pub

Texto: Vítor Rua
Fotografia: Gustavo Lopes Pereira
Publicado a: 23/10/2025

Na fronteira entre a máquina e o humano.

O atlas do som de Pedro Bernardino

Texto: Vítor Rua
Fotografia: Gustavo Lopes Pereira
Publicado a: 23/10/2025

[Cidade & Ofício]

Lisboa é a sua caixa de ressonância: uma topografia de ecos onde o Tejo funciona como fita magnética e os telhados, como diafragmas atentos. Pedro Bernardino trabalha o som como matéria viva, um elemento que se molda com as mãos e com a escuta. Artista sonoro e músico, compõe espaços, desenha silêncios, acende ritmos.

Nas manhãs húmidas de neblina, quando as gaivotas escrevem sinais no ar, recolhe o grão do vento entre a Ribeira e Alfama, afina-o como quem polindo um metal encontra a luz; ao fim da tarde, quando os eléctricos rangem nas curvas, procura o timbre exacto do ferro contra o tempo — o chiado subtil que transforma carris em cordas. Lisboa oferece-lhe uma orquestra invisível: pregões dispersos, passos nas calçadas, janelas a bater, sinos que respiram; ele ordena essa matéria em camadas, como se levantasse uma arquitectura audível, com fundações em subgraves e clarabóias de harmónicos.

Não procura apenas notas: trata o espaço como partitura e a luz como metrónomo. Sabe que o silêncio não é ausência, mas açoite e abrigo, que a pausa é lugar e que cada intervalo tem uma geografia própria. Por isso desenha silêncios: lugares de suspensão onde o ouvido pousa, como quem encosta a cabeça a um parapeito para sentir o peso do rio. Entre esses vãos, acende ritmos — combustões controladas, micro-incêndios polirítmicos que iluminam a direcção sem a impor —, deixando que a cidade, em vez de cenário, se torne instrumento.

Há nele a paciência de um relojoeiro e a ousadia de um cartógrafo: mede frequências com a precisão de quem lê estrelas e, no entanto, abre veredas novas na floresta do ruído. Onde outros escutam o acaso, ele encontra desenho; onde outros captam o óbvio, ele decanta o que fica depois do óbvio — o travo, a sombra, a reverberação que a memória reconhece antes da razão. Trabalha com o ouvido e com a pele: vibração como matéria-prima, ar em movimento a ganhar corpo, água que se faz pulso.

Se a cidade é caixa, o ofício é ponte. Entre a técnica e a poética, ergue passadiços: cabos que são veias, válvulas que respiram, válvulas que cantam. Não se limita a registar; transforma. É ali, no ponto exacto em que a gravação se torna composição e a mistura se torna paisagem, que a sua mão se revela. O resultado não é um retrato da cidade, mas o seu retrato falado: aquilo que a cidade diria se tivesse um só fôlego.

E quando a noite baixa, as fachadas guardam a humidade e os estúdios acendem a sua óptica discreta. Pedro Bernardino passa de bairro em bairro como quem muda de escala musical: Mouraria em modo dórico, Alcântara em fricção harmónica, Monsanto em ressonância verde. Ao fundo, o rio continua fita, o cais continua pauta. Ele recolhe, lapida, devolve. E nessa devolução — nesse trânsito entre ruína e brilho, ruído e forma — Lisboa reconhece-se, mais nítida, mais inteira, como se cada rua, finalmente, encontrasse a sua própria frequência.

[Estúdio & Palco]

O estúdio é o laboratório de pressão controlada; o palco, campo aberto de risco calculado. Entre ambos corre um cabo invisível: o ouvido como ferramenta, o detalhe como ética.

Na captação, o microfone é lente e auscultador do mundo. Escolher a cápsula é escolher um horizonte; posicioná-la é desenhar perspectiva. Pré-amplificadores como válvulas que respiram, conversores a colher grãos de luz, o ruído de fundo como maré que se aprende a ler. Regista-se o que soa e o que sobra: o ar em volta, as sombras do timbre, a penumbra onde o som começa antes de acontecer.

Na mistura, constrói-se topografia: graves como fundações, médios como paredes, agudos como clarabóias. Equalizadores esculpem relevos, compressores regulam a pulsação, panorâmicas abrem janelas, reverberações desenham pátios e distâncias. Cada transiente é uma sílaba; cada cauda, uma rua que se perde para melhor regressar. A canção aprende a caminhar entre planos: perto o suficiente para tocar a pele, longe o bastante para deixar espaço ao silêncio.

A masterização é o último quilómetro: onde se mede o headroom, se doma a cintilação e se assegura tradução entre auscultadores e praças, rádios antigos e colunas novas. Ajusta-se a temperatura do brilho e do corpo, aparando o excesso, guardando o nervo. O traço final deve ser invisível e, ainda assim, inevitável.

No sound design, o inaudível ganha forma. Um passo precisa de vento, uma porta pede pó, um plano fixo reclama fragmentos microscópicos: síntese aditiva, granularidade, convolução, camadas a encadear real e imaginação. O objecto sonoro deixa de ilustrar: passa a pensar a cena, a propor o seu próprio raciocínio.

Com a música gerativa, a composição torna-se ecossistema. Define-se um conjunto de regras — gravidade, clima, fauna harmónica — e as máquinas improvisam dentro de órbitas por nós traçadas. O acaso é convidado com mesa marcada; o resultado, nunca o mesmo, mantém assinatura: falamos com algoritmos e eles respondem com surpresa disciplinada.

No audiovisual e nas experiências imersivas, o tempo é matéria sólida. Timecode como nervo central, gesto sincronizado a imagem, som espacial que mapeia o corpo: binaural, ambisonics, múltiplos altifalantes como constelações. A sala torna-se instrumento; o público, sensor. Caminhar pelo espaço é tocar num parâmetro.

Chegado o palco, a teoria ganha fricção. Linha-de-som como mapa, PA como mar aberto, monitores como faróis. Latência medida em batimentos, feedback como fera mansa que se conduz pelas rédeas certas. Cada sala é um animal distinto, cada plateia um coro clandestino; aceitam-se os imprevistos não como falha, mas como matéria de composição ao vivo.

Entre estúdio e palco, o ofício é ponte e promessa. Afinar é decidir, decidir é escutar melhor. E tudo assenta, no fim, na mesma gramática simples e exigente: o ouvido como ferramenta, o pormenor como ética.

[Obras Seleccionadas]

Em Primeiro Cais, Pedro Bernardino aproxima-se do arquivo como quem regressa a uma infância de sons: o restauro não é apenas limpeza, é arqueologia do timbre — retirar pó sem roubar pátina, devolver corpo ao que estava desbotado, deixar a maré da mistura e da masterização redesenhar o contorno das vozes e dos silêncios. Em À Frente do Tempo, a cidade passa a relógio respiratório: grava o pulso, mistura as ruas, assina banda sonora original como quem instala um coração num mecanismo, e a masterização afina a temperatura até que cada batida encontre a sua órbita. Em BoxingLisboa, o som veste luvas: há choque, há esquiva, há suor traduzido em frequências; do ringue ao corredor, o áudio integral e a música original abrem espaço para o impacto e para a respiração, equilibrando o murro e o eco que o confirma. Em Entre Margens | Websérie 2030 | IMVF | #ACCIONADODS, o rio torna-se partitura de passagem: tratar todo o áudio é cartografar travessias — barcos, vozes, metais, vento — e manter, na engenharia das camadas, a delicadeza do que se move sem pedir licença. E quando chega a O Tal Podcast (temporadas 1 e 2), o estúdio transforma-se em sala de estar ampliada: a arquitectura sonora sustém conversas como pontes suspensas, os graves guardam o chão, os médios dão corpo à frase, os agudos acendem a nitidez das ideias, e a respiração entre palavras consagra o mais antigo instrumento da linguagem — o silêncio bem colocado. Tudo, no fim, regressa à mesma ética do detalhe: ouvir até ao limite, compor a partir do que o mundo já está a dizer, e devolver-lhe a fala com mais nitidez do que aquela com que chegou.

[Cinema & Reconhecimentos]

No escuro disciplinado da sala, Pedro Bernardino trabalha o som como quem devolve fôlego às imagens. Em Survival Hands (2017), a pós-produção de áudio é cirurgia de precisão: cada respiração encontra o seu lugar, cada gesto recupera o seu peso. O filme recebeu um Recognition Award no Five Continents International Film Festival e uma Menção Honrosa para Curta Estudantil — prémios que soam como ecos justos de um labor que prefere a subtileza à fanfarra. Antes e depois desse marco, o percurso afina-se em curtas que funcionam como laboratórios de linguagem: em ESTADISTAS (2016), a direcção de som e o foley constroem a espessura do gesto político sem mostrarem a engrenagem; em Ermelinda ou a culpa é dos chineses (2015), a direcção de som abre frestas por onde a ironia respira; em Monsters Inside Us (2013), o mesmo comando sonoro dá corpo ao invisível, deixando que o medo se anuncie pela textura; e em Brutal Death Metal (2013), na realização, experimenta o mundo do lado de fora da cabine, convertendo a energia bruta em forma.

[Formação Musical]

Antes de qualquer partitura, a pulsação. Na Orquestra Metropolitana de Lisboa, a percussão ensinou-lhe o rigor do gesto e a respiração do compasso: pele esticada, madeira e metal a negociarem o tempo, o ouvido educado para reconhecer no ataque e na cauda o carácter de uma sala. Depois, na Escola de Jazz Luís Villas-Boas, a bateria trouxe a arte do desvio — síncope, balanço, o diálogo entre mãos que se contradizem para melhor concordarem. Ali aprendeu que o silêncio também marca, que o contratempo é uma porta, que o groove é uma espécie de ética.

Por fim, na Universidade Lusófona, a Licenciatura em Ciência e Tecnologia do Som deu-lhe o laboratório: acústica como geografia, algoritmo como pauta, eléctron em vez de arco. A técnica deixou de ser bastidor e tornou-se linguagem; a escuta, que já era músculo, passou a método. Destas três casas — orquestra, clube e oficina — nasceu um músico que mede o tempo por dentro, afina a matéria invisível e devolve ao mundo a vibração com que o mundo lhe fala.

[Ferramentas & Linguagem]

Em 2024, o curso PRO DJ — Full DJ deu-lhe o mapa das correntes: beatmatching como astronomia do pulso, cue points a marcarem constelações, loops e stems a abrirem janelas no tempo. Aprendeu a passar de faixa como quem muda de maré, a dobrar a energia da sala sem partir o casco, a fazer da transição não um passadiço funcional, mas um momento de escrita: a linha-de-baixo como verbo, a tarola como vírgula, o drop como parágrafo novo. No palco, a mão lê platéias; no estúdio, o ouvido escreve percursos.

Daí para a composição algorítmica foi um passo natural: programar é instituir um clima, lançar leis de gravidade e deixar que as notas orbitem. Funções que respiram, probabilidades com sotaque, autómatos que desenham filigranas rítmicas; e, no centro, um compositor a decidir o que pode e o que não pode acontecer. Chama-lhe música gerativa não por abdicar da autoria, mas por a espalhar como sementes: sistemas vivos que improvisam dentro de fronteiras traçadas à mão, o acaso convidado com lugar marcado à mesa.

A visualização interactiva transforma o som em geometria que obedece ao toque: parâmetros a deslizarem como marés num estuário, envelopes que se desdobram em topografias, espectros que respiram luz quando o timbre muda de humor. Controlo MIDI e OSC como extensões do corpo; o ecrã deixa de ser janela para ser instrumento, e a performance torna-se cartografia de movimentos.

No atelier, a integração de ferramentas com IA funciona como lente adicional, não como atalho: modelos a sugerirem correlações tímbricas, assistentes a acelerarem a limpeza de ruído ou a anotação de cliques, redes que propõem variações harmónicas como quem oferece ramos alternativos a um rio. A máquina não decide — amplia. O ouvido continua juiz, o detalhe continua ética: qualquer decisão que não resista à escuta, cai.

Entre código e vinil, entre plugin e pele de prato, a linguagem que o move é uma só: tornar o invisível audível, dar ao tempo arquitectura e, sobretudo, garantir que cada escolha técnica serve uma intenção poética. Porque a ferramenta é apenas o método; a música, essa, é sempre o motivo.

[Projectos Pessoais]

Há laboratórios paralelos onde o ofício testa a sua própria elasticidade. plaibomb nasce dessa vontade de brincar a sério: um parque de diversões acústicas onde brinquedos electrónicos, caixas de música desmontadas e circuitos dobrados aprendem novas gramáticas. Explosões controladas, falhanços férteis, ritmos infantis que colidem com drones adultos; regras inventadas ao minuto, ruídos que viram melodia quando a paciência os escuta de perto. Ali, o erro não é acidente — é motor —, e cada faísca sonora acende uma hipótese de canção.

Noutro campo, Business Menino pratica uma sátira com luvas de trabalho: dashboards e KPIs transformados em ostinatos, ROI a marcar contratempo, pitch decks sampleados como se fossem coros de escritório. Entre métricas e melodias corre uma corrente de ironia terna: dançar num Excel, fazer da linguagem corporativa um glossário rítmico, devolver humanidade ao jargão através do timbre. O riso aqui não ridiculariza; afina. A crítica chega em compasso composto, onde o beat segura o espelho e a voz aponta o desvio.

Por fim, envolveu-se também no íntimo e confessional bathstage: a casa de banho como câmara de ecos naturais, azulejo a devolver frequências, vapor a desenhar envelopes no ar. Sussurros em microfone próximo, água a respirar por baixo das frases, luz baixa a pedir silêncio entre duas palavras. É um palco de proximidade quase binaural, onde o ouvinte se torna cúmplice e a canção, rito curto de purificação. Sem ornamento, só a pele do som e a sua temperatura verdadeira.

Três derivas, um mesmo mapa: o jogo que inventa, a ironia que destapa, a confissão que limpa. Em todas, o ouvido mantém-se bússola e o pormenor faz parte da ética; porque a música, para Pedro Bernardino, é o lugar onde o mundo se explica sem precisar de explicação.

[Forma Exacta do Silêncio]

Chamam-lhe artesão de frequências porque trabalha o ar como quem talha pedra líquida: escuta primeiro, decide depois. Entre estúdio, cinema e cena, leva consigo uma oficina portátil onde a técnica não manda, serve — válvulas e algoritmos como cinzéis, cabos como nervuras, medição e controlo ao serviço de uma intenção poética que antecede qualquer preset. O que nasce daí não é apenas som: é uma geometria do tempo, um modo de dar corpo ao invisível para que a emoção encontre passagem.

Em cada peça procura a forma exacta do silêncio entre dois sons. Esse interstício — mínima casa onde a memória se acende — exige disciplina e risco: cortar o excesso sem amputar o nervo, aparar o brilho sem apagar a centelha, aceitar a aresta quando ela diz a verdade e negar o polimento que falsifica. O silêncio, aqui, não é falta: é travessia, é respiração do gesto antes de acontecer, é a sombra que dá volume à luz.

Quando a obra respira em sala escura, no ecrã, ou se abre ao público na vibração do palco, a mesma ética sustém o edifício: o ouvido como ferramenta, o pormenor como regra. A arquitectura acústica não mascara: revela; a mistura não disfarça: organiza; a masterização não impõe: confirma. E, no fim, o que fica não é a assinatura em relevo, mas a sensação de que tudo soou inevitável — como se aquele som sempre lá tivesse estado, à espera da mão certa para ser encontrado.

Entre o rumor do mundo e a sua tradução, Pedro Bernardino escolhe o caminho do artesão: paciente, exacto, atento ao quase. É nesse quase — a distância mínima entre ruído e forma — que a música se torna lugar, e a cidade, mais nítida, aprende a ouvir-se a si própria.

[Entre a Fama ou a Arte: Porta de Entrada para Pedro Bernardino]

Tal como conhecemos mais do Cosmos do que das fossas azuis do nosso próprio oceano, também a obra de Pedro Bernardino permanece, para muitos, a uma profundidade por cartografar. Não por cálculo de mistério, mas por temperamento: alheado da celebridade e das suas vitrinas, prefere o labor invisível ao clarão do foco. O que o move é simples e absoluto: criar, compor, interpretar — fazer da matéria sonora um corpo vivo que respira cidade e devolve ao mundo uma nitidez insuspeita. A sua prática revela rigor e inteligência de relojoeiro: cada aresta aparada sem perder o nervo, cada brilho domado sem apagar a centelha, cada pausa medida como quem pesa a luz.

Para vencer a estreiteza de um único nome, Bernardino multiplicou-se em alter egos — máscaras não para esconder, mas para ampliar. Cada persona é um plano de voo, uma órbita própria dentro do mesmo firmamento, e, contudo, em todas se reconhece a assinatura: aquele traço tímbrico que ata a emoção ao método.

Em plaibomb, instala um laboratório lúdico onde o som testa as suas elasticidades. Música e imagem caminham juntas: a produção musical encosta-se à produção audiovisual e o portefólio abre-se como janela múltipla, demonstrando competências e uma identidade sonora própria e variada. Aqui, VCV Rack, sintetizadores, samplers e ferramentas de IA operam como cinzéis; e o código torna-se partitura aberta, capaz de gerar qualquer espécie de música — do sussurro granular à maré rítmica — sem nunca abdicar da mão humana que define regra e excepção.

Em Business Menino, a pele volta-se para a pista e o corpo aprende outra gramática: técnicas de música electrónica ao serviço do contexto dance/DJ, energia em estado líquido a circular entre build-ups e breakdowns. Os mesmos instrumentos — VCV Rack, sintetizadores, samplers, IA — são reprogramados para um fim distinto: um fluxo contínuo de música de dança que respira como animal de resistência, calibrado ao milímetro, onde o código sustém a corrente e o ouvido decide o momento exacto da viragem.

Em BOM DIA, a bússola abandona as rotas seguras e escolhe o modo experimental: música electrónica em fricção com visuais generativos, VCV Rack de mãos dadas com TouchDesigner e Arduino, a oficina aberta a todo o tipo de projectos de sound/digital art. É o território do protótipo e do risco fértil, onde um erro bem escutado se converte em método e um ruído, lapidado, admite de súbito uma nova espécie de melodia.

Três vias, um só critério: precisão. Em cada máscara, Bernardino deixa a sua marca — a construção paciente, a lógica sonora que sustém a vertigem, o respeito pela forma exacta do silêncio entre dois sons. E porque a obra assim construída escapa à espuma do dia, Pedro Bernardino merece ser mais reconhecido: pelo público e pelos pares, não como figura de cartaz, mas como quem, sem alarde, adensa o mapa do que podemos ouvir.


pub

Últimos da categoria: Ensaios

RBTV

Últimos artigos