligar ao astro da pop, e no desenrolar de acontecimentos inexplicáveis, depois de algumas sessões de estúdio, a tripla seguiu um caminho partilhado sem olhar para trás, com os laços a estreitarem progressivamente. 

Na verdade, 40 foi quem acabou por guiar Drake nesta escalada. Afinal, este ainda procurava a sua voz e o seu registo e Noah contava já com alguma experiência na cartografia de percursos, especialmente na cena canadiana do hip hop. Assim, além de produtor, Shebib assumiu um papel de mentor na carreira do rapper, consolidando essa importância com a fundação da label October’s Very Own (OVO), com a particularidade de que apenas Oliver e Drake celebram os respectivos aniversários em Outubro, ao contrário de Noah, que conta as voltas ao sol a partir do mês de Março. 

As atenções não tardaram a girar em torno de Drake, e no seguimento de So Far Gone, o prodígio em ascensão embarcou numa tour de Lil Wayne, acompanhado pela também promissora Nicki Minaj, e, claro, por 40, com quem passaria a percorrer estrada, fosse para onde fosse. Visto como o “assistente”, 40 assumiu esse papel sem complexos, uma vez que, aos seus olhos, o único objectivo era tornar Drake numa estrela mundial, mesmo que isso implicasse várias outras tarefas paralelas à música. O devido reconhecimento começou a ser dado e, à medida que Drizzy foi crescendo, o seu fiel aliado viu os focos de luz reluzirem na sua mesa de mistura — o próprio Wayne revelou curiosidade pelo produtor. No entanto, a doença falou mais alto, e as longas e desconfortáveis digressões começaram a ser fisicamente insuportáveis e, sobretudo, inconciliáveis com os tratamentos de Noah. 

Hoje, com um acompanhamento clínico totalmente diferente e rigoroso, 40 está mais ausente do carrossel do estrelato, confessando que, devido à sua condição, não acompanha tão de perto quanto gostaria a agenda frenética do amigo e sócio na acutalidade. Mas continua a trabalhar activamente, tendo participado inclusivamente na produção de Dark Lane Demo Tapes, e encontrou em BLLRDR (lê-se “bullrider”) um auxílio valioso na atenuação dos efeitos da doença.

Fechado nos seus botões e confortavelmente instalado no seu canto, Noah assume algum pudor em falar sobre a carreira do amigo, deixando essas intervenções para quando é necessário defender o seu mérito e honra. 40 parece acreditar, mais do que qualquer um, no valor de Drake e isso deve-se, claramente, à sua participação imprescindível no sucesso do rapper. Aliás, menciona ainda o exemplo da sobrevalorização do contributo do The Weeknd no disco de estreia de Drake, Thank Me Later, reforçando que, em 22 faixas, o músico também canadiano teve mão em apenas quatro, o que não justifica a centralização das atenções nas suas contribuições.

Com um percurso tão ligado a um dos maiores artistas das últimas décadas, Noah tem a sua quota de episódios marcantes ao longo destes anos, tais como a tenda armada em estúdio durante a criação de Nothing Was The Same, onde dormia (indicador, uma vez mais, da sua ética de trabalho); o polémico beef entre Drake e Pusha T, que fez ricochete em 40, nomeadamente quando o rapper de Virgínia foi mais longe com umas quantas linhas em “The Story of Adidon”, atirando “OVO 40, hunched over like he 80—tick, tick, tick/ How much time he got? That man is sick, sick, sick”. Apesar do desrespeito, Shebib manteve a mesma postura que sempre pautou a sua mentalidade durante a vida. Não atribuiu demasiada importância e catalisou a deixa para dar uma maior exposição à doença contra a qual luta diariamente.

Também houve tempo para um top da discografia que ajudou a construir, do melhor para o menos bom: So Far Gone; Take Care; If You’re Reading This It’s Too Late; Scorpion; Nothing Was The Same; Views; Thank Me Later – deixando de fora More Life por considerar uma playlist

Por fim, reconhece que, por um lado, quer continuar a trabalhar na música, voltar a estudar cinema, investir na sua fundação, mas que, por outro, ainda não está totalmente satisfeito e feliz com o rumo da sua vida. Os membros da OVO deixaram de ser um grupo fechado, formando as próprias famílias – Drake já é pai – e o produtor confessa que pondera seguir esse mesmo caminho. Sem esquecer pelo meio uma condição intermitentemente incapacitante, que afecta a vários níveis as relações interpessoais. É essa a grande luta de Noah Shebib, numa vida tão rica quanto sofrida; numa jornada tão povoada quanto solitária. E quando lhe perguntam porque é que anda tão depressa, a resposta esmurra-nos o estômago: “porque consigo; e às vezes não consigo. Neste momento, eu consigo”.


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