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Rui Miguel Abreu

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Em constante mutação.

Novas Áfricas

(Em Novembro de 2010, a Gulbenkian pensava no “Próximo Futuro”. A publicação de um conjunto de textos incluía uma reflexão de Rui Miguel Abreu sobre a ideia já então desadequada de world music. No dia em que os GRAMMYs anunciam a mudança de nome da categoria, recuperamos a peça do director do Rimas e Batidas).

Em Bicycle Diaries (ed. Faber and Faber, 2009), David Byrne olha para as cidades como uma espécie de cicatrizes da história e descobre a memória que se prende às coisas, às práticas e às pessoas. Quando escreve sobre Buenos Aires, o também músico e artista plástico David Byrne analisa uma certa reescrita da história no texto do tecido cultural referindo como a memória da influência de África foi minimizada na vivência cultural da Argentina, servindo essa atitude para a afirmação de um cosmopolitismo mais europeu. Mas África, escreve ele, continua presente – mais ou menos dissimulada, mais ou menos assumida, mas sempre presente. No Brasil, afirma também, África surge de forma muito mais transparente. Caetano Veloso também aborda a questão de África e da formação de uma identidade em O Mundo Não é Chato (ed. Quasi Edições, 2007), citando igualmente o ex-Talking Heads: “Não faz muito tempo, li no New York Times um artigo de David Byrne em que uma sonora declaração de ódio ao conceito de world music funciona como alerta contra o risco de os formadores de opinião actuantes nos países ricos virem a sentir-se no direito de decidir o que é e o que não é autêntico na produção artística de países pobres”. Neste momento, parece assistir-se a uma inversão de sentido nesse campo e é a produção artística desses países pobres que parece ditar direcções no planeta pop.

Nos últimos anos, um conjunto de importantes edições discográficas avançadas por editoras como a Soundway de Miles Cleret, a Analog Africa de Samy Ben Redjeb, a recentemente reactivada Strut ou a espanhola Vampi Soul tem vindo a forçar uma redefinição da história global da música popular, criando novas associações e fluxos que tendem a abalar o tradicional modelo que tem na pop produzida em Inglaterra e nos Estados Unidos o farol difusor de influências que o planeta segue a um só passo. O futuro precisa de memória e a memória da pop está a transformar-se todos os dias.

A série Panama e lançamentos como Palenque Palenque ou Tumbélé da Soundway, compilações como Cumbia Beat e, sobretudo, The Afrosound of Colombia lançadas na Vampi Soul ou ainda um Mambo Loco de Aníbal Velásquez recentemente acrescentado ao catálogo da Analog Africa são sinais de uma mais alargada tendência que tem permitido desconstruir a tal imagem forçada de que Byrne falava no seu artigo do New York Times. De certa maneira, a globalização pop facilitada pela imposição da televisão nos anos 60 criou a ideia de um presente uniformizado e de que praticamente todos os músicos do mundo faziam nessa época o possível e o impossível para imitarem os Beatles. Não uma nação, mas um planeta curvado a um mesmo ritmo.

A internet, por um lado, e a própria relação da pop com a memória, por outro, permitiram que a última década tenha sido palco de um importante esforço global de reinvenção do passado através de uma exploração quase arqueológica de diversas “cenas” exteriores ao tal eixo dominante estabelecido entre Inglaterra e os Estados Unidos. Essa actividade deve grande parte do seu impulso a uma cultura particular dentro do universo da pop que sempre favoreceu o papel da memória contrariando dessa forma a noção mais aguda da pop como um território de consumo celebrado com urgência e no presente (a popular série de compilações de êxitos Now não podia ter título mais apropriado). Essa cultura particular assenta na figura do DJ, uma espécie de arquivista e curador do passado em busca permanente de novos estímulos para a sua criatividade. Primeiro com o hip hop e rapidamente com outras tipologias apontadas ao centro da pista de dança, o passado passou a ver o seu valor reavaliado dentro da própria indústria musical que, assim, nos últimos 20 anos – a baliza temporal que corresponde precisamente à imposição da prática de citação da memória musical por via tecnológica: o que permite que Jay-Z, Madonna ou os Daft Punk registem sucessos apoiados na “reciclagem” de criações musicais do passado – explorou todas as avenidas possíveis dos seus fundos de catálogo, reeditando jazz, funk, soul, reggae, disco e outros géneros mais comprometidos com o ritmo.

Com a comunicação e a investigação facilitadas pela disseminação global da internet, não tardou para que as atenções de alguns “arqueólogos” se tenham voltado para África, sobretudo à entrada deste novo século. A britânica Strut Records foi pioneira no estabelecimento de uma ponte entre África e o universo dos sons de clubes explorados pelos DJs ao incluir simultaneamente no seu catálogo álbuns de artistas como Segun Becknor, Tony Allen e Peter King, de bandas como os Blo e compilações como Nigeria 70 ao lado de edições focadas no disco sound, no funk e no hip hop. Além de contrariarem a ideia imposta pela tal noção errónea de World Music mencionada no artigo de Byrne, afirmando África como espaço de sonoridades urbanas, electrificadas e avançadas, estes lançamentos mostravam ainda que o continente negro não era palco exclusivo de Fela Kuti, Miriam Makeba ou Manu Dibango – para citar talvez as maiores estrelas africanas nascidas nas décadas de 60 e 70 – e que a música aí produzida ia muito para lá do mero mimetismo da globalização pop operada a partir da rádio. Depois, a Luaka Bop do próprio David Byrne (através da excelente compilação Love’s a Real Thing – The Funky Fuzzy Sounds of West Africa) e principalmente a Soundway de Miles Cleret começaram a mapear novas avenidas com uma igualmente inédita perspectiva em meados desta década.

A série Ethiopiques – que em finais dos anos 90 revelou ao mundo Mulatu Astatke ou Mahmoud Ahmed – tinha procurado uma espécie de proto-world music na memória da produção etíope, mas essa estava longe de ser a perspectiva de Miles Cleret na sua exploração do passado do Gana ou da Nigéria. Miles apresentou ao mundo um novo tipo de editor, mais arqueólogo do que estudioso de biblioteca, mais interessado na descoberta de artefactos e relíquias do passado do que no gesto mais antropológico de registo da voz de uma determinada comunidade, como aconteceu com muitas das editoras de world music que desde os anos 80 começaram a trazer músicos africanos para gravarem nos estúdios de Paris ou Londres. Os seus lançamentos nasciam apoiados numa observação directa do terreno, da investigação da memória através da localização dos protagonistas exaltados nas capas de velhas rodelas de vinil. Esta nova abordagem revelou outra África, sublinhada depois por lançamentos da Analog Africa, Vampi Soul, de uma Strut regressada ao mundo dos vivos já na segunda metade desta década e ainda por propostas da Shadoks, Now Again, Honest Jon’s, Daptone ou Academy LPs. Todas elas apostadas em revelar um outro continente, rico na diversidade musical, avançado nas suas propostas de fusão das sonoridades aprendidas na globalização com as suas próprias marcas de identidade local.

Nos últimos dois anos, esta nova perspectiva de pensar o passado foi alargada à América Latina, com a inscrição nos catálogos das editoras acima citadas de música da Colômbia, Panamá, Peru ou das Caraíbas francesas. Acrescente-se ainda a esta lista a ilustração de uma Cuba tão distante do Buena Vista Social Club como próxima dos mais suados palcos de funk de Nova Iorque ou Filadélfia nos dois volumes de Si Para Usted agora inscritos no catálogo da norte-americana Light In The Attic e começa-se a compreender que o passado não era bem o que julgávamos ser.

Estes dez anos de reinvenção da memória de África à luz de todos estes lançamentos tiveram efeito directo na música dos Vampire Weekend, Extra Golden ou até dos Franz Ferdinand que fizeram bandeira do seu comprometimento com o som cristalino das guitarras da África Ocidental – e haverá gente dos Franz Ferdinand no próximo álbum da renascida Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou, resgatada aos labirintos da memória precisamente pela Soundway e pela Analog Africa. A lista alarga-se se pensarmos nos claramente devotos Heliocentrics, Budos Band, Karl Hector & The Malcouns ou Cacique 97, representantes portugueses na cena global e bastante agitada de afrobeat que se alarga dos Estados Unidos ao Japão. É por isso tempo de pensar no que poderá gerar o actual esforço de reedições que exploram catálogos tão importantes como a histórica Discos Fuentes da Colômbia, casa de um tão exótico quanto verdadeiro Fruko, por exemplo.

No país com a segunda maior população da América do Sul, logo depois do Brasil, os DJs locais descobriram nos anos 70 ligações entre a sua própria história e a de África e reinventaram a cena musical local ao tocarem o afrobeat produzido na Nigéria – facto que influenciou os músicos locais. Wganda Kenya é um dos mais destacados nomes dessa cena que projectou África na América Latina. E é a partir dessa mesma Colômbia que Will Holland agora desenvolve a sua carreira, estabelecendo com o seu Combo Bárbaro uma ligação directa a este passado histórico. Will Holland, homem por trás dos projectos com marca Quantic (incluindo uns Quantic Soul Orchestra bastante influenciados por África, tal como Stampede bem demonstra), partiu para a Colômbia em busca de discos carregados de groove, em busca de novas Áfricas que o inspirassem. E o futuro desenha-se agora nas sinuosas assinaturas rítmicas de bandas como Los Soneros de Gamero, Cumbia Siglo XX, Fruko Y Sus Tesos ou Michi Sarmiento Y Sus Bravos que deixaram um poderoso legado impresso em vinil.

“O conceito de música negra é impreciso e está em constante mutação”, escrevia John Storm Roberts em Black Music of Two Worlds (ed. Morrow Paperback Editions, 1974), adiantando depois que o seu livro não era uma história da música afro-americana precisamente porque “desconhece-se demasiado da música negra da América do Sul e das Caraíbas para se escrever uma história”. Essa história é o nosso próximo futuro.

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