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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 12/04/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #93: hyper.object / José Lencastre Common Ground / Hugo Carvalhais

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 12/04/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[hyper.object] inter.independence /  Phonogram Unit

hyper.object é o quinteto de Rodrigo Pinheiro (piano), Carlos Santos (electrónica), Hernâni Faustino (contrabaixo), João Valinho (bateria) e João Almeida (trompete), colectivo que claramente seguiu um programa neste trabalho de estreia. Explica-se tudo nas notas: “Em inter.independence a premissa definida para a sessão de gravação foi que, além de todos os músicos terem total liberdade para improvisar e escolher as suas ideias musicais, deveria haver um foco activo para cada um desenvolver as suas ideias individualmente e não reagir imediatamente ou dialogar directamente com os outros músicos do grupo. O que estava a ser experimentado era a criação de várias camadas individuais e independentes que interagissem organicamente, para que a tensão surgisse através das texturas e das interacções esperadas e inesperadas criadas entre estas diferentes camadas de que cada músico estava a tratar”. 

E para entender um pouco melhor o ponto de partida para a gravação que decorreu no Timbuktu Studio a 20 de Setembro de 2020 (com Carlos Santos aos comandos dos microfones e gravador) nada como procurar o significado de hiperobjecto: o termo, criado por Timothy Morton no livro Hyperobjects – Philosophy and Ecology after the End of the World (Minnesota University Press), significa “um objecto ou evento cujas dimensões no espaço e no tempo são enormes em relação a uma vida humana, por exemplo, um buraco negro, a floresta amazónica, um campo petrolífero, e especialmente o clima”. Ou seja, Pinheiro e companhia criaram aqui um conjunto de orgânicas propostas individuais que ao longo de quase 50 minutos se vão quase imperceptivelmente cruzando e interligando desenhando no processo um corpo coeso, embora absolutamente livre em termos musicais, sem estrutura aparente, sem pulso definido, mas de densidade absoluta.

Há nestes músicos uma clara divisão geracional: Rodrigo, Hernâni e Carlos são, como eles mesmos se apresentam, veteranos da cena lisboeta de improvisação livre ao passo que os “Joões” Almeida e Valinho são bem mais jovens. E isso poderia significar dois posicionamentos distintos, duas abordagens informadas por diferentes culturas e experiências. E embora isso possa de facto ser um factor, a força da premissa original é tamanha que funciona como uma espécie de “igualizador”, dando a cada um dos indivíduos aqui presentes um mesmo ponto de partida. E isso rende uma música altamente abstracta, funda, não-idiomática, auralmente próxima de alguma música de câmara contemporânea e verdadeiramente experimental. Aqui tudo se faz de subtileza, como se nascesse do próprio silêncio e a ele aspirasse: “clusters” de notas no piano em cascata constante, um quase “invisível” fio electrónico que serpenteia entre os restantes sons, um contrabaixo que nos deixa ouvir cordas e madeira, uma bateria que se expõe em espasmos sem nunca atropelar os restantes sons e um expressivo trompete enredado num solilóquio expressionista, largando gotas de sons que escorrem para uma ampla tela e que resultam num festim colorido tão complexo quanto indiscritível. Será buraco negro ou floresta tropical, combustível fóssil ou casulo climático o que aqui nos envolve? É música que pede atenção e nos dá a recompensa da permanente surpresa.



[José Lencastre] Common Ground / Phonogram Unit

Um nome na capa, o do saxofonista José Lencastre, mais quatro no verso: os do violinista veteraníssimo Carlos Zíngaro, da pianista Clara Lai, do contrabaixista Gonçalo Almeida e do baterista João Sousa. E lá dentro? “Common Ground explora novas possibilidades sónicas em formato de quinteto. Há diálogo e interacção num modo de procura, já que os músicos buscam unidade em linguagem e som dentro das suas diferentes abordagens e backgrounds”. Soa quase a premissa inversa à do trabalho anterior do colectivo hyper.object, certo? Para quem assina as económicas notas de lançamento, não restam dúvidas: “Música simultaneamente intensa e delicada. Contemporânea, abstracta, mas também livre e groovy”.

E atente-se a este derradeiro classificativo: “groovy”. Há de facto por aqui um sentido de propulsão, de propósito, em que o colectivo embarca, como se tivesse perfeita noção de que está numa viagem. O mapa pode ter-se perdido e a paisagem ao redor pode ser estranha, “exótica”, como se tivessem todos acabado de aterrar num novo planeta, mas estes músicos sabem que caminham sobre o mesmo terreno, procurando força na interligação das suas diferentes expressões, avançando determinados, embora de forma cautelosa. Lencastre e Zíngaro guiam os restantes, dialogando e respondendo organicamente um ao outro, e por trás, a secção rítmica cria o chão sólido sobre o qual se evolui, com a bateria a impor-se como centro gravitacional para onde os restantes elementos convergem, inquisitivos, irrequietos, mas sabedores do centro que ao lado deles pulsa. E isso dá ao álbum uma coesão sónica tremenda – qualidade que a límpida gravação de Joaquim Monte no histórico Namouche reforça –, impondo-se este Common Ground como mais uma preciosa conta no rico rosário que José Lencastre tem vindo a desenrolar nos últimos anos, em nome próprio ou nos múltiplos projectos em que investe o seu singular sopro.



[Hugo Carvalhais] Ascetica / Clean Feed

Quarto álbum de Hugo Carvalhais em nome próprio em 12 anos de lançamentos na Clean Feed. E a boa notícia é que Ascetica interrompe um jejum editorial de 7 anos: Grand Valis data de 2017. E o novo trabalho mostra Hugo Carvalhais à frente de um ensemble bem diferente: Mário Costa ocupa a bateria, Gabriel Pinto toca piano, órgão e sintetizador, Fábio Almeida encarrega-se de saxofone alto e flauta, Emile Parisien traz o seu saxofone soprano e Carvalhais espraia-se em contrabaixo e electrónicas.

A pausa pode ter sido grande, verdade, mas há um plano na arte de Hugo Carvalhais que tem vindo a explorar temáticas muito precisas em cada um dos seus registos, como bem explicado nas notas de lançamento expostas na página Bandcamp dedicada a este trabalho: “Nebulosa (2010) introduziu-nos ao infinitamente grande. Particula (2012) era sobre o infinitamente pequeno. Entre estes dois extremos incomensuráveis, Grand Valis (2015) questionava a natureza da realidade exterior que percebemos e por onde nos deslocamos na vida quotidiana. E aqui encontramos a nova Ascetica, um mergulho no nosso interior e nas profundezas da consciência que sempre esteve lá desde o início da experiência humana. É neste lugar insondável que desde o início dos tempos temos sido confrontados com enigmas, beleza, medo, maravilha, luz e escuridão”, explica-se.

“Envolta em estranheza e mistério, Ascetica baseia-se na busca desses momentos fugazes, quando algo mágico ocorre. O termo ‘mágico’ é uma simplificação – porque estes momentos são realmente inexplicáveis. Eles só ocorrem de vez em quando. Nós não sabemos porquê nem como. Como amantes de música jazz, por vezes reconhecemo-los. Essa é a busca. Isso é o que Carvalhais está a tentar alcançar. Encontramo-los na Ascetica“, assegura Gonçalo Falcão nas reveladoras notas de capa.

Esta é, como já se percebeu, uma música inquisitiva, de busca da matéria primal e funda que nos define a todos. É, por isso mesmo, profundamente cerebral, mas igualmente imbuída de uma dimensão emocional que a humaniza e que nos atrai empaticamente. Embora seja o líder, Carvalhais não é aqui o centro. Fábio e Emile e também Gabriel, sobretudo quando assoma ao órgão (que aqui não enjeita uma certa solenidade, como por exemplo se sente de forma nítida em “Amethist shot”, em que dá o mote solista inicial), tecem juntos a trama melódica e harmónica que confere densidade ao álbum, com a bateria e o baixo a assumirem uma cumplicidade natural que suporta todo o edifício aqui erguido. Há um momento no já citado “Ametist Shot”, em que a bateria se entrelaça num pulso electrónico repetitivo criando um groove de solidez tectónica a que o alto de Fábio Almeida se cola com um vigor e entusiasmo contagiantes. Essa energia, certamente derivada da moldura conceptual proposta pelo líder, atravessa todo o disco que proporciona a quem o escuta atentamente uma venturosa viagem, plena de arrebatadores diálogos, preenchida com entusiasmantes e bem diferenciadas etapas, umas mais tranquilas nos seus poéticos baladismos, outras mais exultantes, com cadências mais acentuadas que exigem empenho até físico a todos os “tripulantes”. Todas elas são dignas de nota, cada uma explorando um ângulo novo que premeia a audição repetida. Correndo tudo bem, não teremos que esperar mais sete anos por novo estudo sério de Hugo Carvalhais.

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