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Fotografia: Inês Abreu
Publicado a: 04/05/2023

De Suka Figueiredo a Thiago França.

O particular “suingue” da música instrumental brasileira

Fotografia: Inês Abreu
Publicado a: 04/05/2023

Marcos Valle, os Azymuth e João Donato foram convocados por Ali Shaheed Muhammad e Adrian Younge para se posicionarem ao lado de Gary Bartz, Roy Ayers, Doug Carn e Brian Jackson no arranque do catálogo da ironicamente nomeada Jazz is Dead, etiqueta sediada em Los Angeles que tem procurado enquadrar lendas históricas neste agitado presente. Arthur Verocai, por outro lado, tem o seu nome inscrito nos créditos de recentes trabalhos de BADBADNOTGOOD e Hiatus Kaiyote e viu, o ano passado, o seu clássico “Presente Grego” ser revisto pelo colectivo jazz de Seattle High Pulp. Hermeto Pascoal, por sua vez, não se cansa de cruzar o mundo assumindo em palcos internacionais o seu justo estatuto de lenda viva… Os sinais são evidentes e amplificados por uma torrente de reedições que têm mostrado às novas gerações alguns dos maiores tesouros da vastíssima música brasileira, incluindo muitos que se podem enquadrar com o que habitualmente se designa como “jazz”. Mas, a reboque da História, há uma bem diversa nova geração que pode muito bem inscrever o Brasil no mesmo mapa global que dos Estados Unidos a Inglaterra e da Austrália à Africa do Sul tem repensado o histórico legado do jazz à luz do presente.



Thiago França, um dos faróis da efervescente cena de São Paulo que em 2021 nos deu o incrível Nunca Não É Carnaval, registo do colectivo que dirige, A Espetacular Charanga do França, começa por discutir a palavra “jazz”. Quando questionado sobre as suas referências jazz no continuum histórico do Brasil, o saxofonista alto não evita a palavra “problema” e indica que se for para entender a “tradição jazz” como “os americanos fazem e alguns músicos brasileiros tentam reproduzir”, então, nesse campo estrito, não reconhece qualquer referência. Ao invés, França propõe uma mais vaga definição – a de uma música com estrutura e mote diferentes, tanto nas vertentes escritas como nas improvisadas, em que o jazz pode ser influência, “mas não a pedra fundamental”. E aí, sim, acede a nomear gente como Paulo Moura, Proveta, Abel Ferreira, Dominguinhos ou, claro, Hermeto Pascoal como influências marcantes.

Apesar de ter nascido em Belo Horizonte, é em São Paulo que França está estabelecido, integrando a dinâmica cena local que lhe tem permitido não apenas desenvolver trabalho com a sua banda Metá Metá, mas também, enquanto colaborador ou músico de sessão, deixar marca em registos de gente tão diferente quanto Elza Soares ou Tulipa Ruiz. Na megalópole que é um dos grandes pólos económicos e culturais do Brasil, França explica que se estabeleceu uma grande quantidade de “músicos e artistas sonoros” que contribuem para uma cena dinâmica e diversa que encontra portos de abrigo ou rampas de projecção em espaços como o Leviatã, Porta, Garganta, Galpão Cru ou o fundamental SESC – uma instituição privada, financiada por empresas dos sectores do comércio, turismo e serviços que promove acções no âmbito da educação, saúde, desporto e também cultura, mantendo uma rede de espaços que se tem revelado fundamental para o desenvolvimento da mais avançada cena musical local. 

França, juntamente com companheiros de percurso habituais como Tulipa Ruiz, Juçara Marçal ou Guilherme Granado, ladeou recentemente o lendário Marshall Allen e ainda Knoel Scott e o já desaparecido Danny Thompson num encontro com a Arkestra promovido pelo spoken word artist Rodrigo Brandão em Outros Espaço, álbum editado pela nascente label portuguesa Comets Coming, mas que foi originalmente gravado em São Paulo num dos espaços do SESC, o Bom Retiro. Brandão, como de resto Granado, é cúmplice habitual de Rob Mazurek nas suas incursões pelo São Paulo Underground, um ensemble em que ainda participa Mauricio Takara e que no passado se cruzou com Pharoah Sanders num concerto em Lisboa posteriormente editado pela Clean Feed. França nomeia Granado, destacando o seu trabalho no grupo Hurtmold que navega águas rock mais experimentais, bem como o trompetista Guizado, “que foi dos primeiros músicos de sopro do Brasil a usar pedais, ampliando as possibilidades sonoras do seu instrumento”, ou o saxofonista e “rabequeiro” Thomas Rohrer, “que tem uma linguagem muito própria e uma versatilidade gigantes de improvisar sobre vários gêneros e formações”.



Brandão, como sabe quem já o viu em palco, não poupa nas palavras, sobretudo no momento de distribuir amor e elogios, revelando-se um divulgador generoso de arte e talento alheios. Olhando para o presente musical do Brasil a partir de Portugal, onde actualmente reside, o diseur começa por defender que a “lista de gente competente em actividade é longa”, dando a entender que esta é uma cena rica e diversa, e depois aponta gente “incontornável” como o pianista Amaro Freitas, reservando, ainda assim, espaço para um conjunto de talentos com que admite ter ligação tão emocional quanto intelectual: “o saudoso Letieres Leite, mas também Paulo Santos, Guilherme Granado, Marcos Gerez, Mauricio Takara, Rogerio Martins, Thiago França, Mestre Pimpa, Thomas Rohrer e Juçara Marçal, por exemplo”, concluindo assertivamente com um enfático: “todos me movem a alma”. Por seu lado, Bento Araújo, autor da fundamental série de livros Lindo Sonho Delirante que documenta a singular história da mais exploratória música do Brasil editada entre 1968 e o ano 2000, destaca artistas como Amaro Freitas, Mariana Zwarg, André Mehmari, Rodrigo Bragança, Jonathan Ferr, Chico Pinheiro, Deangelo Silva, Michel Leme e Hercules Gomes, ressalvando que são fundamentais para a rica cena da actual “música instrumental” brasileira. O jornalista explica que o que escuta no seu país hoje é “um jazz de características mais afrofuturistas, explorando as riquezas que o Brasil herdou diretamente da África. Ao mesmo tempo continua contemporâneo, mais engajado nas questões políticas, sociais e raciais, por motivos óbvios com o que vem acontecendo no Brasil e no mundo, com essa ascensão doentia da extrema-direita e tudo mais. Acho que muito do jazz de hoje vem sendo uma resposta, e também uma saída e escape, a isso tudo”. 

Quando instado a classificar o que confere distinta identidade a esta nova escola brasileira de “música instrumental”, Thiago França não hesita e explica que, um aspecto determinante “é o ritmo, os grooves”: “Para quem trabalha com improvisação livre, principalmente na Europa, impôr um ritmo não é muito bem visto, mas aqui no Brasil eu acho que isso tem outro sentido, já que temos outras subjetividades, outras raízes, sobretudo a africana. Trabalhar com ritmos, batidas definidas, para mim não diminui a experiência, pelo contrário, ressalta algo muito único, nosso. Nem todo mundo trabalha com as mesmas células, mas o facto de haver essa possibilidade dentro da improvisação/criação, talvez seja a grande premissa em comum”, explica o músico cujo trabalho o tem levado a constantemente erguer pontes – entre eras e continentes, práticas e sonoridades. É esse o programa central de The Importance of Being Spectacular, recente antologia d’A Espectacular Charanga do França, que nos traz música para desfiles, um pouco como as tradicionais marching bands de Nova Orleães. É um álbum feito da mesma vibração lúdica de uma festa intensa de carnaval, plena de energia positiva e de grandes solos por parte dos diferentes músicos, todos eles dotados de pulmões carregados de classe, que entendem não apenas a história do jazz que emanou da histórica cidade do Louisianna, mas também a particular temperatura que o samba impôs a essa tradição que foi importada de África e transformada, através dos séculos, numa celebração de liberdade e fantasia. Escute-se, a título de exemplo, o incrível “Obá Iná”, tema que encerra esse álbum, para se perceber que embora a música carnavalesca da charanga sirva de moldura conceptual para este projecto, os chops aqui aplicados são de real valor jazzístico, servidos por elegantes e complexos arranjos que exploram com inteligência toda a riqueza cromática que define um projecto desta natureza.



Em perfeita sintonia, o pianista Amaro Freitas, que o ano passado lançou o fantástico Sankofa na britânica Far Out Recordings, reconhece ligações entre a “nova música brasileira” “e esse jazz que está acontecendo agora e que tem como referência gente como a Nubya Garcia, Shabaka Hutchings ou Makaya McCraven”. “Eu venho de uma terra no Nordeste do Brasil”, explica Amaro Freitas, referindo-se à pequena localidade de São Lourenço da Mata, perto do Recife, “onde se encontra uma enorme diversidade de ritmos brasileiros – como o forró, maracatu, frevo, baião, ciranda, boi… – e a gente entende essa complexidade, essa variedade rítmica mantendo, em simultâneo, a capacidade de viajar entre géneros, de abraçar essa diversidade. Por exemplo, quando eu toco a música ‘Cazumbá’, ela é uma homenagem ao boi do Maranhão, mas para lá dessa clave rítmica que adoptamos, nós também trazemos padrões melódicos e polirrítmicos mais contemporâneos, injectando complexidade numa coisa que parece simples”. Amaro descreve o seu pianismo como sendo bastante “percussivo” e reclama influências em igual medida de Thelonious Monk, Cecil Taylor e Naná Vasconcelos, “um grande percussionista pernambucano”. Para o pianista, a sua música cruza uma certa “fritação” com a elegância do “cool jazz”: “e isso faz toda a diferença”.

Diferença é, de facto, ideia central na presente cena musical brasileira, pouco interessada em integrar vagas de fundo internacionais e muito mais apostada em desbravar caminhos próprios. Outra cabeça a pensar diferente é a de Suka Figueiredo, saxofonista que integrou a Funmilayo Afrobeat Orquestra, colectivo de pessoas negras, mulheres e não-binárias, baseado em São Paulo. “Eu sou capricorniana”, explica Suka ao jornalista Adailton Moura (em artigo escrito para o ReB), “e tenho uma pitada de dificuldade do coletivo. Então, eu sentia que precisava liderar o trabalho que eu fizesse para que soasse do jeito que eu gostaria que soasse para o público. Eu fiquei pensando durante muito tempo que tipo de banda eu formaria. Aí fui percebendo que eu precisava de representatividade de corpos femininos. Me incomoda que você chega para ver um show e tem uma mulher… e essa nossa construção é muito difícil, porque é difícil encontrar um time ponta firme. É difícil contar 100% com quem está sempre tocando em um gig ou outro. Foi a muito custo que consegui levantar um time ponta firme, que mesmo com possíveis atrasos do cachê estaria à disposição. Consegui formar uma banda incrível e está com a maior energia boa. O jazz acontece no palco, a gente ri, a gente se diverte. A gente vê o quão mais leve é trabalhar entre mulheres…” AfroLatina, o mais recente registo a solo de Suka Figueiredo reflecte, afinal de contas a sua busca por uma identidade musical, decididamente centrada no jazz, mas com espaço para integrar as complexidades culturais de um Brasil moderno e diverso. Figueiredo explica que dedicou tempo a estudar “os processos de colonização” que levaram a que “no Brasil se afaste a ideia de latinidade do seu conceito de existência”: “A música latina me faz viajar…. por isso tenho ouvido tanta cumbia, tanto reggaeton. Sou brasileira, mas também afrolatina. Estou aqui nesse espaço. Comigo é tudo muito intenso”. E é de forma intensa que explica que não faz jazz. Não exactamente: “a minha música flerta com o jazz, tenho várias passagens jazzísticas no meu som, mas eu não tive tempo de me aprofundar em nada ainda. Não tive tempo de me aprofundar no jazz e no choro porque eu tenho que correr. Por isso, não caracterizo meu som como jazz. Eu prefiro o termo música instrumental, porque quando a gente joga em comparação com os homens da virtuose, o meu som não é virtuose, é complexo. A gente sabe que quando o jazz nasceu em 1920/1930 era tipo o funk que a gente escuta hoje. Era música periférica, do povo. E aí, historicamente, o jazz foi passando por um processo elitista que chegou no Brasil. E hoje quem consegue se aprofundar no jazz são os académicos (passam a vida toda nos conservatórios). A minha intenção é desconstruir isso, porque o jazz é meu, é seu, o jazz é nosso. Não é o som dessa galera. O rock é meu, é teu. Por isso, classifico minha música como instrumental, que flerta com vários outros estilos”.

É essa caleidoscópica, variada, múltipla e complexa música que se encontra em discos como Aqui, do grupo Atónito, do saxofonista Cuca Ferreira, Imiscível do duo do trompetista Amilcar Rodrigues e do baterista Guilherme Marques, Tradição Improvisada de Thomas Rohrer e Nelson da Rabeca (todos apontados por Thiago França), Akhenaten Bazucas de GOATFACE!, Ubi Sunt dos Onça Combo e Moacir de Todos os Santos de Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz (trabalhos destacados por Rodrigo Brandão), Temas Para Tempos de Guerra do Conde Favela Sexteto, Sankofa de Amaro Freitas e ainda Hangout de Deangelo Silva (escolhas de Bento Araújo). Portas de entrada possíveis para um Brasil que “suinga” com um balanço diferente.



*Texto originalmente publicado na revista We Jazz

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