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Publicado a: 22/11/2018

O jardim de Daxuva & Nina Miranda: “É um lugar seguro para se sentir frágil e humano”

Publicado a: 22/11/2018

[TEXTO] Gonçalo Tavares [FOTOS] Cat Rain

Cheira a downtempo, é doce e hipnótico. Le Jardin, o álbum resultante da colaboração entre Daxuva e Nina Miranda, foi lançado no final do Verão e é o mote para esta entrevista. Em primeiro lugar, o foco fica na cantora e no que a voz semeia na música, depois no produtor e no lado construtivo dos beats. Podemos vê-los no Plano B, no Porto, no dia 21 de Dezembro, no concerto de apresentação deste trabalho.

 



Com os Smoke City, tu pareces estar acostumada a este tipo de instrumentais compassados mas cheios de atmosferas e detalhes. Como foi a passagem para produção do Daxuva? Alguma alteração significativa?

[Nina Miranda] Quando conheci o Daxuva eu estava a fazer o meu primeiro disco solo. Estava a aprender a produzir em casa, a gravar, a misturar. Chamava pessoas para colaborarem comigo e era uma festa, um caldeirão cheio. Era eu que tomava a lead.

Com o Daxuva eu gravei à noite, quando tinha insónias. O som dele é mais calmo, mais manso, e despertava a criança tímida em mim. A música dele hipnotizava-me, ajudava-me a dormir. Eram sonhos cantados.

Quando me apercebi disso pedi mais instrumentais. Eram coisas que eu gostava, tinham groove e atmosfera.

Eu gravei a “Underwater Love” quando a ouvi pela primeira vez. Eu gosto muito desse lado de viajar com a música, que foi o mesmo agora com o Daxuva.

Como se desenvolveu a vossa colaboração? Como é que este álbum foi feito?

[N] Começou com uma conversa numa jam. Ambos queríamos fazer música carinhosa, que dava festas nas pessoas.

Depois da jam, o Pedro começou a enviar-me instrumentais. Eu recebia-os e cantava por cima, e enviava-lhe só as partes que gostava. Deixava-o fazer o que quisesse com a voz. Podia cortar, manipular, mudar o sentido das letras.

No final eu recebia (os instrumentais com a voz) e comentava. E acrescentava backing vocals e produção. Algumas músicas transformaram-se completamente, como a “Hamboorger” ou a “Make the World Better”.

[Daxuva] Isto surgiu de um encontro através de um amigo meu, o Rui. Os Smoke City vieram ao Porto tocar, quiseram fazer uma jam com músicos no Porto e convidaram-me para produzir essa jam: para arranjar um estúdio, músicos e para produzir o que acontecesse lá. Nessa noite apareceram muitos músicos do Porto e desenvolveram-se várias ideias em jam. Desenvolveu-se uma pequena ligação, uma pequena energia a fluir que se podia traduzir em música e ficou no ar a hipótese de colaborarmos. Ela voltou para Londres e pediu-me para lhe enviar ideias. Eu já tinha muitas na gaveta e começamos a trabalhar a partir daí. Eu enviava-lhe as bases e ela enviava-me ideias de voz, discutíamos isso e trabalhava nas músicas. Comecei também a trabalhar em musicas novas, estava inspirado com o que estava a fazer. Esse processo criativo foi muito rápido.

O que demorou mais nestes três anos foi o lançamento, a parte técnica da mistura e da masterização. E também quisemos respirar do projecto. Deixamos as músicas respirar para depois as ouvirmos outra vez, entre meio ano a 1 ano depois. Nós desgastámo-nos na fase inicial e estávamos tanto contentes com o que tínhamos que decidimos não apressar nada. Eu queria-me distanciar um bocado e ir o mais fresco possível para a mistura e masterização. Ainda gravamos umas vozes no Porto nessa fase mas pormenores muito pequenos. Foi quase tudo a um nível técnico.

A tua voz encaixa-se perfeitamente na música, são as duas leves. Isto foi propositado de alguma forma?

[N] Acho que tem a haver com a nossa relação. Daxuva & Nina funcionam quando é para reflectir e ouvir. Ajudam o outro a voar com leveza.

Também ajuda o facto de ter gravado durante a noite, é o que acontece quando o mundo está a dormir. Entrava num espaço pessoal. O meu estúdio era um navio para outro mundo.

As tuas letras estão constantemente relacionadas com a natureza — água, frutos, árvores, cheiros. O que é que te move como letrista? O que queres dizer nas tuas letras?

[N] Eu acho que em todas as artes nós preenchemos um vazio. Acho que todos nós saímos da barriga a querer saber porque estamos cá. Os meus filhos ajudaram a preencher esse vazio, mas acho que as minhas letras procuram o que me falta.

Uma das minhas maiores influências foi o meu ex-marido. O meu namoro com ele. Há coisas boas que normalmente não consigo falar mas que aqui conseguia, através das letras. Tinha confiança no Pedro. Sabia que a música podia ir para qualquer lugar e naquele momento, no estúdio, tentava não me reprimir.

Na verdade, eu nem sabia do que ia falar quando começava a gravar. A música é mágica, tira de nós coisas que não sabemos que estamos a sentir. E nós queremos que a música solte sensações nas pessoas. É um lugar seguro para se sentir frágil, para se sentir humano, neste mundo onde as pessoas se sentem solitárias. É o ecstasy da sensibilidade.

Outra influência foi o facto de morar em Londres, acho difícil morar aqui. Claro que há coisas que amo, mas este governo é um horror… Está criando uma ilha fria de arrogância.

Disseste numa entrevista em 1997, quando se referiram à tua musica como “trip hop”, que a música que tu fazias era uma trip, no caso dos Smoke City para o Brasil. Para onde viaja esta música? Onde fica este jardim?

[N] Este jardim é um laço entre todos os países. Quem entra no projecto acrescenta algo. Como a menina que dança no videoclipe da “Exist”, por exemplo. Acho bonita a forma como ela dança. Ou como o caso do Picasso, que no final da vida queria pintar como uma criança.

[Este jardim] é sobre uma forma de tirar camadas, sobre o que faz um humano se afastar do outro por causa de dogmas, dinheiro, etc., e que não é verdade. Há muitas camadas que tiram a música da nossa essência.

O Le Jardin é sobre a essência, sobre largar a semente e cheirar muitas flores diferentes. É sobre voltar à essência.

O Flying Away dos Smoke City saiu também 1997, há mais de 20 anos. Tu provavelmente já cantavas antes e continuas a cantar, tens uma carreira preenchida. O é que achas que consegues oferecer agora como cantora que não conseguias há 20 anos, quando ainda não tinhas tanta experiência?

[N] Quando a “Underwater Love” aconteceu eu tinha muita pouca experiência. Em palco, a gravar, etc. Mas era muito segura de mim. Estava a ser chamada por muitas gravadoras, muitas me queriam. Sentia-me no palco como numa festa de uma amiga, estava muita relaxada. Mas tinha menos camadas, era mais flat.

Acho que só no final da [gravação da] “Underwater Love” é que percebi o que aconteceu. Quando vejo gravações de mim no Youtube agora vejo-me a brincar no palco.

A ficha caiu 5 anos depois, no final dos Smoke City. Comecei a ter receio da responsabilidade, a perceber como tudo era grande. E comecei a ter medo de palco. Até então estava muito feliz, muito segura do que queria fazer. E acho que é por causa disso o primeiro disco [Flying Away] é feliz.

Acho que ser uma boa cantora passa muito por seres uma boa pessoa. Quando estamos bem connosco cantamos bem e passamos a energia certa para o público. As pessoas depois de verem um show meu ficam muito inspiradas, querem ir para casa pintar, estão criativas. Eu gosto de passar essa energia. Também por causa disso é que quero ter a banda certa.

Acho que esta música vai correr bem ao vivo, vai ter mais uma camada de energia. Esta música tem um lado soporífero, como as flores que ficam mais fechadas na noite mas que acordam com o sol. Vamos brincar muito com a atmosfera do tempo nos concertos: dia, noite, luz, viagem.

Agora sou seguramente uma melhor cantora. Antes era mais cool, mas agora sou mais teatral, uso muito o palco. Estou numa fase boa, a gravar muito em casa. Estou animada e com vontade mostrar os meus dotes vocais [risos].

A Nina disse que queria fazer música “carinhosa, que dá festas às pessoas”. Tu também?

[D] Nós nunca discutimos isso, mas uma característica comum entre mim e a Nina é termos este sentido de humanidade forte. A Nina é uma pessoa bastante carinhosa, bastante quente, e nas músicas isso foi-se transpondo, quer através da letra, quer através dos instrumentais, dos sons que escolhia e das vocalizações. Foi algo natural, tanto ao nível da temática como do ambiente que estávamos a criar, bastante quente e cozy, que poderia dar às pessoas sensações bastante afectuosas. Não sei se o sentem dessa maneira, mas nós fizemos o álbum com muito afecto e para ser algo pessoal e próximo das pessoas.

 



Esta música tem então uma dimensão pessoal tua?

[D] Sim, apesar de estarmos a falar de instrumentais. Há várias maneiras de ver a música criada, mas basicamente estás a retratar um pensamento ou cenário que imaginaste e vais construindo esse cenário com sons. Só aí estás a dar muito de ti. O projecto acaba por ter um lado bastante pessoal porque recriei um cenário que vi e idealizei e transcrevi-o para música, para uma sensação auditiva.

A Nina disse que os teus beats “a ajudavam a dormir”. E que quando gravava estava num “lugar seguro para se sentir frágil”. Tu estavas num lugar semelhante quando produzias estes beats?

[D] Não posso dizer que estava no mesmo lugar. Senti isso em relação à Nina quando estávamos a compor. Percebi que as músicas lhe estavam a dar segurança para ela expor ideias e sensações que estava a passar naquela fase. Percebemos a sinergia que estava a ser criada. Estávamos a criar algo confortável para os dois e que deu azo a tanta intimidade por parte da Nina nas músicas.

Os sons que tu usas, principalmente percussões (maracas, pratos, etc.) têm uma nitidez impressionante. Tu gravas mais ou samplas mais? Se samplas, quais são as tuas principais fontes de matéria-prima?

[D] Eu não samplo muito, não faço o digging normal que existe dentro do hip hop de procurar músicas e retirar pedaços. Neste álbum julgo que não há um momento desses. A produção tem a haver com VSTs escolhidos a dedo. Gosto de misturar isso com gravações que faço no estúdio de pratos, guitarras, baixos, garrafas a torcerem-se. Gosto tanto de utilizar a maquinaria e softwares que uso e compor digitalmente como de fazer gravações por cima disso e criar camadas. Gosto de misturar os dois lados, o digital e o analógico.

No caso de Daxuva e deste trabalho, o álbum está muito simples ao nível da composição. É uma tela em branco onde quase tudo é criado de raiz. O baixo é tocado ou gravado, o piano é tocado ou gravado, uma harpa é tocada ou gravada, etc. O input é sempre dado por mim, o que dá azo à criação ser uma tela ainda maior. Há mais possibilidades.

Eu acho que, ao mesmo tempo, tu dás muito espaço aos sons. Cada elemento é pensado, tem peso na mistura e personalidade no beat.

[D] Exactamente. Eu dou muito espaço aos sons e ao silêncio. Entre instrumentos, entre relações de voz com os instrumentais, etc. O resultado se calhar parece simples para alguns ouvintes, mas enquanto produtor é fácil preencher a tela. O que é difícil é fazer com que ela respire e que tenha a dinâmica que necessária para expressar uma ideia.

Por falar em espaços sonoros, tu tinhas imagens ou espaços mentais que querias recriar enquanto produtor?

[D] É sempre complicado transcrever estes processos e nem sempre é tão romântico como pode parecer. Nem sempre isso acontece, pelo menos com um espaço concreto. Mas muitas vezes existem ideias de espaços. Há músicas onde eu quis recriar o ambiente de uma selva, por exemplo, em que eu estou a imaginar nos versos a se fazer um caminho dentro de uma selva. Depois pode desaguar no refrão num sítio mais isolado, onde já se vê o céu. Existem imagens mais poéticas na minha cabeça. No meu caso em específico como produtor, o elemento que está mais presente são as cores. Associo muito as cores a partes, a intensidades e depois às músicas em si.

Podes dar alguns exemplos de cores e imagens presentes no álbum que queiras destacar?

[D] Por exemplo, o instrumental da “Make You Happy” trata-se de uma viagem pela selva que vai desaguar num refrão em que existe água, estrelas. Ao nível de cores, é um espaço entre o roxo e o laranja. Noutro caso, o da “Bicycle”, que foi a primeira música que trabalhámos, na minha cabeça ela desenvolveu-se sempre num gradiente gigante de azul, do mais claro ao mais escuro. Anda aí a flutuar por essa palete. Mas isto são coisas pessoais, difíceis de transcrever verbalmente. Eu faço essa transcrição ao nível musical.

Eu encontro nesta música e nos ingredientes sonoros que escolheste — os beats, os sons percussivos, os pads — uma tentativa de afastamento da realidade, lenta e fora de órbita, como se fosse um sonho. Esta sensação é propositada? Queres musicar sonhos?

[D] Eu acho que qualquer produtor e músico tenta fazer isso, musicar sonhos. Tu transportas a tua mente para realidades mais distantes, ou pelo menos simuladas, e depois queres que isso esteja presente na música. No caso deste álbum, há esse ambiente mais spacey. Eu tentei que não fosse fácil catalogar o álbum. Por exemplo, o som mais electrónico do álbum inteiro aparece na intro da primeira música. Foi propositado porque eu quis logo baralhar as etiquetas aí. Não quis que fosse confortável para as pessoas dizerem, “vem aí mais um álbum electrónico, ou de dança, ou de jazz, etc.”.

Durante o disco faço muito isto. Primeiro porque é algo que gosto de fazer, não gosto que existam grandes limites. Mas também é por causa desse afastar da realidade, de transpor isto para um sonho ou para algo com o qual as pessoas consigam viajar. Quero pôr as pessoas a viajar com as músicas.

 


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