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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 12/01/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #80: Especial Roda

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 12/01/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.

Nesta edição, três lançamentos com marca Roda.



[João Mortágua & Luís Figueiredo] Kintsugi

João Mortágua e Luís Figueiredo dividem as responsabilidades neste interessante Kintsugi, consumação de uma vontade de fazer algo em conjunto já com lastro fundo. Explica-nos o Google que o título deste registo lançado pela Roda Music se refere, no plano espiritual, à aceitação da imperfeição, ao assumir das falhas que cada um carrega e que acabam por fazer de cada um de nós seres distintos, individuais, irrepetíveis. A procura, sobretudo a que se faz sem mapa, implica essa generosa entrega ao desconhecido, à possibilidade de se assumir que se está perdido antes de o rumo se revelar diante de nós. E isso é tão verdade nesta música.

Aqui, Mortágua recorre aos seus saxofones e flautas, mas também se escuta em percussão e elementos de electrónica. Por seu lado, Figueiredo entrega-se generosamente ao seu piano, sem esquecer demais teclados, electrónica, percussão e programação de caixa de ritmos. A composição – instantânea ou pré-esboçada – é responsabilidade repartida pelos dois musonautas que gravaram este conjunto de exercícios no Convento de São Francisco, em Coimbra, com Mário Pereira aos comandos de microfones, gravador e mesa de mistura. E embora este formato de intenso diálogo pudesse sugerir longas derivas, como quem caminha sem rumo pela natureza em busca de si mesmo, a verdade é que Kintsugi se faz de 13 curtas peças – a mais curta com apenas 2 minutos e 24 segundos, a mais longa a mal ultrapassar a marca dos 5 minutos -, talvez reflectindo mais um eixo de inspiração na minimal cultura japonesa, que dos haikus ao mobiliário sempre entendeu que em tanta coisa, afinal de contas, menos é mais.

O resultado é um variado conjunto de ideias postas em prática, de acidentes felizes, de imperfeições ou falhas assumidas com clareza, com ambos os músicos a revelarem uma generosa e altruísta entrega ao outro, em íntimos diálogos que oscilam entre poéticos fraseados ou passagens de maior abstracção. No tema mais dilatado, “Liquid Song”, a marcação desenhada na caixa de ritmos sustenta um esboço de balada em que Mortágua e Figueiredo se enredam antes de uma vigorosa desmontagem do tema enquanto os sons da percussão se desenrolam em sentido inverso até voltarem a encontrar o rumo propulsivo mais convencional, transportando a peça de novo a terreno contemplativamente poético. Logo depois, em “Stream III”, a passagem mais breve do alinhamento, é no ar que o saxofonista respira na direcção do microfone e que o pianista faz vibrar percutindo as cordas certas que se faz a magia, numa espiral em crescendo, como o fumo que sobe e desaparece, com laivos de swing no piano a deixarem no ar a pergunta: e se isto continuasse até ao infinito? “Journey” é outra matéria: passo acelerado imposto pela mecânica dos circuitos da caixa de ritmos e multi-pistas ocupados pelo frenético e musculado sopro de João Mortágua, mais vivo e urgente do que nunca. Se tudo correr bem, este registo não será amostra única do que o encontro destas duas mentes criativas é capaz de gerar.



[João Mortágua Math Trio] Math Trio 

Mais um trabalho carimbado por João Mortágua em 2021, desta vez à frente do trio que criou com o contrabaixista Diogo Dinis e o baterista Pedro Vasconcelos. Mas se no anteriormente mencionado Kintsugi é das falhas, da busca e da incerteza que a música se faz, aqui é da precisão de formas que se trata – com pinças, porque é de ínfimos detalhes que se completa esta matéria musical complexa. As notas de lançamento apontam para aí: “Esferas que habitam para lá de loucas aritméticas e desafiam gramáticas como quem desmonta métricas: elas são os ilustres candelabros desta nova vizinhança. É uma casa de números e um trio matemático”. O programa, tal como a música (composta, com a excepção das duas peças finais do alinhamento, por Mortágua), é poeticamente enigmático, mas, pressente-se, cuidadosamente delineado.

Os saxofonistas alto Miguel Valente e Tomás Marques surgem, respectivamente, em “Glass” e “Water”, os dois temas colectivamente improvisados que fecham o alinhamento. Por proporcionarem diálogos entre os sopros de João Mortágua e de cada um dos seus dois convidados, estas peças são feitas de uma vívida e distinta vibração das anteriores: soam mais exploratórias, alongando-se por formas menos definidas, mas ainda assim de intensidade expressiva máxima. Ao longo do álbum, o trabalho da secção rítmica de Dinis e Vasconcelos assenta na elegância e subtileza, servindo um propósito maior, autêntica mola propulsora das ideias de Mortágua, um saxofonista que, tanto no alto como no soprano, é dotado de um poder discursivo assombroso, feito de permanente invenção, com uma amplitude cromática muito pronunciada, o que proporciona uma música sempre pulsante, capaz de nos agarrar a atenção ao primeiro sopro e de nunca nos largar como bem demonstrado logo em “PH10”, o tema de abertura. A experiência que depois se desenrola a partir daí é rica e variada, como se este trio de matemáticos procurasse traduzir os segredos do universo em intrincadas equações que mesmo parecendo indecifráveis aos olhos dos leigos, não deixam de transparecer uma enorme beleza e de exercer um inexplicável fascínio. Normalmente é assim com a grande música.



[Luís Cunha] Faro Oeste

O trompetista e compositor Luís Cunha assina aqui a sua primeira edição como líder à frente de um ensemble em que se encontram Nuno Costa (guitarra), Óscar Graça (piano), André Rosinha (contrabaixo) e André Sousa Machado (bateria), um sólido conjunto de músicos com amplas provas dadas na cena jazz nacional. Este projecto, lançado no final do Verão passado, já foi gravado no “distante” mês de Novembro de 2016, com Nuno Costa a assumir o comando técnico das duas sessões que decorreram nos estúdios Timbuktu. A música, no entanto, talvez por partir de um quadro referencial mais clássico, não soa distinta do que poderia soar se estes mesmos artistas se tivessem cruzado em estúdio ontem mesmo.

No inlay do CD, Luís Cunha oferece preciosas pistas sobre as suas composições, deixando entrever um universo de profundas ligações familiares, de amizades e lugares e tempos e sons que marcam ou marcaram a sua vida. E isso traduz-se num conjunto de peças de toada mais tranquila e a espaços verdadeiramente “baladeira” que deixa escorrer a veia mais poética de cada um dos músicos do quinteto. Percebe-se que o facto de todos estes músicos já antes se terem cruzado noutros contextos confere solidez ao trabalho aqui apresentado, com o elegante perfil harmónico do grupo a denotar um encaixe aperfeiçoado com o tempo e a experiência. E com múltiplas oportunidades de exercitarem o músculo solista, cada um dos músicos aqui presentes puxa pelos seus galões individuais sem, no entanto, alguma vez esquecer que é de entrosamento colectivo que este Faro Oeste trata. Não há aqui índios ou cowboys, duelos ao nascer do sol ou solitárias cavalgadas em direcção ao horizonte. Mas são, sem dúvida, cinco magníficos “pistoleiros” que nunca falham o seu alvo, aqueles que protagonizam este “filme”.

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