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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 10/08/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #63: Hernâni Faustino / Marcelo dos Reis

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 10/08/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Hernâni Faustino] Twelve Bass Tunes / Phonogram Unit

Hernâni Faustino é uma daquelas pessoas que parece ter descoberto o dom da ubiquidade, tão vasta e frequente é a sua presença em palcos e estúdios nos mais diversos contextos da nossa cena jazz e de música improvisada e criativa. Depois de um arranque de carreira como baixista eléctrico dos pós-punks K4 Quadrado Azul, Hernâni desligou-se da electricidade, aprendeu sozinho a domar o contrabaixo e traçou um caminho próprio tendo, nos últimos 15 anos, deixado a sua marca em colectivos como a Variable Geometry Orchestra ou em múltiplos ensembles em que se cruzou com gente como Gabriel Ferrandini, Nuno Rebelo, Ernesto Rodrigues, Luís Lopes, Rodrigo Amado, Luís Vicente ou, entre vários outros artistas, Carlos Zíngaro, Sei Miguel e José Lencastre. Também fundou (e orienta os destinos d’) os RED Trio, prolífica célula criativa que leva uma década de intensa actividade discográfica e de palco. Ou seja, Hernâni Faustino tem-se mantido ocupado. Mas ainda não se lhe conhecia registo em solo absoluto. Acontece agora com este Twelve Bass Tunes.

Neste contexto musical, os trabalhos em solo absoluto tendem a ser exercícios de estudo ou demonstração das capacidades dos diferentes instrumentos, valorizando-se a técnica interpretativa, claro, mas também a amplitude de recursos usados, a expressividade e as abordagens mais inventivas às diferentes “ferramentas”. Em Twelve Bass Tunes deve começar-se por se valorizar algo que é tão importante nos domínios do jazz, o “som” do próprio músico. Nesta belíssima e transparente gravação de Joaquim Monte efectuada no histórico estúdio Namouche, essa característica é sublimada, revelando-se em toda a sua plenitude esse “som” tão distinto de Faustino: fundo, de tons sépia, aproveitando ao máximo as características tonais particulares da madeira do seu instrumento. E com um recorte emocional muito próprio, algo que sempre pareceu importante nos diferentes projectos em que participa. Habituado a tocar com músicos com sólidos estudos formais, percebe-se que Faustino vem de outro lugar, não menos importante ou válido, apenas diferente. E essa diferença vale-lhe a forma original como construiu uma “voz” única no contrabaixo.

Neste álbum, Faustino não apenas confirma todas as qualidades que há muito lhe são apontadas, como prova ser um válido compositor (“Azulão”, peça interpretada com arco, é um bom exemplo de uma peça com alma “folk” que poderia ser vestida com mais “cores” e de repente até ser canção) e um mestre na tradução de emoções com o seu instrumento, facto que talvez ajude a explicar a brevidade das faixas aqui reunidas. Capaz de gerar pulsos firmes (como em “Eia Eia”) ou de largar a Terra e partir em direcção ao mais profundo espaço abstracto (como na intrigante “Tríptico da Virgem de Lamego”), este contrabaixista não é, definitivamente, mero acompanhante condenado a ser apenas “team player”, mas um autor de direito próprio, um líder da sua própria imaginação e um Músico (assim mesmo, com maiúscula) plenamente formado que entende que só precisa de se comprometer com a sua própria visão da arte. Chega. E sobra.



[Marcelo dos Reis] Glaciar / Miria Records

“Apenas uma guitarra de 1963, guitarra acústica, alguns efeitos, voz, takes em tempo real e nada de overdubs”, enumera Marcelo dos Reis nas notas de lançamento de Glaciar. Com o “arsenal” revelado, adianta-se ainda que o material deste álbum que assinala a estreia de um novo selo (Miria Records, com que o músico pretende auto editar-se da forma mais livre e descomprometida possível), resulta de composições próprias e de improvisos.

Como explica Guy Peters nas “liner notes”, as peças gravadas neste disco nasceram (pelo menos parcialmente) de uma residência artística nos Alpes (embora a gravação propriamente dita tenha decorrido na Academia de Música CNM, com pré-produção e mais composição a ter acontecido na Casa Varela – Centro de Experimentação Artística) e isso talvez ajude a entender o título e a música aqui apresentada, um desvio à “norma” que nos habituámos a associar a Marcelo dos Reis, improvisador visceral em múltiplos contextos, dado a dissonâncias e a exuberantes explorações técnicas, que aqui se apresenta mais contemplativo, melódico e poético.

Em peças como “I-IIII” (não há títulos, apenas essas indicações gráficas vagas), o guitarrista parece canalizar alguns ecos do trabalho solo de gente como Loren Connors ou até Pat Metheny, mas o discurso aqui adoptado é ultra-pessoal, introspectivo e definitivamente poético, com múltiplas técnicas a serem empregues nessa procura pelo lado mais emotivo e contemplativo da música, com um dedilhar elegante (como o que se escuta a seguir aos glissandos da introdução de “II-I”), discursivo e, sobretudo, contido, remetendo, por vezes apenas em breves detalhes e instantes, para uma pletora de idiomas estabelecidos (dos blues à folk “faheyana”, do cromatismo country até à emotividade de algum flamenco) sem nunca se deter em nenhum deles, preferindo antes a navegação por terrenos menos cartografados.

As qualidades cinemáticas desta música reverberante são mais do que óbvias e eu devo confessar que adoraria ver e ouvir Marcelo dos Reis a tocar o material deste álbum durante uma projecção de Alone in the Wilderness, a poética visão do mundo natural de Richard “Dick” Proenneke ou, talvez, sobre uma colagem de imagens vintage de ski. Glaciar possui essa especial qualidade de gerar imagens na mente de quem a ela se possa entregar sem reservas, de olhos fechados, talvez com um par de bons auscultadores e uma chávena de chá quente ao lado. Fica a ideia.

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