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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 17/02/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #85: Ornette Coleman

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 17/02/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Ornette Coleman] Round Trip: Ornette Coleman on Blue Note / Blue Note

Quem porventura possa ler semanalmente esta coluna já há-de ter percebido que por aqui se passa boa parte do tempo de ouvidos colados no chão a escutar o tremor do presente, mas, ocasionalmente, também não se recusa levantar a cabeça para observar horizontes passados. Afinal de contas, o nome da coluna já sugere fascínio pela história que nos empurrou até aqui. Não havia, por isso mesmo, forma de contornar esta tremenda edição na série Tone Poet da histórica editora estabelecida por Alfred Lion em 1939. Round Trip, como esclarece o seu subtítulo, reúne os álbuns que Ornette Coleman gravou para a Blue Note – os dois volumes de At The Golden Circle Stockholm (1965), The Empty Foxhole (1966), New York is Now! e Love Call (ambos de 1968) e ainda o único trabalho neste selo em que surgiu como sideman, New and Old Gospel (1967) de Jackie McLean (1967). Este é, note-se, o primeiro boxset na série Tone Poet que tem conferido cuidados audiófilos às represensagens de vários clássicos do selo nova-iorquino – neste caso a masterização é de Kevin Gray da prestigiada Cohearent Audio e foi, como se poderá adivinhar, feita a partir dos masters originais em fita magnética reunidos pelo produtor Joe Harley.

Quando Coleman chegou à Blue Note em 1965 (na verdade o seu primeiro registo, que resultou nos dois volumes gravados ao vivo no Gyllene Cyrkeln de Estocolmo, foi fixado em dois dias do início de Dezembro desse ano, mas só lançado já em 1966), Ornette já tinha abalado decisivamente o universo do jazz estabelecendo, sem apelo nem agravo, a forma do jazz vindouro com a sua histórica edição na Atlantic, em 1959. The Shape of Jazz to Come apanhou-o juntamente com Don Cherry, Billy Higgins e Charlie Haden a muito literalmente reescrever as regras de toda uma cultura, descartando o amparo harmónico do piano para se concentrar na depuração melódica, usando o seu saxofone alto como uma lanterna, iluminando espaços entre notas em busca do nunca antes escutado. Depois de o ver ao vivo no Five Spot, Charlie Mingus, famosamente, declarou que testemunhou algo como “desorganização organizada ou tocar errado certo”. Depois do período na Atlantic e após uma curta pausa – para recuperar o fôlego, para se aventurar sem tutoria formal no trompete e no violino ou talvez para permitir que o tempo o apanhasse -, Coleman ingressou então na Blue Note. Thomas Conrad que assina as extensas notas disponibilizadas nesta luxuosa reedição escreve, com absoluta propriedade, sobre o som do inovador músico: “É verdade que a maior parte dos seus lamentos poderia despertar os proverbiais mortos. Mas algo aconteceu com o tom de Coleman enquanto ele esteve longe da vista naqueles dois anos.At the Golden Circle ainda é penetrante, mas mais puro. Os seus gritos são ainda mais vocais, mais humanos. O seu controlo dos micro tons proporciona novos recursos de expressão. Ele pode agora fazer a mesma nota soar extasiada ou desesperada, ou algo no meio, através de nuances microtonais”.

Na verdade, o que é de facto extraordinário nas gravações que Coleman fez para a Blue Note é constatar que o que havia de exploratório naqueles primeiros trabalhos para a Atlantic era agora uma linguagem perfeitamente dominada, com a sua fluência a revelar-se de forma clara. Para o seu compromisso na capital sueca, Coleman levou o seu novo trio com Charles Moffett na bateria e David Izenzon no contrabaixo. E, na mala, além do seu alto, um violino e um trompete. O burburinho que se escuta no arranque do primeiro set, depois das apresentações e agradecimentos, é silenciado pelo vigoroso som de Ornette no alto. O músico soa como alguém que não dá curvas e que só sabe seguir a direito independentemente dos obstáculos com que se possa deparar, tamanha a sua determinação. Secundado por dois fiéis propulsores, o saxofonista soa de facto como alguém envolvido numa cena de perseguição: é ele que vai na dianteira e se há algo de que esteja a fugir é apenas das convenções do passado – mas é óbvio que a “polícia” do bop já não o conseguia apanhar. No segundo set, que se inicia com “Snowflakes and Sunshine”, o violino é usado como gerador de ruído e entende-se que o líder do trio age como um pintor sem o menor interesse em rigor figurativo ou em qualquer tipo de representação realista na tela ao seu dispor, mas completamente investido numa multi-colorida explosão de tonalidades abstractas. Quando pega no trompete, a corrida é retomada com a urgência do seu discurso a tornar irrelevantes as arestas da sua peculiar técnica.

Neste tempo, Ornette Coleman soava tão interessado na criação como na provocação. Na verdade, era como se uma e outra fossem a mesma coisa. Talvez isso ajude a explicar a opção por gravar a sua primeira sessão de estúdio para a Blue Note – que resultou em The Empty Foxhole, com Denardo Coleman, o seu filho de apenas 10 anos, sentado na bateria. O outro músico da sessão é Charlie Haden, à época com 29 anos, menos sete que o líder. Recorrendo tanto ao trompete e violino como ao saxofone, Coleman guia aqui uma sessão de altíssimo risco que, no entanto, resulta. Mesmo “Sound Gravitation”, a única peça da sua discografia em que usou apenas o violino, soa determinada, embora, naquele tempo, Coleman tivesse menos experiência naquele instrumento do que a que o seu filho já acumulava na bateria já que a tinha recebido como presente de Natal uns 3 ou 4 anos antes. Haden, por sua vez, é aqui o centro gravitacional, a força que impede que pai e filho se percam nos confins do espaço, mas essa força exerce um efeito benigno, mantendo a música do lado de cá do caos e com uma estranha fluidez. Fascinante e intrigante em igual medida e, mesmo com todas estas décadas de permeio, um trabalho que permanece resolutamente singular.

New York is Now! e Love Call foram ambos gravados nas mesmas duas sessões na Primavera de 1968, menos de um ano após o desaparecimento de John Coltrane. O baterista Elvin Jones e o contrabaixista Jimmy Garrison, membros do famoso quarteto de Trane em que também militava o pianista McCoy Tyner, juntam-se ao saxofonista tenor Dewey Redman e ao vocalista Mel Fuhrman para secundarem o líder nas suas últimas duas sessões para a Blue Note nessa qualidade. O que aqui soa incrível são as colisões entre o tenor de Redman e o alto de Ornette. O facto de quase dispensar o violino desta vez e de soar mais contido no trompete indica que o líder – que compôs todas as melodias – estaria aí menos apostado em chocar do que em convencer os seus pares dos méritos da sua inventiva abordagem à criação musical. A música apresenta-se, ainda assim, bastante livre e incandescente, mas também bem mais estruturada, com um subtexto bluesy bem pronunciado, com todos os músicos a tocarem ao mais alto nível. “Broad Way Blues” é especialmente entusiástica: os dois sopros seguem paralelos no uníssono em que expõem o tema antes de solarem com absoluta assertividade até que a melodia se comece a fragmentar em pó de estrelas. 

Love Call soa, de facto, como uma perfeita continuação de New York is Now!: as mesmas pessoas, o mesmo contexto de gravação, mas talvez aqui a secção rítmica ganhe uma nova preponderância com Garrison e Jones a conseguirem congeminar um som massivo, monolítico, sobre o qual Redman e Coleman se degladiam sem que a velocidade alguma vez esmoreça para tempos baladeiros, excepto na mais breve de todas as peças, “Just For You”, em que os saxofones adoptam um tom mais meditativo, mas com Jones a conjurar um subtil tumulto nos seus timbalões enquanto Garrison arranca uma leve brisa do seu contrabaixo ao usar o arco. Não há repetição de escuta atenta destes dois trabalhos que não renda novas surpresas, com a tensão gerada entre os dois solistas a revelar fascinantes pormenores a cada nova passagem da agulha pelas incríveis prensagens que a Tone Poet assegura na Record Technology, Inc. (ou, vá lá, do feixe de laser ou, se tiver mesmo que ser, dos zeros e uns pelo conversor de áudio do vosso computador ou telefone).

Um ano antes das derradeiras sessões de Ornette para a Blue Note, o músico aceitou – coisa rara – ser sideman do saxofonista alto Jackie Mclean, um veterano com pergaminhos sólidos na cena hard bop que só para a Blue Note, editora com que trabalhava desde 1959, já tinha gravado dúzia e meia de títulos. Ao lado de McLean e Coleman nesta sessão, que foi lançada com o revelador título New and old Gospel, encontravam-se LaMont Johnson no piano, Scotty Holt no contrabaixo e Billy Higgins, membro original do quarteto de The Shape of Jazz to Come, na bateria. Quando o já mencionado clássico revolucionário de Ornette saiu na Atlantic, McLean começava o seu longo caminho na Blue Note, mas perfeitamente atento aos novos ventos libertários que varriam o jazz. Um ano mais novo do que Ornette, Jackie nunca se cansou de o elogiar publicamente nos anos que se seguiriam, nomeando-o como uma influência nas suas próprias explorações de território mais desconhecido. Curiosamente, quando finalmente conseguiu que Ornette gravasse consigo, tendo eventualmente na cabeça uma espécie de reactivação da premissa de Alto Madness, álbum que tinha lançado uma década antes na Prestige e que documentava o seu duelo de altos com o saxofonista John Jenkins, Coleman decidiu chegar ao estúdio de Rudy Van Gelder em Englewood Cliffs, Nova Jérsia, apenas com o seu trompete. É importante referir que muitos músicos não pouparam críticas ao facto de Ornette Coleman ter adoptado novos instrumentos numa idade tardia, sem refinar técnicas ou passar pelo longo e sinuoso caminho que segundo as “regras” é obrigatório percorrer para alcançar reconhecida mestria. Miles Davis foi um deles. Mas Ornette sabia o que fazia: para ele, pegar num novo instrumento que os seus dedos desconhecessem significava, precisamente, libertar-se de formalidades, de técnicas aprimoradas pela intensiva repetição, de memória. No entanto, basta escutar a longa abertura do álbum com “Lifeline Medley” para se perceber que Ornette sabia muito bem o que fazer com o instrumento. Este álbum tem a particularidade de marcar o reencontro de Ornette com um pianista, algo que não acontecia desde Something Else!!!!, a sua estreia como líder gravada quase uma década antes para a Contemporary. De igual modo, passariam décadas sem que tal voltasse a suceder, o que só contribui para tornar esta ocasião ainda mais especial. Este álbum teve Mclean como líder, de facto, mas entende-se a decisão de Joe Harley e Don Was, patrão actual da Blue Note, em tê-lo aqui incluído neste boxset que reúne o input de Ornette no catálogo da Blue Note já que o músico logrou imprimir de forma indelével a sua visão neste registo, escapando muito inteligentemente à tentação “duelista” ao esquecer o seu alto em casa e, ao invés, forçando o líder a experimentar ir ainda mais longe na exploração de novos caminhos. Esse diálogo é o que assegura o constante maravilhamento na escuta deste trabalho.

Round Trip é, portanto, a companhia perfeita para Beauty is a Rare Thing, a caixa que compilava na Rhino o output integral de Ornette Coleman na Atlantic, incluindo clássicos absolutos como o por aqui referido The Shape of jazz to come, mas também os decisivos Free Jazz (1961), Ornette! (1962) ou The Art of the Improvisers (que só seria lançado em 1970 e que continha material de sessões registadas entre 1959 e 1961). Dois momentos-chave no aventureiro percurso de um dos mais originais e destemidos nomes do jazz que nos deixou em 2015.

(A caixa Round Trip já se encontra disponível na loja Jazz Messengers)

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