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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 29/02/2024

10 anos de How Can We Be Joyful In a World Full of Knowledge.

O mundo exótico de Bruno Pernadas

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 29/02/2024

Bruno Pernadas parece um professor ou talvez um contabilista. E, na verdade, acaba por ser as duas coisas: dá aulas, recolhendo assim dividendos da sua extensa formação académica, e assina incríveis orquestrações em How Can We Be Joyful In a World Full of Knowledge, estreia em nome próprio lançada com selo da mesma Pataca Discos de João Paulo Feliciano a que se encontram ligados objetos discográficos bem identificados (O.D.B.I.s, portanto…) de gente como o Real Combo Lisbonense, Márcia ou Julie & the Carjackers. O que é que as orquestrações têm que ver com a ciência do dever e haver? Um arranjo musical bem conseguido acaba por ser um exercício de bom equilíbrio de contas entre as várias secções à disposição de quem tem na mão a batuta: mais fundação rítmica aqui, metais q.b. mais adiante, melodia conduzida pela guitarra acolá, contrapontos harmónicos pelos teclados na coluna do lado e vozes esvoaçantes onde tiver que ser. E, voilá, a coisa avança.

Ao vivo no Teatro Maria Matos muito recentemente, Bruno Pernadas demonstrou entender essa nobre arte da gestão dos recursos musicais à sua disposição e orientou uma mini-orquestra de 11 válidos elementos (com gente de You Can’t Win Charlie Brown, They’re Heading West, Julie & The Carjackers/Tape Junk, Real Combo Lisbonense, Orquestra das Caveiras dos Dead Combo ou Dazkarieh, entre várias outras entradas num generoso currículo coletivo) pelo labirinto luxuriante das composições que assinou para How Can We Be Joyful In a World Full of Knowledge. A bem sucedida aventura de palco traduz um percurso intensivo pela música que recua até meados da década de 90 para encontrar o seu início, quando ainda adolescente: “A minha relação com a música”, esclarece Bruno Pernadas, que conta 31 anos, diante de um chá gelado numa esplanada inundada por um dos primeiros dias quentes do ano, “começou com os discos da minha irmã, coisas típicas dos anos 60, 70 e 80. Depois fui aprender guitarra numa escola de música, tive bandas quando andava no liceu e aos 20 entrei no Hot Clube de Portugal. Seguiu-se uma licenciatura na Escola Superior de Música. E depois, em 2008, gravei um disco que nunca saiu.”

Três décadas de vida, portanto, duas das quais envolvidas com estudo, mas How Can We Be Joyful In a World Full of Knowledge não soa a tese de fim-de-curso ou a aplicação de bagagem académica, facto que Pernadas justifica quando refere que “se aprende, para depois se desaprender, algo muito verdadeiro no que à improvisação em contexto jazz diz respeito.” O álbum, e o já mencionado concerto de apresentação, deixam claro que Bruno Pernadas é um criador de mão cheia e ideias firmes, mas isso não o tem impedido de tocar em muitos outros contextos onde não são as suas decisões que contam. Colaborou, por exemplo, com Real Combo Lisbonense e Julie & The Carjackers, para dar dois exemplos do universo Pataca, mas ganha a vida em gigs de ordem diversa, às vezes com a imposição de gravata e tudo: “Tocar a música dos outros é algo que eu sempre fiz. Também sou músico profissional e por vezes isso implica vestir um fato e ir para certos eventos tocar standards, algo que as pessoas presentes entendem como ‘música ambiente’. Mas há coisas que eu não seria capaz de tocar”, ressalva, atirando-nos depois para o colo um algo vago “por exemplo, alguma dessa música que anda para aí.”

“A Pataca”, refere Bruno Pernadas, “é uma casa com que tenho muitas afinidades, dou-me bem com toda a gente das bandas e participo nos discos deles. É um sítio confortável onde não existe pressão comercial.” Nem, pelos vistos, ar-condicionado: “O quartel general da Pataca é um bom sítio para se trabalhar no Outono e na Primavera, mas difícil nas outras estações, ou é um gelo ou uma estufa. Houve um solo que gravei para o álbum de boxers porque não conseguia estar ali de outra maneira.”

How Can We Be Joyful In a World Full of Knowledge começou por ser uma série de ideias maquetadas de forma modesta em casa pelo próprio Bruno Pernadas. E a coisa avançou a partir dessa semente doméstica: “Para este álbum escolhi 10 músicas — uma delas não entrou no disco — de centenas que tenho em casa e comecei por pedir ao João Paulo se poderia gravar as baterias lá na sala da Pataca — gosto muito daquele som seco, como o dos anos 70, como o que eu ouvia em certos discos do Richie Havens”, especifica. “Comecei por gravar as baterias e depois o João Paulo e o irmão Mário sugeriram que eu gravasse lá o resto dos instrumentos. Fiquei um pouco reticente porque já sabia que ao gravar ali não iria poder fazer as coisas ao meu ritmo e ia tudo demorar mais tempo — estou habituado ao ritmo do jazz. O plano era editar o disco entre finais de 2012 e inícios de 2013. As coisas prolongaram-se, com o Afonso Cabral dos You Can’t Win Charlie Brown e o João Paulo a darem uma ajuda nas gravações. Senti que tive tempo para trabalhar as coisas, para me sentar no Farfisa e ficar à procura do som que tinha na cabeça. O João Paulo Feliciano arrisca imenso e isso é bom.”

“E as gravações terminaram”, interpõe João Paulo Feliciano, que também aproveitou o sol e a esplanada, “com o Bruno Pernadas com o Pro Tools aberto a gravar sessões sozinho, já sem ninguém em estúdio.” “O Bruno”, prossegue João Paulo Feliciano, “tem uma maneira muito particular e intuitiva de apreender certas linguagens musicais dos outros, e até, num sentido mais estrito e técnico, a própria linguagem musical. Não conheço mais nenhum músico que combine essa destreza de conhecer a linguagem musical, da escrita e da teoria da música, como ele tem, e depois ser capaz de combinar isso com uma sensibilidade muito natural e apurada de captar o que anda à sua volta, como o que está agora a tocar em fundo na rádio. E depois, tudo isso é processado de uma forma muito pessoal.” João Paulo Feliciano, artista plástico de renome, editor de coragem e músico com um percurso vasto que se estende dos Tina & The Top Ten ao Real Combo Lisbonense, sabe do que fala. Uma das imensas virtudes da estreia de Bruno Pernadas reside precisamente na sua extrema capacidade de combinar pistas mais ou menos reconhecíveis — do jazz ao hip hop, do afrobeat à bossa nova, da exótica às experiências indie informadas pelo passado levadas a cabo pelos Stereolab ou Broadcast — sem que nenhuma das suas composições soe a colagem simples de pistas alheias. Há vincada marca de autor em How Can We Be Joyful In a World Full of Knowledge e isso é raro.

Para o futuro imediato, Bruno Pernadas, que acredita que “Les Baxter é o boss“, referindo-se a um dos expoentes da cena exótica/easy listening, quer dar continuidade a esta via inaugurada com o seu primeiro álbum, gravar com o seu quinteto de jazz When We Left Paris e tentar gravar um projeto orquestral que já data de 2008 e para o qual precisa de dinheiro: “Estou farto de bater a portas, mas sem grande sorte.” Pode ser que agora percebam que Bruno não é um mero contabilista ou um simples professor à procura de colocação. Bruno Pernadas, como Les Baxter aliás, tem algo de boss.


*Texto originalmente publicado na revista Blitz em 2014

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