pub

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 03/05/2022

O cientista e o monstro.

O estranho caso de Séthique & Vipe MC

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 03/05/2022

Diretamente de 1886 a 2022, de Inglaterra a Portugal, uma dupla inspirou-se na intemporal obra de Robert Louis Stevenson, O Estranho Caso de Dr. Jekyll and Mr. Hyde, para criar um álbum. Do cientista (de som, neste caso) focado em trazer as fórmulas sónicas que prometem alimentar na perfeição o monstro das rimas que podemos encontrar em Vipe MC, ambos se estreiam num nível muito interessante em longas-durações, numa fase mais madura da carreira, depois de diversas mixtapes e faixas soltas ao longo dos anos.

Apesar da distância física entre ambos, a proximidade mental e musical fala por si, com o beatmaker a demonstrar uma grande astúcia e experiência em produzir para MC, depois de colaborarem pela primeira vez em 2017 na mixtape Blackbook 4 do segundo, o responsável pela escrita deste projecto. O Rimas e Batidas esteve à conversa com os dois artistas sobre este trabalho conceptual que promete ser apenas o primeiro — o futuro adivinha-se frutífero para ambos, como revelado no fim desta conversa virtual entre o Sardoal, local de residência de Vipe MC, e Vila Real de Santo António, de onde Séthique é natural e reside.



Antes de mergulharmos no vosso projecto, falem-me um pouco do vosso trajecto enquanto artistas. O Vipe até rima na faixa “Movimento Sagrado” que já são 20 anos disto, não é de agora…

[Vipe] Exactamente! Recuando até lá, a minha primeira experiência no hip hop foi através do Graffiti. Acho que comecei como quase todos os writers começam: a agarrar em graxa para os sapatos e dar uns tags por aí, até formar um grupo da minha rua, os VDK [Very Dangerous Krew], que até menciono nesse tema que falaste. E esse mesmo grupo dura até hoje, a níveis de amizade, apesar de me ter afastado do graffiti há algum tempo. Enquanto MC, esse bichinho surgiu nas aulas de Português na minha escola secundária, em que um amigo meu que era grande fã de hip hop viu a minha facilidade na escrita – eu nessa altura não ouvia muito rap, era mais rock e metal. Ele foi-me picando e dando dicas para escrever algumas rimas, já que tinha boas notas a português e alguma facilidade na escrita. Assim foi, comecei a escrever e os resultados iam-me agradando, gostava do que estava ali, cheguei inclusive a gravá-las só para mim para me testar, e depois comecei a mostrar a amigos e conhecidos e o pessoal gostava e isso deu-me motivação para fazer cada mais! Se eu já tinha o gosto pela escrita, foi só aplicá-lo ao hip hop, porque eu acima de rapper, antes de tudo, sou escritor, gostava que isso ficasse bem vincado. A minha grande paixão é mesmo a escrita, porque eu não me limito ao hip hop, estou a meio de escrever um livro, escrevo para outros artistas, já escrevi poesia também, dedico-me muito a esse processo-

Para quem escreve 100 barras dedicadas à cultura hip hop portuguesa [na faixa “Movimento Sagrado”], tem que estar com a caneta afiada!

[Vipe] Está aí uma curiosidade: eu lanço um som de 100 barras todos os anos, ou seja, tenho perto de 20 temas de 100 barras. Fui limando isso ao longo dos anos, aperfeiçoando as técnicas, porque não é só escrever 100 barras, é torná-las interessantes para quem ouve, combater aquela monotonia ao longo do tema, para que quem ouve não se sinta aborrecido.

E tu, Séthique, como descreves o teu percurso até aqui?

[Séthique] Eu de 2003 a 2009 gravava muita coisa de forma amadora, juntamente com malta da minha zona, era gravar em CDs e pronto, ias distribuindo por malta amiga e nunca mais os vias [risos]. A partir de 2009/2010 comecei a fazer algumas coisas com malta como o Wuser, Gijoe, Mascote, etc. A nível de produção, isso surge por mera necessidade, eu tinha algumas bases musicais e resolvi pegar nisso e desenvolvê-las, para começar a produzir instrumentais, para rimar em beats que não fossem da net, algumas coisas mais originais. Na parte das rimas, eu já escrevia e pronto, juntei a escrita à minha produção e comecei a fazer os meus primeiros temas. Relativamente à minha discografia, fui tendo várias colaborações em projectos de alguma malta, como o EP Charnecos de Kristoman & Randy One, o EP Vadio e Vagabundo de Mascote, também fui lançando temas soltos meus com participações que fui fazendo ao longo do tempo com malta como RealPunch, Uput, Kristoman, o próprio Vipe, o DJ Sims também e em 2021 lancei a Mixtape 10 anos.. Agora, lanço o meu primeiro álbum de originais — a meias com o Vipe e enquanto produtor, sim –, mas é o meu primeiro álbum de originais!

[Vipe] E o meu também! Curiosamente estive a contar ontem em stream [na Twitch, onde Vipe MC faz streaming a jogar videojogos] e tenho 16 mixtapes e 815 sons gravados fora de mixtapes. Tenho conteúdo que nunca foi exposto, e um dia que eu faleça e alguém encontre o meu disco externo… esse alguém vai fazer álbuns [risos].

Como se mantém viva a chama criativa quando se produz tanta música?

[Vipe] Isso acaba por ser fácil de explicar, baseia-se tudo numa fonte de inspiração. Há artistas que lançam álbuns de três ou de quatro em quatro anos, para poderem coleccionar coisas novas, experiências e vivências novas para terem conteúdo. Eu não tenho dificuldade nenhuma nisso, tanto que lanço um álbum anualmente porque sinto que não me falta inspiração e consigo trazer sempre alguma coisa nova e não me tornar repetitivo. Acho que isso é tudo uma base de inspiração das pessoas, como eu gero tanto conteúdo, vou buscá-lo à minha volta, ou seja, conteúdo nunca me falta, mesmo que tenha de ir buscar alguma coisa ao passado, como é o caso deste álbum, que remonta ao século XIX. Como tal, conteúdo é algo que não me falta, desde que saiba onde o vou buscar.

Como surge a vossa ligação musicalmente falando?

[Séthique] Para veres, eu ainda não conheço o Vipe pessoalmente!

[Vipe] Eu convidei o Séthique para fazer parte da minha mixtape Blackbook 4, para a faixa “Citriciz” e a masterização do projecto ficou também a cargo dele, por volta de 2017. Foi nessa altura que nos conhecemos e começámos a trabalhar juntos.

[Séthique] Editei e masterizei o Blackbook 4 e 5. E se não trabalhei na 6 foi por falta de timing até a nível pessoal, por exemplo. Eu lembro-me que conheci o Vipe musicalmente naquela fase em que lançou música com o NERVE, em 2011/2012/2013, mas pessoalmente não. Não nos conhecíamos nessa altura. 

Mergulhando no vosso álbum, o conceito é bastante interessante, e só o facto de ser um álbum conceptual cativou-me bastante, são cada vez mais escassos.

[Vipe] As faixas “Flama”, “Hello” e “Desperta a besta” já estavam gravadas quando eu e o Séthique tivemos uma conversa sobre um conceito que devíamos seguir para termos um álbum-

[Séthique] Aí está um ponto interessante! Não havia conceito, mas começámos a trabalhar e a ideia era ter um e, pronto, o Vipe acabou por tratar disso.

[Vipe] Ao chegar a esse terceiro som parei porque não havia título para o álbum, não existia um conceito, não havia uma linha condutora que me guiasse para fazer mais música. Depois disso, cada um teve um tempo para fazer um brainstorming pessoal e houve um dia que estava aqui por casa e não me lembro ao certo de qual foi o clique, mas comecei a pensar nos personagens do Dr. Jekyll e Mr. Hyde, que já me haviam sido apresentadas pelo meu pai quando era mais novo. Comecei a pensar em trazer aquilo para o hip hop e aplicá-lo num projecto meu, aproveitando as faixas já gravadas, tornando tudo num álbum conceptual. Ao embrenhar-me na história comecei-me a identificar pessoalmente, basicamente o Dr. Jekyll era uma pessoa que acreditava que os humanos são compostos por 50% de bom e 50% de mau, e isso entra um pouco na minha vida e filosofias, visto que acredito na dualidade das pessoas. Na história, o Dr. Jekyll resolve criar uma poção em laboratório para eliminar os 50% de mau dos humanos, mas a comunidade científica rejeita e renega as suas ideias por não as achar legítimas e ele mesmo acaba por tomar essa poção, para eliminar os 50% de mau. Porém, a experiência corre mal e em vez de se tornar uma pessoa 100% boa, torna-se 100% má, não eliminando o que pretendia, criando então a personagem do Mr. Hyde. Com o decorrer da história, o Mr. Hyde começa a ganhar o gosto por assassinar pessoas pelas ruas de Londres, e a história termina com o Dr. Jekyll a suicidar-se com outra poção por não querer causar mais mal no mundo e por não conseguir chegar à poção que pretendia inicialmente. Posto isto, identifiquei-me com o Dr. Jekyll de início, e comecei a aplicar este conceito em todos os temas do álbum, seguindo uma linha bem coesa. 

[Séthique] E se prestares atenção, ao ouvir o álbum do início ao fim, percebes que estruturalmente está a seguir a narrativa da história. Fizemos isso propositadamente, para o álbum ganhar uma lógica a nível de estrutura. Relativamente ao conceito até o podes catapultar para o hip hop, já que é um cientista que se tranca no laboratório a fazer poções e experiências malucas, não é? [risos]

[Vipe] A nível de analogias até podemos dizer que o Dr. Jekyll é o Séthique, que acaba por ser o cientista no laboratório responsável por toda a parte instrumental, e eu o Mr. Hyde, o monstro das rimas!

E a nível de processo criativo, suponho que tenha sido um projecto 100% virtual, visto que nunca se juntaram. Falem-me um pouco disso, da duração da criação deste trabalho a outros detalhes pertinentes.

[Séthique] Quando a pandemia começou, eu nem estava muito focado em fazer música, mas junto de mais malta e do DJ Sims fomos trabalhando para o projecto dele, o Acordo Verso. Eu nesse projecto fui apenas convidado, mas as dinâmicas de trabalhar remotamente demonstraram que mesmo com cada um no seu canto era possível fazer um álbum, gravar videoclipes, etc… e isso demonstrou que podia fazer algo meu. Não queria fazer um álbum só por fazer, queria fazer algo com sentido. E um detalhe: eu não gosto de acumular funções na minha música, ou seja, não gosto de escrever para música que eu produzi, ou a editar música que produzi. Cumprir tantas funções acaba por te tirar o foco, não consegues estar tão concentrado trabalhando em tantas coisas. Eu queria fazer este álbum, mas sabia que não tinha disponibilidade para escrever, produzir, editar e é aí que surge o Vipe, já que tinha interesse em trabalhar com ele num projecto. Aí surgiram as primeiras conversas e ele até me podia ter dito que não tinha interesse, mas as coisas acontecem quando têm de acontecer, e aqui temos o resultado! Tocando na questão das funções de cada um, eu podia ter rimado perfeitamente, porque tenho essa faceta, mas chegou ali ao terceiro ou quarto som e o conceito narrativo que se estava a construir era todo da autoria do Vipe, portanto era a visão dele, e interpretou-o muito bem. Posto isto, deixei-o tomar as rédeas na caneta sendo o único a rimar para O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde. 

[Vipe] Este processo de fazer o projecto começou mais intensivamente por volta de Novembro de 2021, mas ali em Agosto/Setembro começámos a dar os primeiros passos para ir desenvolvendo o conceito.

E como funcionou a dinâmica em duo para ti, Séthique, neste caso, na parte das produções? O Vipe escrevia para os teus beats, ou os teus beats moldavam-se à escrita do Vipe?

[Séthique] Eu com a experiência que vou ganhando musicalmente tenho noção das notas e a voz do Vipe encaixa-se bem em certas frequências, há alguns instrumentos que assentam na perfeição com a voz dele. O Vipe foi guiando os ambientes que queria para as faixas, e depois de escolhermos o conceito do projecto tornou-se mais fácil de ganharmos um fio condutor.

[Vipe] Exacto, o Séthique foi-me mostrando vários instrumentais, cerca de uns 30, e 10 desses foram utilizados para o álbum. Com o tal conceito definido, ficou mais fácil selecionar os certos, porque havia algumas propostas que ficavam logo de fora por não se inserirem nos ambientes que queríamos explorar.

[Séthique] Tudo o que está ali a nível de produção tem sempre um piano, que puxou pela melancolia, acompanhado de um ambiente mais escuro, com texturas que tragam essa sonoridade. Sem ser o “Desperta com a besta”, que tem uma guitarra no instrumental e com um beat mais agressivo, à Cypress Hill, tem tudo um piano. Um pormenor: todos os sons são em notas menores, em tom menor, porque a nível musical se tocares um Dó maior é uma nota alegre e se tocares um Dó menor é uma nota triste. Em termos de harmonias, tudo o que foi utilizado seguiu essa linha de notas menores para trazer a tal melancolia e escuridão que referi. Outro detalhe que trouxe coesão ao álbum foram as baterias, já que são todas baterias lo-fi dos anos 80/90, de rap mais antigo. Por exemplo, a faixa “Eu não” tem drums que foram samplados de vinil, tínhamos tudo isso clean e acabei por samplar de lá. A nível de som, nós é que editámos, produzimos e misturámos, mas a masterização seguiu para a Abbey Road Studios, em Londres, e sentimos que fez toda a diferença. Até testei a minha masterização comparativamente à deles e sente-se mesmo a diferença, não dá para trocar as máquinas que eles têm a serem usadas por engenheiros de som de qualidade aos plugins que vamos utilizando por aqui digitalmente. Soou tudo mesmo diferente, com grande qualidade, ficou um resultado final brutal. Até testei ir ouvir faixas icónicas por lá editadas, como trabalhos de Beatles, Jamiroquai, Led Zeppelin, e nota-se que ao longo das décadas o som é diferente, mas os presets estão lá, a dinâmica de trabalho e o workflow evoluíram mas a essência continua lá! Há detalhes mesmo característicos deles, como o peso da bateria neste master, há um grande destaque nesse aspecto, com o ouvido certo isto é bastante perceptível, é um peso invulgar para uma bateria num trabalho de rap.



Outro aspecto interessante deste projecto foi o videoclipe da faixa “Flama”, que nos transporta ainda mais para este ambiente que tentaram criar. 

[Vipe] Foi algo caseiro na medida em que foi gravado onde eu vivo, no Sardoal. O realizador do videoclipe é um amigo meu, chama-se Sérgio Marques, já tínhamos trabalhado juntos há três anos, na faixa “Raggnarok”, e ele, entretanto, esteve a estudar para aperfeiçoar as suas capacidades na área do cinema e esse tempo foi suficiente para ver a sua curva de aprendizagem e convidá-lo novamente para filmarmos este videoclipe. Tivemos apoios da Câmara Municipal do Sardoal, reuni-me com o presidente da Câmara para discutirmos isto, assim como o director da escola do município para nos cederem material de laboratório para usar nas filmagens. Contei também com a ajuda de amigos meus para todo o background, coisas mais antigas que estão nas mesas, algumas decorações – foi a primeira vez que senti apoio de várias partes para gravar algo como eu queria. No primeiro dia de gravações era apenas eu e o realizador e, antes de iniciarmos, fomos beber um café, e nisto começa-se a juntar malta que queria ajudar, e no terceiro e último dia de gravações éramos quase 10! [Risos] Tenho sorte de morar onde moro, os apoios para a cultura têm sido bem distribuídos, mesmo com todas as dificuldades inerentes ao financiamento para a cultura a nível nacional, como é sabido, há que agradecer que não é possível fazer tudo sozinho.

E a nível de capa do projecto, quem a fez?

[Séthique] Foi um rapaz da tua zona [Faro]. O mundo é pequenino!

[Vipe] Tenho um desenhista favorito para as minhas capas de álbum, mas sou apologista de que já que vou mostrar a minha arte de forma diferente este ano do que mostrei o ano passado quero elevar outros artistas nas vertentes deles. Todos os anos tento que surja alguém novo na sua área, não só em capas de álbuns, para trabalharem comigo. Este ano, a parceria surgiu com o Diogo Martins, que acompanha o meu trabalho há largos anos, assim como eu estou a par da sua arte. Ele tinha o pen game certo para a função, neste caso a desenhar, claro, e fluiu tudo normalmente. Ele sabia o que podia esperar de mim. 

Estruturalmente, o projecto é interessante porque dividem-no ao meio no que toca às personalidades de ambos os personagens, metade para o Dr. Jekyll e outra metade para o Mr. Hyde.

[Vipe] Tentei equilibrar para que pudesse mostrar tanto a parte de uma como da outra personagem, queríamos que ficasse mesmo assim.

[Séthique] Por exemplo, na “Intro”, eu enviei o instrumental ao Vipe e ele agarrou e fez um tema sobre aquilo, basicamente uma explicação da introdução, e isso enriquece bastante o projeto. A nível de produção tentei encarar a cena como se fosse um filme, tudo bem organizado a nível de rimas, temáticas e músicas. Outro ponto importante foram as narrações entre faixas, foi basicamente a forma como conseguimos coser as faixas umas com as outras, para juntar o conceito ao longo do disco. Por exemplo, o audiobook da “Intro” está trabalhado para aquela faixa e para a seguinte, tudo em ordem com o cronograma da história.

[Vipe] Só para acrescentar, esse audiobook que ouves ao longo do álbum foi escolhido de seis ou sete diferentes, tínhamos vários coisas: uma mulher a narrar, actores de teatro a narrar durante uma peça, foram várias investigações que fiz até chegarmos ao ponto certo, a voz certa.

[Séthique] Com a escolha feita, samplámos as vozes e timbrámos tudo na nota e tempo certo do beat, e ao ouvires as faixas a entrada daquilo soa bem, está harmonioso, até porque utilizei o auto-tune como afinador de tom para que seja uma parte bastante melódica e subtil das faixas, para que fique tudo coeso. Basicamente utilizei esses audiobooks como se fossem um instrumento.

Outro aspecto que achei interessante, Vipe, foi a faixa “In 2 Deep”, que acaba por estar cantada em inglês, sendo a única do álbum neste mesmo registo.

[Vipe] Já de inicio sabia que ia a ser a ovelha negra do álbum. Sabendo isso de antemão, acabei por fazê-la na mesma… e porquê? Apeteceu-me simplesmente! O tema da faixa soava melhor em inglês, queria demonstrar o meu skill em inglês, mesmo sabendo que ele cantado não é perfeito, há algum sotaque como é óbvio. Acho que o meu inglês ate é bom e quis demonstrar isso, ate tenho um EP todo nessa língua e acabo por fazer este exercício de dois em dois, três em três anos, porque é uma expressão diferente daquela que tens ao cantar em português. E essa faixa marca o final da história, onde o Mr. Hyde se mata, e senti que encaixava ali bem uma letra em inglês. E também foi bom para quebrar a monotonia, depois de oito faixas em português damos algo diferente ao ouvinte. 

A nível de rimas, temos apenas o Vipe no álbum, mas, de resto, há algumas participações interessantes, de onde destaco o Bomberjack.

[Séthique] Exacto, e também temos o Tommy El Finger, produtor que tem trabalhado com os Alcool Club, a fazer scratch para faixa 9 e 10. Conheci-o depois do projecto do DJ Sims, temos partilhado alguns instrumentais e falado sobre produção e ele deu-me a dica que não só produzia como também fazia scratch e ficou logo encarregue de riscar a “Movimento Sagrado” e a “Outro”. Já o DJ Bomberjack foi o último convidado para fazer scratch no álbum e, segundo o que ele também nos disse, desde 2004 que não fazia scratch para uma faixa! 18 anos depois ficou encarregue de o fazer para a faixa “Eu não” e o resultado está à vista. Ele também nos deu uma mãozinha para a distribuição e promoção do álbum, através da sua loja, a sohiphop.com.pt, onde é possível adquirir a edição física do O Estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde.

Depois da “In 2 Deep” que falamos há momentos, para terminar temos a “Movimento Sagrado”, já fora do conceito do álbum. 100 barras dedicadas à cultura do hip hop português.

[Séthique] Para além de ser um exercício anual que o Vipe faz, ele costuma usar as 100 barras para pôr malta no churrasco, mas neste caso foi mais uma dedicatória, como era muito visto no rap francês até mais ou menos 2010. Para comparação, em Portugal, é semelhante ao “Mulher que deus amou” do Valete ou a “Mulher da minha vida” do Chullage.

[Vipe] Depois de fecharmos a história do Dr. Jekyll e do Mr. Hyde, ainda havia espaço para 2 músicas. Conforme disseste, quis pôr em prática o meu exercício anual de 100 barras, e normalmente costuma ser para destruir como o Séthique disse-

[Séthique] Quando ele me diz que ia escrever 100 barras, pensei logo, “ui, o que é o Vipe me vai escrever, o que é que será que vem dali?” [Risos]

[Vipe] Desta vez excedi-me e achei que já havia tanto mistério e dark side que quis aliviar o ambiente todo do álbum com esta faixa, como se fosse um término do projecto ali. Curiosamente, nestas 100 barras tive a atenção de desta vez não lançar uma punchline a ninguém, e isso para mim é extremamente difícil, porque estou sempre a querer massacrar. Todas as linhas dessa faixa servem como homenagem a várias figuras da cultura que me influenciaram a ser quem sou.

Num álbum tão denso a nível de conceito, com certeza que devem haver pequenos easter eggs espalhados ao longo das faixas, não?

[Séthique] Em termos de escrita, não dei input nenhum, apenas na faixa “Na Pharmacia”, que dei ali umas luzes ao Vipe. Na parte da produção, que ficou toda a meu cargo, nessa mesma faixa quisemos fazer algo diferente no fim, para não acrescentar mais um audiobook ou um scratch. No meio das minhas investigações, ainda nem sei bem como, fui dar com uma banda sonora da Nintendo, de um jogo mesmo do Dr. Jekyll e Mr. Hyde, e a faixa de abertura transmitiu-me um sentimento muito porreiro até porque o instrumental não tinha muitas notas e acabou por encaixar naquela zona da “Na Pharmacia” que nem uma luva, ficou ali um brinde mesmo dope. Nesse caso, tirei até o bass desse faixa para se ouvir ainda melhor o sintetizador.

[Vipe] Na parte da escrita, não há bem nenhum easter egg, está tudo ali para interpretação, duplos e triplos sentidos. Essa mesma interpretação pode variar consoante o teu contexto, o teu momento, há vários factores que te influenciam ao escutares o álbum. 

[Séthique] Nada ali foi escrito por acaso da parte do Vipe, foi tudo trabalhado e cuidado até na parte da pós-produção, com detalhe para ficar tudo certo. Nisso, o Vipe é um dos MCs mais versáteis que eu conheço, tanto que essas 800 e tal faixas que ele tem lhe deram grande experiência para se moldar a qualquer beat. E isso também tem peso no momento de trabalhar com alguém, há mais factores para além de uma boa voz, um bom flow, é também o workflow e ética do artista. Ele escreveu este álbum em menos de um mês-

[Vipe] Mas nesse mês só me foquei em Dr. Jekyll e Mr. Hyde, não fiz mesmo mais nada, foi foco total neste tema. Digo isto porque tenho outros trabalhos em mão para fazer, outras coisas a acontecer e ficou tudo de parte para escrever este álbum.

E fora deste trabalho, também acabam por seguir os vossos caminhos a solo, com projetos pessoais, não é?

[Séthique] Exacto, no meu caso tenho de falar do carimbo da Tricoma para este trabalho. Já foram editados vários trabalhos de rap algarvio por lá, temos condições interessantes no estúdio, demos um upgrade porreiro aos materiais, e temos gravado com o RealPunch, Kristoman, etc. Já são alguns aninhos ligado à cultura e este estúdio está disponível em Faro. A malta vai fazendo passo a passo os seus trabalhos e tem sido uma jornada interessante para nós.

[Vipe] Só quero deixar em suspenso um projecto futuro. Acompanha este raciocínio, Carlos [risos]: depois de Dr. Jekyll e Mr. Hyde vem aí um álbum sobre piratas, conceptual também, chamado O Diário do Barba Negra e que vai durar 1 hora e 20 minutos. Este álbum está gravado desde 2013, mas agora vai ser totalmente regravado. É uma coisa que nunca foi feita, vou criar uma história de piratas que vai ser interminável, chegas à última faixa e voltas à primeira, basicamente vai ser um álbum para a vida [risos].


pub

Últimos da categoria: Entrevistas

RBTV

Últimos artigos