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Fotografia: Alice Turnbull
Publicado a: 07/06/2022

Durante três dias, no coração do Alentejo, a tradição do cante casou-se com várias tendências da contemporaneidade musical, dando lugar a diferentes níveis de sucesso.

O antigo e o novo bailaram em Ferreira do Alentejo

Fotografia: Alice Turnbull
Publicado a: 07/06/2022

Não foi decisão de agora (assim aconteceu sempre ao longo da sua existência), mas talvez tenha estado mais em foco na edição deste ano do Festival Giacometti: de 2 a 4 de Junho passado, o evento anual que homenageia a figura do etnomusicólogo corso Michel Giacometti teve como mote as muitas formas com que a tradição musical se pode fundir com a contemporaneidade. De Maria do Mar a Marta Pereira da Costa, passando pelo Ensemble de Música Electroacústica, João Maia Henriques em dupla transdisciplinar com Eva Barrocas e o trio Vozes D’Encante, ficou bem evidente que as abordagens a tal propósito podem cobrir um espectro tão amplo quanto aquele que a criatividade proporciona. Contribuições internacionais para este evento centrado em Ferreira do Alentejo como as de Dafka/Doneff (Macedónia), La Banda del Comitato (Itália) e Bruno Zayas (México) reforçaram esses cruzamentos.

O concerto (que foi também performance e instalação) de abertura coube a Maria do Mar, que teve consigo parte do Coro Feminino de Peroguarda. O projecto GrÃo : cOnTrA_TemPO tinha várias camadas: ao vivo, solo de violino, manipulação por várias pessoas do público de objectos utilitários do passado, estabelecendo uma atmosfera e funcionando como materializações sonoras da memória, e cante; em projecção simultânea, uma trilha áudio feita de montagens de materiais vários (cabras, pássaros, vento, recolhas de cante espontâneo em Peroguarda, gravações do próprio Giacometti e muito mais) e vídeo (paisagens captadas em andamento dos campos em volta da aldeia), ambos realizados com a colaboração da artista brasileira Érika Machado.

Muito evocativo e poético, sonhador mesmo, o espectáculo tinha uma estrutura que se ia claramente adaptando aos desenvolvimentos em cena, ou não fosse a violinista uma hábil improvisadora, habituada a tomar decisões no momento. O coro foi decisivo para o constante processo de mutação, naquela que foi a sua primeira oportunidade, desde Março de 2020 e o início da pandemia, para se apresentar em público. A circunstância emocionou a população de Peroguarda, que se reuniu à noite, em grande número, na Praça Prof. Joaquim Roque, e Maria do Mar deu mais espaço às cantadoras do que estava inicialmente previsto. Escolheu tocar menos (já após uma intervenção particularmente gratificante com o seu instrumento, baseada em melodias alentejanas que foram conduzidas para uma exploração de harmónicos), mas integrou-as em absoluto no espírito da peça. Tudo resultou num particularmente interessante exemplo de como combinar, com pleno sentido, experimentalismo e música popular.

O segundo dia do festival arrancou, ao fim da tarde, com a prestação no Núcleo de Arte Sacra de Ferreira do EME – Ensemble de Música Electroacústica. Muito depressa se tornou evidente que a aproximação do factor “música electroacústica” realizada por Suse Ribeiro, Rui Rodrigues e Vítor Rua (com adição de um vídeo da cineasta Helena Inverno) era mais relativa ao processo utilizado, numa combinação de instrumentos musicais e tecnologia, do que à forma adoptada. A actuação teve mais que ver com o ambientalismo e o minimalismo de uns Telectu do que com algo vindo do universo da música erudita, com importações por parte de Rua de aspectos do rock e do jazz.

O conceito de Intemporalidade (título da obra apresentada) justificou que se combinasse uma trama organizada por ciclos em elipse, mediante retomas de motivos, com uma cenografia em que já por si contrastavam o altar-mor da antiga e bela igreja do século XVI em que a actuação teve lugar e a decoração com luzes de loja do chinês dos dispositivos electrónicos de Ribeiro. Passagens de cantos tradicionais iam sendo disparadas neste objectivo de levar a composição para longe de qualquer fixação temporal, com o contraponto das imagens de câmara parada de uma lareira a arder lentamente. Se a ideia era boa, a sua tradução prática redundou numa desconexão semiótica em que as partes não pareciam pertencer ao mesmo todo. A excessiva presença da guitarra de Vítor Rua e a deficiente amplificação das percussões e do sintetizador de Rodrigues reforçaram a percepção de que tudo se ia desligando.

Neste equacionamento do novo com o antigo foi curiosa a relação que, à noite, houve entre o concerto dos Vozes d’Encante, na Casa do Vinho e do Cante (antes conhecida como Adega do Lelito), e os coros masculinos que tiveram antes lugar na comemoração dos 85 anos de João Lota no seu próprio café, com acompanhamento de uma desgustação de carnes várias e de bolo de aniversário (o também muito tradicional pão-de-ló). Se estes representaram o velho cante ferreirense, os três jovens – João Caldas, André Silva e Artur Silva – que constituem aquele colectivo de “novo cante” transportaram o género para o formato mais generalista da canção folk (ou mesmo pop) dos dias de hoje. O que se percebeu é que só o invólucro muda, com o essencial, o “sem idade”, a manter-se intacto. A altíssima qualidade vocal do grupo mostrou que esta música está longe de morta e tem o futuro garantido. 



A grande surpresa da noite, se não de todo o festival, veio no entanto a seguir e no mesmo local, com a Diástase de João Maia Henriques e Eva Barrocas. Dificilmente se conseguirá imaginar uma fusão de música electrónica com beat e cante (este através de samples mais ou menos processados em tempo real, consoante as ocasiões), mas a tal se propõe este artista de Ferreira do Alentejo. Com referências no industrialismo, na club music mais desalinhada e numa estética gótica presente tanto no preto-e-branco do excelente vídeo de Barrocas e nas suas temáticas (uma tempestade e o que se lhe segue em termos de reparo dos danos) como na poesia meio declamada, meio cantada de Henriques, a anunciada “performance audiovisual” pode não ter sido igualmente entusiasmante em toda a sua duração, mas foi-o enquanto vingou o maravilhamento causado pelo arrojo de tal empreitada. O gás inicial desvaneceu-se a partir de determinada altura, mas é de saudar que alguém o tenha feito com tão inéditas consequências.

Bem menos conseguida foi a participação na última noite da cabeça-de-cartaz, este ano, no Festival Giacometti. Uma das raras tocadoras de guitarra portuguesa, Marta Pereira da Costa assinou uma contribuição que, se agradou à maior parte da assistência que encheu o anfiteatro do Jardim Municipal, pecou pelo excessivo tecnicismo, em detrimento da emoção, e pelos antiquados arranjos jazzy, em trio com uma guitarra clássica e um contrabaixo. O melhor veio com a subida ao palco de Os Boinas, coro de cante de elevado prestígio na vila. Brilhou o coro, mas a interacção deste com os instrumentistas não foi bem sucedida, com os dedilhadores de cordas a não saberem encaixar-se nas métricas muito características daquele tipo de música, surgindo sempre fora dos tempos. Momento igualmente compensador foi o dueto de Costa com a jovem Mariana Silva, também em guitarra portuguesa, por mérito, sobretudo, desta. No alinhamento esteve uma versão do “Verdes Anos” de Carlos Paredes que, inexplicavelmente, se transfigurou no standard “Summertime” (!!!).



Pouco antes, quando ainda brilhava o sol, tocara o duo Dafka/Doneff também com pressupostos no jazz, designadamente os invocados pela bateria de Dine Doneff, mas neste caso de modo mais inventivo e actual. Tradição e mofo não são sinónimos, como ficara já demonstrado. No bayan, um acordeão dos Balcãs, e na voz, a ainda adolescente Maria Dafka encantou, chegando a níveis de muito especial beleza. O grupo coral Os Rurais, formado na década de 1970, revelou depois um outro grau de inovação para quem ainda não o conhecia: em 2002 incorporou vozes femininas, ampliando assim as suas tonalidades e quebrando com a separação entre homens e mulheres que continua a sentir-se no interior do Alentejo. Por exemplo, nas tascas, que têm horários separados para uns e para as outras.

Coube de seguida à La Banda del Comitato, da Toscânia, instalar a festa, com as pessoas a levantarem-se para dançar. De tudo um pouco se ouviu, desde as transalpinas tarantelas a conversões idiomáticas do jazz, da pop dos anos 1960, da música brasileira e até do baladismo de Zeca Afonso, com protagonismo da bonita voz de Martina Sciucchino e do acordeão de Alice Rohrwacher, a também realizadora de cinema que no início da tarde havia apresentado os seus filmes Omilia Contadina e Feliz como Lázaro. O trombone de Leonardo Gazzurra e o saxofone tenor de Filippo Bidnchini instalaram a sonoridade de banda que no dia anterior ouvíramos dos elementos da Filarmónica de Ferreira do Alentejo que se juntaram ao elenco (misto de bailarinos profissionais e voluntários da terra) da coreografia de Aldara Bizarro inspirada na película O Baile, de Ettore Scola, e em Pina Bausch.

O fim veio com ainda mais festa, movida pelos ritmos cholulteka do DJ set conduzido por Bruno Salgado Zayas, mexicano residente em Portugal. Este colocou de lado a vertente electrónica de outras circunstâncias, preferindo uma articulação entre as músicas populares de raiz de diversos países da América Latina, com a cumbia em lugar de destaque. O bailarico durou até às 3h da madrugada, e não foram apenas os mais jovens que resistiram.


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