Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.
[Mose Allison] The Complete Atlantic/Elektra Albums 1962 – 1983 / Strawberry-Cherry Red
Não se pode dizer que Mose Allison não tivesse uma profunda capacidade de olhar para si mesmo sem aplicar filtros, uma “qualidade” bem expressa em títulos como “You Can Count On Me To Do My Part”, “I Don’t Want Much”, “I Don’t Worry About a Thing”, “Foolin’ Myself”, “I’m Smashed” ou até “Middle Class White Boy”. O pianista que no início da carreira pouco cantava, por imposição da sua primeira editora, a Prestige, passou a ser, já na Atlantic, selo em que se estreou em 1962, um cantor e compositor de pleno direito que usava o seu pianismo como argumento extra. E que argumento…
É precisamente com I Don’t Worry About a Thing, o primeiro álbum que assinou na Atlantic e que contou com sólida e nada intrusiva produção de Nesuhi Ertegun, que arranca esta preciosa caixa da Strawberry-Cherry Red: são seis CDs que reúnem os 10 álbuns que inscreveu nos catálogos da Atlantic ao longo de década e meia (produzidos na sua maior parte por Ertegun, mas também, num par de ocasiões, por Joel Dorn) e ainda dois registos lançados no selo de curta, mas intensa vida Elektra Musician, já no arranque dos anos 80 (seguiu-se depois um período considerável de ligação à Blue Note, já não coberto nesta caixa).
Allison faleceu em finais de 2016, poucos dias depois de completar 89 anos. Foi longa e profícua a sua vida: nasceu em Tippo, no Mississippi e viveu os primeiros anos na quinta do avô, onde apanhou algodão e deu os primeiros passos na música. Passou pelas Universidades do Mississippi e do Louisiana – com dois anos de serviço militar de permeio – e pouco antes de completar 30 anos estabeleceu-se em Nova Iorque, onde lançou a carreira discográfica, já em 1957. Nessa cidade cruzou-se com artistas de referência do universo do jazz, como Stan Getz, Gerry Mulligan, Al Cohn ou Zoot Sims, mas nunca abandonou os blues com que cresceu e que aprendeu a dominar como poucos, criando um estilo híbrido de blues-jazz que haveria de definir a sua sonoridade ao longo das suas seis décadas de carreira.
Nos álbuns para a Atlantic, todos dotados de um glorioso e vibrante som live – I Don’t Worry About a Thing e Swingin’ Machine (ambos de 1962), The Word From Mose (1964), Wild Man On The Loose, Mose Alive! (ambos de 1965), I’ve Been Doin’ Some Thinkin’ (1968), …Helo There, Universe (1970), Western Man (1971), Mose in Your Ear (1972) e Your Mind is On Vacation (1976) – Allison gravou sobretudo no seu formato preferido, em trio (com pontuais expansões para ensembles mais dilatados), cruzando-se com grandes nomes como os bateristas Frankie Dunlop, Paul Motian ou Billy Cobham e os baixistas Addison Farmer, Ben Tucker, Red Mitchell e Chuck Rainey. Nas ocasiões em que foi para lá do trio, neste período, participaram nas suas sessões saxofonistas tenores como Joe Farrell, Joe Henderson e Al Cohn, barítonos como Pepper Adams e Seldon Powell e altos como David Sanborn. Nos dois trabalhos inscritos no catálogo da Elektra Musician – Middle Class White Boy e Lessons in Living (ambos de 1982) – participam, uma vez mais, músicos como Joe Farrell e Billy Cobham, mas também o baixista Jack Bruce, os guitarristas Phil Upchurch e Eric Gale ou o saxofonista alto veterano Lou Donaldosn. Recursos humanos que ajudaram a firmar as credenciais jazz de Mose Allison, que foi até reclamado por influência por gente como Tom Waits (claríssima a impressão que o seu estilo lacónico de entrega vocal há-de ter deixado no homem de “Diamonds on My Windshield”), Rolling Stones, John Mayall ou Georgie Fame (e isto para nem falar das versões de material de sua autoria carimbadas por The Who, The Clash, Leon Russell ou Elvis Costello).
Estas caixas da Cherry Red, de formato (e custo…) mais económico, costumam valer muito pelo facto de convenientemente reunirem em CD material que se possa até já possuir em vinil ou que se deseje começar a explorar de forma mais sistemática, mas esta antologia, mantendo esse espírito, vai um pouco mais longe no seu elegante design (por Michael Robson) e, sobretudo, pelo cuidado trabalho de produção a cargo do premiado engenheiro de som Bob Fisher que, aliás, assina também as detalhadas notas que enriquecem a edição e que se incluem num booklet recheado de informação, com recortes de época, notas sobre as sessões, críticas e até depoimentos de gente como Ray Davies dos Kinks ou Van Morrison. A fantástica remasterização foi assinada por Simon Murphy que devolveu os masters à sua glória original.
Trata-se, enfim, de uma excelente oportunidade para conhecer a era fundamental da discografia de um artista não tão celebrado quanto seria de esperar, um elegante homem dos blues, que escreveu de um ponto de vista cultural, ele que foi criado, mesmo com a protecção da sua condição de “rapaz branco da classe média”, nos campos do Mississippi e que aprendeu com mestres como Sonny Boy Williamson ou Bukka White — de quem aprendeu, transformando-a, a famosa (e politicamente incorrecta…) “Parchman Farm” — transpondo para o piano a dolente linguagem do sul, insuflando-lhe depois a inventividade que aprendeu a escutar jazz nos clubes de Nova Iorque. E nos seus trios, sobretudo, na combinação de palavras sardónicas e com algum humor auto-crítico, no seu estilismo vocal e no seu vívido pianismo, estava espelhada uma alma gigante, honesta e profundamente humanista. Vale muito a pena descobrir Mose Allison.
[Charles Mingus] Mingus at Carnegie Hall / Atlantic
“Features 70 minutes of previously unreleased music”, explica-se no hyper sticker que adorna a capa. 70 minutos de música de Charles Mingus nunca antes ouvida é, compreensivelmente, uma proposta a que é impossível escapar. Nesta cápsula do tempo, regressa-se a janeiro de 1974 para se assistir, no Carnegie Hall, em Nova Iorque, a uma verdadeira sagração do poder da grande invenção musical americana, com o lendário contrabaixista a conduzir dois grupos numa viagem pela história do jazz, passado, presente e futuro.
Nesta jam session que foi de Duke Ellington ao futuro, o decano foi ladeado pelo que era então a sua working band: George Adams no saxofone tenor, Hamiet Buiett no barítono, Don Pullen no piano e Dannie Richmond – “a outra metade do batimento cardíaco de Mingus” – na bateria. Mas nesta autêntica celebração do génio de Mingus participaram ainda outros aliados de diferentes eras da sua carreira: o tenorista John Handy (que também se escuta em alto), Charles McPherson no alto, o então muito jovem trompetista Jon Faddis (o tio de Madlib que em 1974 contava apenas 20 anos) e o enorme e imparável Rahsaan Roland Kirk em tenor (e outras coisas, incluindo um impagável sentido de humor…).
Apesar de ter sido crítico das vanguardas mais associadas ao free jazz, fica aqui claro nesta jam session que Mingus não era avesso à implosão das convenções, que era capaz de se enquadrar com a absoluta liberdade, com a atonalidade e que nem assim perdia o seu inimitável swing. A energia libertada nessa noite foi tamanha que a edição original, limitada apenas a um LP, não conseguiu transmitir tudo o que aconteceu nesse palco, com cada um dos músicos a dar o máximo, não se coibindo nenhum deles de, no mais genuíno espírito das jams, tentar superar o companheiro do lado, como quando Roland Kirk imitou, na fantástica “C Jam Blues”, o estilo e a linguagem de George Adams, como quem diz “sei bem do que és capaz”, antes de explicar pelo som o que significa o mais puro êxtase.
Um tesouro, este duplo CD (ou triplo vinil), a deixar claro que continuam a existir recantos inexplorados na história da música. Fundamental.