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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 01/03/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #87: PEACHFUZZ / Rodrigo Amado Northern Liberties

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 01/03/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[PEACHFUZZ] Peachinguinha / Silent Water

Nos filmes catástrofe – e havendo de todos os géneros, refiro-me especificamente aos que tratam de fenómenos meteorológicos extremos – quando três grandes tempestades se encontram geram ciclones de proporções bíblicas que normalmente causam grandes estragos e algumas graves dores de cabeça aos protagonistas. Ora bem, os três intempestivos músicos que se reúnem em PEACHFUZZ só correm o risco de nos destruir a inércia ou o sono, mas têm de facto a força de um ciclone sónico de grande dimensão. Senão vejamos: João Almeida, trompetista que ignora as fronteiras que eventualmente possam existir entre o jazz mais ou menos free e a música improvisada mexendo-se livremente por onde a sua vontade e criatividade o conduzem, deixou marcas recentes nos Garfo ou Chão Maior e ainda no Refraction Quartet de Rodrigo Amado, além de não ser avesso a cruzamentos com músicos como Gonçalo Almeida, João Lobo ou Ricardo Jacinto, para não alongar demasiado a lista. Por sua vez, Norberto Lobo é um incansável guitarrista com vasta obra a solo que o firmou como um poliglota de amplos recursos que também têm sido colocados ao serviço de projectos como OBA LOBA, Montanhas Azuis, Chão Maior ou, mais recentemente, Fumo Ninja, para lá de acumular múltiplos encontros com músicos tão distintos como Naná Vasconcelos ou Rhys Chatham. Finalmente, há que considerar João Lopes Pereira, baterista inquieto cujo pulso firme tem feito estremecer aventuras como Ricardo Toscano Quarteto, ¡GOLPE!, CENTAURI ou Practically Married surgindo ainda em projectos de André Fernandes ou Sara Serpa, por exemplo. Power-trio, sem a menor sombra de dúvida.

Em Peachinguinha, Almeida, Lobo e Lopes Pereira apresentam o resultado de exploratórias sessões conduzidas em residência na Fonte Santa, no Alandroal, gravadas pelo próprio João Almeida e depois misturadas (e masterizadas) por David Zuchowski no Davernoise Studio de Chicago, Illinois. O álbum apresenta quatro peças, todas imaginativamente tituladas – “Peaches Brew” (olá, Miles); Maria João Peach (olá, senhora Pires); “Peachinguinha” (olá, senhor Alfredo ); e, finalmente, “Peachhiker’s Guide to the Galaxy” (olá, senhor Adams) – e todas gravadas sem mapa, sem planos prévios, colocando-se a música literalmente à mercê dos elementos: há o ar de João Almeida, feroz, expressivo, capaz das mais suaves brisas ou das mais turbulentas espirais; a terra de João Lopes Pereira, verdadeiramente tectónico, firme como as montanhas, sinuoso como os mais fundos canyons; e, finalmente, o fogo que resulta das faíscas libertadas por Norberto Lobo, um guitarrista capaz de tudo, sobretudo de nos surpreender com cada novo som que arranca às seis cordas devidamente amplificadas e processadas. Há momentos em que o encaixe das tais três tempestades é tão perfeito que se diria que tudo isto foi gravado com partituras à frente, mas isso é apenas fruto de um entendimento mútuo fundo e de uma coragem comum em abdicar de fórmulas ou códigos que garantem sintonia com práticas já estabelecidas em favor do estabelecimento de novas formas que captam a atenção de quem escuta atentamente e não a largam até ao fim – são 33 minutos que ora parecem 2 ou 3, ora soam a 60 ou 70, tamanha a fluidez, na primeira instância, e a profusão de ideias, na segunda. Certo, certo é que à sua passagem, tudo muda. Para melhor.



[Rodrigo Amado Northern Liberties] We Are Electric / Not Two

A gravação é de Cristiano Nunes e foi feita na Galeria Zé dos Bois no Verão de 2017 sendo posteriormente misturada por Joaquim Monte e Rodrigo Amado (David Zuchowski assina, uma vez mais, a masterização). Ao leme do barco está Rodrigo Amado equipado com o seu tenor, mas a remar com força atrás de si seguem Thomas Johansson no trompete, Jon Rune Strom no contrabaixo e Gard Nilssen na bateria. Os músicos noruegueses conhecem-se bem, tendo-se já cruzado de uma forma ou outra em ensembles dirigidos por Gard Nilssen ou Jon Rune Strom – todos dominam em igual medida as dinâmicas necessárias para se funcionar dos dois lados da barricada que separa os mais aventureiros e ainda assim composicionalmente estruturados terrenos do jazz moderno das não mapeadas zonas livres onde o respeito pelo instante e a confiança no instinto e na experiência são atributos imprescindíveis. 

Amado, já se sabe, vem de um 2021 ultra fértil em projectos que conquistaram justo espaço nas listas que resumem para o futuro o melhor que esse ano nos deu. E aqui volta a reclamar espaço presente, ainda que recorrendo a arquivos recentes, com um trabalho de intensidade máxima, mesmo que a electricidade reclamada no título esteja ausente dos instrumentos escolhidos. Seja como for, e como toda a explosão necessita primeiro de uma faísca, é com “Spark”, tema longo que se espraia para lá dos 17 minutos, que se abrem as “hostilidades”, com cada um dos músicos a mergulhar de olhos fechados num turbulento oceano de ritmos, de fraseados soltos e assertivos, com Amado e Johansson a aproveitarem da melhor maneira o rolo compressor rítmico que Strom e Nilssen cedo colocam em marcha, com frases de onde se soltam fagulhas de absoluta mestria. 

Nem tudo é tumulto, por aqui, no entanto: nas peças seguintes – “Intensity” e “Activity”, ambas em torno dos 12 minutos de duração – há espaço para outro tipo de relações serem estabelecidas, com o carácter intensamente propulsivo da primeira peça a ser reformulado para toadas mais contemplativas que Rodrigo Amado aproveita no arranque da segunda metade de “Intensity” para expor todo o seu arsenal discursivo com frases incisivas que parecem a espaços ecoar a tradição que tão bem conhece sem nunca perderem de vista o momento e o contexto específico em que estão a ser proferidas. Esta é música de intensa comunicação e isso fica explicito em “Activity” quando os dois sopros se entrelaçam em longos mantras de delicada empatia, facto extraordinário tendo em conta que esta era apenas a terceira vez que estes quatro músicos se encontravam no mesmo espaço.

A peça final, a mais breve do conjunto aqui exposto com perto de 5 minutos e meio, poderá também ser a mais complexa por ser tão concentrada: arco percussivo sobre contrabaixo, bateria com swing desconstruído e metais a reflectirem mutuamente o brilho do outro, numa conversa altamente eloquente que exige bastas repetições para ser completamente fruída. Tudo somado, talvez haja de facto aqui uma electricidade presente: não a que faz funcionar instrumentos, mas a que resulta das rápidas sinapses que a invenção instantânea implica. E essa é energia completamente sustentável.

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