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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 16/03/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #89: Jameszoo

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 16/03/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Jameszoo] Blind / Ninja Tune

Mitchel van Dinther deve ter uma incrível agenda de contactos. Em Blind, o seu novíssimo álbum (o terceiro depois de Fool, de 2016, e Melkweg, de 2020), participam (respire-se fundo…) o teclista holandês Niels Broos, o baixista sueco Petter Eldh, o baterista britânico Richard Spaven e o também baterista, embora suíço, Julian Sartorius (todos eles já tinham colaborado em Fool), a violinista holandesa Diamanda La Berge Dramm, o pianista e organista inglês Kit Downes (que acaba de lançar, juntamente com o já mencionado Petter Eldh e ainda James Maddren, o álbum Vermillion,na ECM), o trompetista americano (e nosso vizinho…) Peter Evans, o veteraníssimo saxofonista free britânico Evan Parker, o baterista alemão Christian Lillinger, o seu companheiro na Brainfeeder Oliver Johnson (também conhecido como Dorian Concept), o saxofonista americano John Dikeman (também acaba de lançar, juntamente com Pat Thomas, John Edwards e Steve Noble o novo álbum Volume 1, na 577 Records; e note-se, já agora, que em 2020 gravou na portuguesa JACC Records juntamente com Luís Vicente, William Parker e Hamid Drake o álbum Goes Without Saying…) e ainda (ufa…)  o pianista britânico Matthew Bourne. Nomes com pergaminhos mais do que firmados em alguns dos territórios mais avançados da música contemporânea e que no entanto não surgem aqui como troféus ou solistas na tradicional acepção do termo, antes como cúmplices de uma aventura diferente.

Blind foi gravado em reclusão nos Willem Twee Studios, paraíso para os amantes de tecnologia analógica que se situa em Den Bosch, Países Baixos, mas com as múltiplas contribuições a terem sido registadas à distância, noutros estúdios. Para lá do álbum, existe também um curto filme que resulta da gravação de uma série de conversas entre van Dinther e Said Gharbi, um músico cego que foi forçado a ligar-se a outros sentidos depois de perder a visão para ser capaz de continuar a tocar. Outro dado importante para se entender o complexo projecto que é Blind prende-se com a pergunta que Jameszoo colocou ao aclamado realizador de culto Alejandro Jodorowsky: “Como mudo de forma?”. A resposta, explica o autor, veio sob a forma de uma leitura de tarot com cerca de 15 minutos: “Senti que ele me conseguia ver a mim e ao meu mundo sem que eu alguma vez tenha estado fisicamente perto dele”. No álbum, em jeito de interlúdio, escuta-se a voz de Jodorowsky a garantir “Querido Mitchel van Dinther vou fazer o possível por ser-te útil”. Uma das ideias que o realizador chileno-francês oferece ao produtor holandês é até algo óbvia: “veste-te completamente com roupa da tua mulher”… Existe, como não podia deixar de ser, um baralho de cartas de tarot que pode ser adquirido juntamente com o álbum.

Nas notas de lançamento, Jameszoo clarificou a sua abordagem para este ambicioso projecto: “Na música e noutras artes, há sempre uma clara ênfase no artista. Que compositor, que solista, que executante e as diferentes ênfases entre todos eles pintam o que escutamos. É possível”, questiona Dinther, “criar algo que passe ao lado disso? Um projecto que force uma escuta activa e objectiva?” Bem, Eduardo Lourenço escreveu que nada existe “mais propício do que a música para justificar o abismo que há entre senti-la e compreendê-la” (uma das incríveis notas que se encontra na recolha de escritos dispersos que é Tempo da Música, Música do Tempo). O músico e produtor holandês é, no entanto, suficientemente modesto para admitir ter soçobrado perante tamanha proposta conceptual: “Nem sequer cheguei perto, para ser honesto. Mas todas estas tentativas (às vezes palermas…) tornaram-se na espinha dorsal deste projecto”.

A impressionante lista de colaboradores arregimentados para Blind foi uma das formas de Jameszoo minimizar a sua presença nesta delicada equação, orientando-os à distância para que trabalhassem em cima das suas ideias iniciais, se possível obliterando-as. Quando diz que apreciou o processo de “descontrair e ouvir atentamente” os resultados, Jameszoo pode estar a admitir a existência do tal abismo que Eduardo Lourenço garantia estar aberto entre a possibilidade de sentir a música e de a compreender. No caso concreto do material que se viria a estruturar em Blind, Dinther terá desistido de tentar compreender o seu papel como autor ou compositor, valorizando antes o acto de sentir de forma intensa aquilo que lhe chegava dos músicos que desafiou a trabalharem sobre as suas ideias. Para lá do esvaziamento do ego que implicou aceitar o que outros criadores acrescentaram ao seu próprio projecto, Jameszoo procurou ainda subtrair-se enquanto “solista” ao gravar instrumentos mecânicos como o Disklavier, capaz de executar passagens complexas e virtualmente impossíveis para qualquer ser humano, por muito virtuoso que possa ser. “Ajudou-me a desligar-me do aspecto humano”, refere ele ainda nas já mencionadas notas de lançamento.

Ora, tudo isto resulta numa música densa, opaca e obtusa, eventualmente de difícil compreensão, mas que premeia o ouvinte que abdica dessa via de abordagem e se deixa cair no abismo do sentir. “Bugati”, por exemplo, soa a música de “saloon” steampunk tocada por um autómato embriagado e por um conjunto de bateristas cegos que não sabem exactamente onde foram dispostos os tambores que precisam de percutir. Os temas fazem-se de fragmentos aparentemente desconexos, arpégios sintetizados, detrito percussivo, limalhas aurais de diferentes texturas, atiradas umas contra as outras sem aparente sentido. E, ainda assim, este universo de sons move-se com uma fluidez cerebral funda, como sinapses numa intrincada rede de filigrana nervosa, uma espécie de free jazz executado por diferentes brinquedos a pilhas, cada um fechado na sua própria velocidade, sugando a energia disponível com diferentes intensidades. E se “For Dummers (and guitarists)” parece ter sido gravado por um par de bateristas (e pelo menos um guitarrista) através de uma ligação zoom em que todos resolveram desligar a escuta, limitando-se a fazer o que tinham a fazer sem saber o que sucedia do lado de lá da câmara, já “My Kingdom for a Horse”, a piéce de resistance  de quase 9 minutos que fecha o álbum, nasce do silêncio num subtil drone que se eleva em espiral e se esfuma numa cúpula de reverberação antes de se extinguir completamente num vórtice de ruído para revelar deois uma grande câmara, ampla e quase vazia, onde apenas resistem ténues ecos das entranhas de todas as máquinas que se fizeram ouvir nos 30 e tal minutos anteriores. Não há tempo aqui e o espaço é difícil de descortinar já que o mapa que Jameszoo propõe é tão abstracto quanto ininteligível. Mas, por vezes, só se encontra quem não teme perder-se. Não é preciso compreender o mapa, basta sentir o território.

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