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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 15/07/2019

A artista norte-americana actua na edição deste ano do Super Bock Super Rock.

O admirável mundo novo de Janelle Monáe

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 15/07/2019

O Afrofuturismo é normalmente interpretado como um conceito desafiante e em constante mutação, que nos remete para mais de 60 anos de história. Os seus primeiros frutos traçam-se pela mão de Sun Ra, um exploratório músico de jazz que começou por deixar marca nos anos 50. Não houve um conceito próprio até 1994, altura em que Mark Dery usou pela primeira vez o termo no texto académico “Black to the Future”. Esta definição é difusa e mesmo várias correntes de pensamento diferem na sua premissa. Mesmo assim, foi concebida como um olhar crítico à cultura de ficção científica baseada em traços culturais ocidentais e maioritariamente escrita por brancos. Em puro êxtase de Blade Runner ou Star Wars, Hollywood partilhava a narrativa de que a imaginação cultural do futuro era e iria permanecer branca. Afrofuturismo é a resposta a esta mentalidade, um rompimento desta linha de pensamento que pretende colocar pessoas negras no centro de um panorama igualmente relevante e socialmente impactante. A verdade é que são muitos os artistas que interagem com este conceito e o hábito tem vindo a crescer de modo progressivo já há algum tempo: com um olhar atento, há um certo surrealismo e necessidade de adivinhar o futuro em filmes como Blade, Sankofa ou, mais recentemente, em Black Panther. A música também joga neste campo: Missy Elliott, Erykah Badu, Solange, Outkast, Kamasi Washington, entre tantos outros, apresentam-se como os filhos legítimos de uma linhagem que sucede a Pharoah Sanders, John Gilmore e Alice Coltrane. Mas entre artistas mais ou menos contemporâneos, não existe ninguém no mesmo nível que Janelle Monáe.

Desde 2007 que Janelle Monáe Robinson trabalha num musical ainda em progresso intitulado Metropolis, um projecto conceptual que mistura o arcano com o futurista, o mecânico e o carnal, verdade com o sentimento. Tudo começou com o lançamento do primeiro EP, Metropolis Suite I (The Chase), crescendo incomensuravelmente em 2010 com The ArchAndroid e três anos depois com The Electric Lady. A premissa parece ser retirada de um típico enredo sci-fi, e dá-nos a conhecer Cindy Mayweather, um andróide em fuga que se apaixona por um ser humano. É ao longo de um enredo solto que a protagonista se transforma numa figura messiânica, dando esperança e resistência aos mais oprimidos deste mundo distópico, que pretende suprimir as noções mundanas de liberdade e amor.

É fácil entender que estas mensagens impressas nas músicas espelham uma realidade não muito longe da nossa: afinal, Metropolis é uma versão perversa, exacerbada e putrefacta da nossa sociedade, onde certas demografias vivem em plena descriminação. Numa entrevista feita em 2013 para a revista Elle, Monáe salienta a alegoria mais óbvia das suas histórias: andróides tidos como uma interpretação da vivência de pessoas negras. “Os andróides nas minhas músicas são uma maneira de falar sobre os ‘Outros’, e eu considero-me como uma dos ‘Outros’ sendo eu uma mulher, e sendo eu especialmente uma mulher negra”.

Há vários paralelos entre andróides e a experiência de afro-americanos. Em “Many Moons”, lançado em 2008, referências não faltam para exemplificar como estas criaturas eram vendidas e tratadas como escravas, tal e qual como acontecia nos tempos do “Apartheid americano”. Ainda neste vídeo – ou neste mundo imaginário em geral – amor entre humanos e robôs é considerado nauseoso e severamente punível por lei – tal como era o casamento interracial nos Estados Unidos. O cenário visto é alegre, facilmente caracterizado por cores fortes, dança e música, mas que serve para cobrir todo um contexto histórico e social tenebroso, que ainda permanece como um assunto sensível no panorama político do mundo ocidental: confrontos entre forças policiais e cidadãos africanos são um exemplo de como o zeitgeist está fracamente alterado.



Um dos focos do Afrofuturismo é colocar o passado e o futuro da cultura africana como uma fonte potente de mudança. Mas este cenário mostra-se cada vez mais complicado de executar. Voltando ao ensaio de Dery, o mesmo coloca a seguinte questão: “pode uma comunidade, que viu o seu passado deliberadamente apagado, imaginar futuros possíveis?”. Monáe acredita que sim. Sendo uma analista crítica – quer como espectadora ou como batalhante na linha da frente –, o objectivo é ter à sua frente as possibilidades necessárias para construir um futuro mais claro e risonho para as pessoas cujo seu passado foi – e continua a ser – desconhecido.

O Afrofuturismo dela manifesta-se essencialmente através da dança. Cindy vê todos os talentos humanos como modelos especiais de tecnologia, e tal como os computadores, as máquinas do tempo e os sistemas de comunicação foram considerados formas inéditas de avanço civilizacional, então todas as construções sociais à nossa volta também podem ser. Artistas negros, vindos de uma perspectiva de opressão, têm conseguido perceber como é que os opressores manuseavam o Apparatus tecnológico de modo a manutenirem supremacia. Daqui vem a dança de Monáe: um manifesto activo contra discriminação, mas que ao mesmo tempo serve para unir e celebrar todos à sua volta. Em vídeos como “Q.U.E.E.N” ou “Tightrope”, as coreografias de Janelle são tidas como um dos aspectos mais importantes de Cindy Mayweather. Com anos de estudo, ela percebe as esfericidades da dança e a sua natureza preponderante, usando-a como uma arma de resistência da mesma maneira que outras personagens de sci-fi usariam raios, lasers ou outro tipo de artilharia como um subterfúgio para a rebelião.

A música serve igualmente como um escudo para a auto-preservação. Ao escutarmos “Cold War”, retirado do tão aclamado The ArchAndroid, fala-se sobre uma inerente sensação de supressão por parte de uma comunidade que tem escapado com a mesma conduta de ódio e preconceito: “I was led to believe there’s something wrong with me” – este é o ponto fulcral, pois só pessoas de certas etnicidades, orientações sexuais, nacionalidades ou contextos sociais perceberão o peso deste verso, e o quanto a sociedade, como canal que supostamente deveria ajudar estas fracções na sua integração, prejudica a integridade moral e apaga anos e anos de conquistas. Num artigo publicado no The Quietus, John Calvaret afirmou que a música de Monáe resume todos estes momentos num espaço cada vez mais reivindicado por ela; nas suas palavras: “A apropriação histórica de Monáe de géneros considerados ‘não-africanos’, como o rock, a electrónica, a música clássica, cabaret e folk, permite que transcenda barreiras ideológicas.”



É fácil ver as influências quer estéticas como sónicas dos tempos primórdios da música soul e funk, mas na sua mestria há indiscutivelmente menções à cultura cinematográfica caucasiana – basta olhar para a capa de ArchAndroid, uma clara homenagem ao filme Metrópolis, de 1923. Monáe pretende fazer uma ponte entre o que lhe pertence por sangue e a parte da história que lhe é negada há gerações. Contudo, neste caminho científico e crónico, há uma ruptura na linha conceptual. Depois de Electric Lady, Janelle afastou-se da música durante cinco cinco anos, focando-se noutras aventuras, mas especialmente dando espaço a ela mesma para respirar e sentir-se humana. O disco de regresso é o seu mais pessoal, mesmo quando não soa a ela mesma. Dirty Computer foi lançado no ano passado e rapidamente mostrou-se como uma tour de force, que eximiamente mescla rock, hip hop, soul e funk, enquanto se deambula pelas inconsistências políticas que atormentam Monáe nos dias de hoje – até agora a premissa parece semelhante, mas o que a destaca é uma crescente confiança e libertação sexual enquanto mulher pansexual: ela fala na primeira pessoa sobre sexo, festas e as suas próprias experiências ao mesmo tempo que o mundo à sua volta se destrói.

Este é o primeiro trabalho da artista em que Cindy Mayweather não é mencionada, mas a sua presença vive freneticamente em temas como “Django Jane” e “I’m So Afraid”. Desta vez, Monáe exprime-se através de Prince, o seu grande mentor, no qual vai buscar inspiração em vários temas: o eco de “Let’s Go Crazy” é ouvido em “Crazy, Classic Life”, o minimalismo alçado de “Kiss” está bem presente nos riffs de guitarra em “Screwed”, a cinética postura de “Americans” faz-nos lembrar “Sign O’ The Times”. Tudo isto não quer dizer que ela esteja a perder virtudes ou uma mão firme na sua obra, é apenas um exemplo de como o seu trabalho dá vida aos trabalhos de outros com o objectivo de transportar a mesma mensagem. Dirty Computer é o álbum mais desafiante e ousado de toda a sua discografia, e merece ser colocado ao lado de discos como Lemonade, To Pimp a Butterfly e Channel Orange, no que diz respeito à sua relevância social.

É redutor classificar Monáe como uma simples cantora r&b. Ela trabalha directamente para enaltecer a cultura da sua geração e fá-lo para todos aqueles que caminham ao seu lado. A artista marcará presença no próximo dia 20 de Julho no Super Bock Super Rock, no palco principal. Esta será a quinta passagem em Portugal, mas, mais importante, é mais uma oportunidade para percebermos o seu novo e admirável mundo – com ou sem andróides.


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