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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 25/01/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #82: Diogo Alexandre Bock Ensemble / Nelson Cascais / Paulo Santo

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 25/01/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Diogo Alexandre Bock Ensemble] Pipe Tree / JACC Records

É Zé Miguel, cabeça e alma do JACC, quem alerta, no e-mail que dá conta do primeiro lançamento da editora coimbrã em 2022: “Conhecemos o Diogo desde os tempos em que frequentava o Curso Profissional de Instrumentista Jazz, no Conservatório de Música de Coimbra”. O orgulho por este trabalho de estreia do baterista e compositor Diogo Alexandre é, por isso mesmo, mais do que justificado. E, na verdade, há coisas várias para aplaudir em Pipe Tree: desde logo, o servir de documento de um arranque de carreira como líder, criando espaço para mais um baterista se expressar para lá da habitual função de “homem do tempo”; depois, há que louvar o crédito que é oferecido ao jovem autor quando lhe são proporcionadas as condições para reunir em estúdio um ensemble que inclui André Fernandes na guitarra, Bram De Looze no piano, Demian Cabaud no contrabaixo, João Mortágua no soprano (e alto, num dos temas), Tomás Marques no alto, Paulo Bernardino no clarinete baixo e ainda, as vozes de Cláudia Pascoal e Viktoria Pilatovick nos temas “Experiment” e “Here Kumz the Nite”, sendo que nesta última peça escuta-se igualmente contributo vocal de Diogo Ferreira – não é assim tão vulgar cruzarmo-nos com ensembles mais encorpados, sobretudo em estreias; ainda no que a questões mais formais diz respeito, este álbum é servido por uma interessante capa em que surge colagem “exótica” saída da imaginação de Cláudia Pascoal, cantora com alcance pop que aqui assume um mais discreto papel. O álbum foi gravado em duas sessões no início do último verão em Lisboa, no histórico Namouche, com Bernardo Centeno a assinar a captação e o próprio André Fernandes a tomar conta da mistura e masterização. O som é amplo como a sala do estúdio e vívido nas diferentes colorações instrumentais.

E musicalmente? É aí que reside a real mais-valia deste projecto, já que aponta para novo e sólido valor composicional na mais recente geração jazz nacional. Alexandre revela logo à partida, pela sua escolha de músicos – vários deles líderes em nome próprio –, uma séria ambição artística. E se nas suas peças se adivinha um compreensível respeito pela história, sobretudo a que se estabeleceu nos domínios pós-bop de finais do século passado e inícios deste, também por aí se encontra uma saudável vontade de apresentar uma voz própria, que acomoda ensinamentos de mestres de várias áreas, não apenas dos que possam eventualmente constar do cânone seguido no Curso Profissional que o músico frequentou – há ecos pontuais, mas reveladores, de outras músicas, do afrobeat a experimentalismos de índole mais contemporânea. A bem nomeada “Gratification” é disso exemplo claro, na subtil declinação guitarrística de uma coloração africana, que depois se desvanece numa mais abstracta aventura que esquece mapas em favor do mergulho num oceano de invenção. Escute-se também “Rationalism”, a mais dilatada composição do alinhamento que se espraia para lá da dúzia de minutos: o tema arranca com uma exposição dos sopros dispostos em uníssono e pontuada pelo ribombar do líder, com o piano a sombrear a frase inicial antes da guitarra entrar e, de forma sub-reptícia, transportar a “história” que ali se conta para outra paragem, levando o colectivo até à beira de um lago de silêncio, em que não se chega a entrar, mas com essa perspectiva contemplativa a ser suficiente para sugerir uma viagem interior, tranquila e funda, com os diferentes elementos do septeto a enredarem-se em intrincados desenhos de filigrana harmónica. A classe dos músicos convocados é óbvia e cada um é convidado a expô-la em solos criativos, servindo sempre as direcções apontadas nas composições. Não há por aqui explosões ou fogo de artifício vistoso, antes um subtil trabalho de engajamento colectivo num propósito comum, percebendo-se que cada um dos músicos soube captar as ideias do jovem líder, ousando dar-lhes a melhor das formas, exibindo todos eles um evidente deleite na entrega às diferentes peças, sem concessões ou limitações – não há aqui ninguém “distraído” com o próprio ego. Triunfo, pois claro. 



[Nelson Cascais] Remembrance: The Poetry of Emily Bronte / Robalo

De acordo com declarações de Nelson Cascais citadas na jazz.pt por António Branco, este Remembrance: The Poetry of Emily Bronte, o mais recente lançamento do contrabaixista e compositor que é veteraníssima presença no mapa jazz nacional, terá acontecido porque uma confessada admiração pela obra de Kate Bush, sobretudo “Wuthering Heights”, terá motivado um mais profundo mergulho exploratório no universo sombrio da escritora inglesa Emily Bronté que viveu durante três décadas na primeira metade do século XIX. “Fascina-me a humanidade, a fragilidade e a profundidade com que ela trata destes estados da alma presentes nas vidas de todos nós e, consequentemente, em tanta criação artística, e o modo como o faz de uma forma nem sempre óbvia, com um sublime uso das palavras e com uma ousadia, uma irreverência e uma modernidade invulgares para uma mulher no Yorkshire do século XIX”, explicou Cascais à jazz.pt. Premissa clarificada, portanto.

Aqui, Nelson Cascais dirige um ensemble que conta com Ricardo Toscano no saxofone alto, Eduardo Cardinho no vibrafone, Óscar Marceino da Graça em piano e sintetizadores e João Lopes Pereira na bateria. Um quinteto de refinada elegância a que se soma a declamação poética de Cláudio Alves plena de charme na forma como a sua nacionalidade lhe molda a abordagem ao inglês. No fundo, mais do que uma banda sonora para a poesia de Emily Bronté, este álbum reúne um conjunto de retratos para as mais densas e complexas emoções com que a autora lidou na sua curta e trágica vida, marcada pela perda provocada pela morte de entes queridos. É um disco que mapeia as emoções trágicas que inspiraram palavras de eternidade, portanto, quase sempre servido por discursos de tons sépia, sérios e solenes como não poderia deixar de ser, tendo em conta a natureza da matéria que inspira este trabalho. Toscano é de uma tão elegante quanto tocante e poética presença, afirmando-se como um solista plenamente formado, com voz tão definida e própria. E a essa elevada fasquia correspondem os restantes músicos, com Nelson a expor, sem alaridos, a sua liderança, usando o baixo como a bússola que em permanência aponta o norte das composições. A voz surge sempre rodeada de amplo espaço aberto nos arranjos de forma a colocar-nos – a nós, os ouvintes -, perante os abismos da mente criativa de Bronte tão bem desenhados nessas palavras de uma beleza fúnebre e romântica sem fim. E dessa fonte sentimental emanam depois os rios musicais que o quinteto navega com plena segurança, soando como uma unidade indivisível, mérito, certamente, do líder que os soube conduzir por tão complexos labirintos de sensibilidade. Em “Fall Leaves Fall”, por exemplo, o piano de Marcelino da Graça, embrulha as palavras em veludo melódico, numa toada baladística que os restantes companheiros seguem, dando corpo musical ao infortúnio espiritual. Depois, no remate final de “She Dried Her Tears”, a declamação torna-se suave canto: “They could not guess at midnight lone / How she would weep the time away”. E é um retrato que se resolve na sua derradeira pincelada, deixando-nos, ouvintes, com uma singular opção: regressar ao princípio.



[Paulo Santo] Águeda / Robalo

O vibrafonista e compositor Paulo Santo dirige aqui um quinteto que inclui os préstimos de João Lopes Pereira na bateria, Francisco Brito no contrabaixo, Luís Cunha no trompete e João Mortágua nos saxes alto e soprano. Águeda é um disco evocativo – a capa e o título são vénia à memória da avó do líder – e por isso assente numa certa ideia de solenidade que a música explora de forma tranquila e profunda. O vibrafone é um instrumento de imensa riqueza cromática e Santo, que tem vasto percurso académico, revela sem margens para dúvidas que lhe conhece os contornos, extraindo daí matéria relevante em termos melódicos e harmónicos, facto que acaba por ancorar a natureza do disco e o rumo do sólido colectivo aqui reunido. Uma palavra sobre os títulos das composições: com excepção da segunda peça, “Tomate com Óculos”, as restantes designações surgem em inglês (“As she swings as a po(o)p song, “Freefall”, “Hover it”, etc), o que é algo paradoxal tendo em conta a capa e o título do álbum. Talvez isso indique que as composições já existiam muito antes da gravação e da consequente vontade de usar este trabalho como veículo para uma homenagem. Mas talvez uma titulação mais próxima da história de vida do autor fizesse aqui mais sentido. Mas esse é um pormenor de somenos num trabalho extremamente bem conseguido, servido por excelentes desempenhos de todos os músicos envolvidos, de natureza dinâmica, emocionalmente variado, e sabiamente escorado por uma longa tradição jazzística de cariz boppiano. E para lá do deleite imenso que a escuta atenta de Águeda garante, este trabalho obriga a que se registe o nome de Paulo Santo para futura referência, de forma que nenhum dos seus passos seguintes passe despercebido: há por aqui demasiado de bom e interessante para que o futuro não lhe proporcione as oportunidades que certamente merece.

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