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Texto: Vítor Rua
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 11/11/2025

Rito, espaço e som em estado de pesquisa.

Nuno Veiga: o ouvido tornado corpo

Texto: Vítor Rua
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 11/11/2025

[Proémio — A audição antes do nome]

Antes do gesto houve o sopro; antes do palco, a câmara de silêncio onde um corpo aprende a medir o ar. A obra de Nuno Veiga nasce desse regresso ao princípio: não para fixar um estilo, mas para instalar uma prática de travessia, um modo de circular entre teatro, música, vídeo e instalação como quem percorre rios subterrâneos de uma mesma geologia. Aqui, o ouvido readquire a sua dignidade primeira: órgão de conhecimento, atenção que pensa.

[O Actor que converte a fala em ressonância]

Formado na matriz dos Estudos Teatrais e temperado por palcos de várias escalas, Veiga percebeu cedo que representar é insuficiente se o espaço não é escutado. O intérprete torna-se artesão da pulsação e da pausa; o corpo deixa a fala e aprende a vibrar. A etnomusicologia ensinou que toda a música é social; Veiga acrescenta: é também espacial. Cada sala conserva uma biografia acústica, um romance de ecos e absorções que o performer lê como quem percorre um mapa invisível. A cena deixa de ser superfície para se assumir como campo de forças, onde presença e escuta se implicam mutuamente.

[Londres — A exponenciação do multi-hífen]

Quando, em 2010, se desloca para Londres, a cidade opera como laboratório atmosférico: dança, moda, teatro e instituições obrigam à fricção entre linguagens. O que fora experiência dispersa torna-se método: o som passa a eixo de rearticulação das restantes artes. Na alternância entre estúdio e cena instala-se uma certeza: escrever com sons é uma forma de raciocínio — pensar o corpo como sismógrafo, a tecnologia como extensão sensível, a escuta como acção transformadora. Não se trata de juntar disciplinas, mas de as recompor pelo ouvido, como quem re-orquestra uma cidade.

[Fontelo — Rito sónico para um corpo por vir]

Em 2018, emerge Fontelo: não concerto, não teatro, não instalação — passagem. O dispositivo sonoro ergue uma arquitectura transitória; a improvisação é ética e técnica; o intérprete, oficiante. O público deixa de assistir e entra na órbita: cada pessoa é convocada como câmara de ressonância, corpo-coro.
Do ponto de vista etnomusicológico, Fontelo restitui à música a sua qualidade de rito social: um tempo partilhado onde o som reconfigura relações — entre corpos, entre memórias, entre o interior e a praça. Improvisar aqui não é capricho, mas metodologia de pesquisa: uma negociação rigorosa entre acaso e direcção, ruído e traço, falha e forma. Em versões posteriores, a transferência da persona para outro corpo performativo problematiza a autoria: o autor desloca-se e aquilo que permanece é o sistema de escuta.

[Tecnologias da presença]

Microfones de contacto, objectos, electrónica, vídeo — em Veiga, a ferramenta não suplanta o gesto: amplia-o. O circuito não serve a máquina, serve o corpo, prolongando a respiração até ao limiar do inaudível. A técnica é mediação, não fetiche; ponte entre o íntimo e a comunidade auditiva. Em termos de cultura musical, isto equivale a reinscrever a tecnologia no domínio do ritual: a aparelhagem torna-se altar móvel, lugar onde se serrilha a distância entre sensação privada e experiência comum. O som deixa de meramente ilustrar; instaura atmosferas que suscitam acção e modulam condutas de escuta.

[Pedagogias da vibração]

A par da criação, desenha oficinas, laboratórios, masterclasses. O eixo é invariável: ouvir é compor. A pedagogia surge como extensão da poética: em vez de transmitir repertórios, propõe ecologias de escuta onde cada participante exercita atenção, risco e cuidado. À maneira de Simon Frith, compreende que a música fabrica identidades; aqui, a formação fabrica comunidades sensíveis, corpos treinados para ler frequências tanto quanto textos. Não há hierarquia entre obra e partilha: aquilo que se aprende a fazer em palco aprende-se, igualmente, em círculo.

[Coda I — O arquivo vivo]

Se a biografia cabe em datas, a obra escreve-se em vibrações. Viseu como nascente, Londres como dobra, Lisboa como presente — mas o verdadeiro endereço é sempre a sala de cada noite, o instante onde um som redesenha o perímetro do corpo. É aí que Veiga trabalha: no ponto em que o acto reencontra a escuta e o projecto se cumpre como experiência. A hipótese que daí advém é severa e simples: a música não descreve o mundo — reconfigura-o. E a escuta, quando levada a sério, altera a anatomia de quem escuta.



[O Corpo como Frequência]
[I — Fundações Teatrais: o actor como catalisador]

As raízes no palco — lugar de invenção e fragilidade — não são passado, são matriz. A gramática teatral — presença, ritmo, consciência espacial, improvisação controlada — infiltra cada zona da sua criação. Inicia actividade profissional em 2001, antes de concluir a licenciatura (Évora, 2006). Trabalha com Luís Castro, Ricardo Pais, Nuno Carinhas, Jorge Fraga, em casas como o Teatro Nacional São João (Hamlet, Beiras, Fanga) e o Teatro Nacional D. Maria II (sonoplastia em Bestas Bestiais).

Desses anos decorre uma aprendizagem visceral: a tensão entre performer e público, a respiração como métrica dramatúrgica, o instante como arquitectura. Com a passagem a encenador — Sena 2222 (2021-23), Emma (2022), Para pôr um fim à lucidez (2023) —, conquista a visão do todo: gesto, espaço, som. Nos laboratórios das Oficinas Teatro Lisboa, a palavra-chave é escuta: voz, movimento e silêncio tornam-se instrumentos isóbaros.

Esta herança infiltra o resto. Quando Veiga fala de som, fá-lo no léxico da encenação: o áudio como elemento indutor, força dramática que convoca acções e regista fantasmas. O som existe apenas no presente; cada frequência comparece como personagem. O teatro não é passado — é genética operativa.

[II — O Arquitecto Sónico: espaço, corpo, narrativa]

A imersão no som converte-o em arquitecto sónico: construtor de habitações para o ouvido. A produção desdobra-se em três frentes que se tocam: composição para performance, improvisação experimental, personas performativas.

Como sound designer, ultrapassa a técnica: o som torna-se dramaturgo. Colabora com Yola Pinto, Amélia Bentes, Miguel Altunaga Verdecia, Romulus Neagu; trabalha com a Rambert Dance Company e o Edinburgh International Festival (2015-16). No teatro português, assina sonoplastias para Bestas Bestiais (D. Maria II), Querido Monstro (Teatro da Guarda), A Hora de Visita (Trindade), Tratado da Invenção das Coisas.

Paralelamente, consolida uma identidade de compositor electrónico. O álbum Contraluz (2020) expõe texturas imersivas: batidas subterrâneas, melodias oblíquas, atmosferas em suspensão — música como arquitectura respirante.

Na improvisação, revela o núcleo do método. Em Londres, integra Skronk, NoiD, Cojones Spirituales, Fuck Popx 2. Em 2018, funda com Filipe Sousa e Kate Smith o colectivo a r I r a. A improvisação é filosofia de atenção, ética de vulnerabilidade e inteligência colectiva; research em tempo real que transforma a sala num estúdio poroso.

A persona Fontelo (2018-2020) condensa a pesquisa ritual: apresentada no Reino Unido, Portugal e Itália, desloca o foco do “eu” para um sistema de relações. No Jardins Efémeros, ao transferir a figura para Lia Vohlgemuth e manter para si a manipulação sonora, Veiga reconfigura autoria e presença: a obra já não coincide com o corpo do autor — circula.

[III — Moldura Expandida: vídeo, instalação, ambientes sensoriais]

Da cena à imagem, a passagem não é fuga de disciplina, é prolongamento. “Zero.8” (2014), nos Jardins Efémeros, propôs uma deriva áudio-visual feita de recolhas urbanas reconstituídas como paisagens oníricas.

Como realizador, assina Boa Morte (2018), Mugre (2019), Carnival of Resistance (2019), 3 Scherzi 4 Strata (2021). Em Color of Healing (2023), com Deanna Sirlin e Opal Moore, conjuga imagem e paisagem sonora numa tessitura apoiada pela Andy Warhol Foundation.

A sua lógica é sinestésica: o som engendra a imagem; a imagem devolve som. No workshop “Cartographias do Invisível”, o áudio funciona como indutor de movimento filmado; na Videodança (Escola Superior de Dança), a câmara assume papel de parceiro coreográfico. O resultado é uma prática única: compor sensações num campo onde tempo, espaço, luz e som se ajustam pela mesma bússola rítmica.

[IV — O Artista-Facilitador: pedagogia e prática social]

A leitura de Veiga não se esgota em palcos e galerias. Há um trabalho de mediação que se assume como centro ético da sua obra. Entre 2016 e 2019, como Artista Associado da londrina Spare Tyre, integra projectos de artes participativas, nomeadamente “Suspicious Minds” com a Lambeth Mencap, focado na inclusão de adultos com dificuldades de aprendizagem.

Em Portugal, projectos como a “Performance Electroacústica Comunitária” (2023) — com Yola Pinto e o Projecto DME — reúnem comunidades terapêuticas e estudantes de conservatório em criação conjunta. “Corpo Futuro” (2022) e “RELOAD – nenhum lugar é, sem um Génio…” mantêm a mesma ética de co-criação, dissolvendo fronteiras entre artista e público.

A pedagogia assenta na escuta como método: ensinar deixa de ser transferência de conteúdos para se tornar activação de atenção. Em escolas portuguesas, britânicas e norte-americanas, Veiga instala laboratórios de descoberta onde o erro é dado fértil e a curiosidade, instrumento.

[Coda II — Tecendo os fios]

Da condição de actor ao estatuto de arquitecto sónico, do videoartista ao facilitador social, o eixo persiste: a escuta como centro das linguagens. A improvisação é a ética; a sinestesia, o método; a partilha, a finalidade. A sua carreira demonstra que arte e vida são o mesmo gesto: criar é escutar; escutar é transformar.

Em cada performance, filme, instalação ou oficina, repete-se a pergunta decisiva: como pode o som tornar-se forma de estar juntos? Nuno Veiga responde com práticas, não com proclamações. É por isso que a sua obra nos restitui a convicção de que a arte não serve para representar o mundo, mas para o re-inventar em vibração — até que o ouvido, tornado corpo, redesenhe a própria ideia de comum.


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