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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 17/04/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #55: Gal Go Grey / Whatitdo Archive Group / Charles Rouse

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 17/04/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Gal Go Grey] Gal Go Grey / Ed. de autor

Ignacio “Galgo” Salvadores é saxofonista, argentino, e Tom Grey é um produtor, londrino, ainda a terminar os seus estudos superiores. Cruzaram-se fruto de um daqueles acasos que só as grandes cidades proporcionam, num bar, em noite de concerto. E daí resultou este estranho, mas envolvente registo. Vozes esporádicas e decididamente pouco musicais, ou pelo menos alheadas das “regras”, usadas como mais uma fonte de coloração numa música que vive de uma espartana gestão de meios, guitarra pontual, bases electrónicas que serpenteiam por entre géneros (meio trip-hop, meio hip hop, meio outra coisa qualquer que pode até acercar-se de uma cadência housey a dada altura), sempre indefinidas e permanentemente envoltas em poeira abstracta, e, por cima de tudo isso, um saxofone bastante livre, que se embrulha nesses mantos difusos conjurados por Grey.

O saxofonismo de Ignacio Salvadores soa bastante intuitivo, autodidacta. Entende-se que o músico argentino procurou apreender os “códigos” do jazz, mas não é óbvio que tenha bebido nalguma “fonte” específica e o seu sopro soa por isso mesmo muito fresco, ainda que tecnicamente limitado. Mas se nem todos os guitarristas têm que ser Methenys, nem todos os saxofonistas precisam de viver na sombra de Coltranes. Ignacio é expressivo e, sobretudo, emocional quando sopra e isso é suficiente. Os seus fraseados são depois bastante processados, interligados com as bases de Tom Grey, fruto de uma abordagem algo lo-fi à gravação, sem que se perceba o “espaço” ou o “ar” em que tudo foi captado. É um disco de laptop, certamente, pensado e trabalhado “in the box”, bastante digital na sua natureza, mas também por isso em busca permanente de uma aura emocional, que se adivinha nas voltas melódicas que sobretudo Ignacio vai cumprindo. “COAST” é, aqui a peça chave, nascida de um riff muito simples, com o saxofone a expor-se um pouco mais, soando mais solitário no diálogo consigo mesmo, evocando a altura em que Ignacio, impedido de tocar no sítio onde vivia, começou a tocar com o seu próprio eco aproveitando a reverberação natural numa passagem pedestre por baixo de uma das pontes que se elevam acima dos canais de Londres. E, nesse sentido, o tema resulta como um pungente retrato do pulsar de uma cidade, sobretudo quando o beat de Tom Grey surge em cena, urgente e quebrado, convidando o saxofone a traduzir a azáfama e a vibração de que a capital britânica vive. O registo é curto, quedando-se abaixo dos 25 minutos, soando por isso mesmo tão urgente quanto fugaz, mas deixa no ar uma ideia suficientemente intrigante nas possibilidades que levanta para que se queira escutar algo mais num futuro tão próximo quanto possível.



[Whatitdo Archive Group] The Black Stone Affair / Record Kicks

A “história” deste The Black Stone Affair é tão rebuscada quanto fantasiosa, mas, resumindo, para não roubar a ninguém a possibilidade de dar asas à imaginação lendo as criativas notas de capa, parte delas com a assinatura desse excelso navegador de dimensões alternativas que responde ao nome Shawn Lee, líder da inventiva e bastante swingante Ping Pong Orchestra, este álbum resgata para o presente a banda sonora composta e executada pelo Whatitdo Archive Group para o filme The Black Stone Affair, uma suposta obra-prima do realizador Stefano Paradisi que deveria ter estreado em Cannes em 1974, mas cuja única cópia infelizmente se perdeu num fogo em vésperas da sua primeira exibição. Paradisi nunca chegou a fazer outro filme, tendo sido vítima de um violento atropelamento com a sua própria viatura em Ostia, estância balnear às portas de Roma. O álbum que a Record Kicks agora apresenta resulta de um golpe de sorte: as fitas contendo as gravações originais terão sido encontradas o ano passado, num bordel de Las Vegas. Se ainda não estão no chão a rebolar de riso, façam o favor de carregar no play porque a introdução vale a pena.

Basicamente, o “conceito” serve para nos balizar esteticamente, conduzindo-nos até uma era dourada da produção cinematográfica italiana que teve correspondência directa no plano musical graças ao trabalho de génios visionários como Ennio Morricone, Bruno Nicolai ou Alessandro Alessandroni, nomes que também carregaram de preciosos títulos alguns dos mais cobiçados catálogos italianos de library music. Essa é a fonte de inspiração mais directa para Aaron Chiazza (baterista), Mark Sexton (guitarra eléctrica), Christopher Sexton (Hammond, Rhodes, Mellotron, etc) e Alexander Korostinsky (baixo, guitarra, mandolim, etc), o Whatitdo Archive Group que aqui é “vitaminado” com uma orquestra de 20 elementos que inclui vozes, cordas, metais, vibrafone, harmónica e mais alguns instrumentos. Como as buscas nas redes sociais pelos nomes atrás listados não são propriamente conclusivas, há que tomar toda esta informação com um certo, digamos, cepticismo. Mas, ao mesmo tempo, há igualmente que admitir que aceitar as coordenadas sem reservas ajuda a usufruir de uma música que procura inspiração e enquadramento em práticas de outra era. E tomando essa ideia como ponto de partida diga-se que este The Black Stone Affair é uma pulsante fonte de surpresas que recompensa audições sucessivas.

Com uma gravação de elevadíssima qualidade que nos remete para a era dos grandes estúdios de rigor analógico, equipados com microfones que não só eram capazes de captar as nuances cromáticas dos diferentes instrumentos, mas também todo o “ar” que os rodeava, este disco começa por nos conquistar tecnicamente antes de nos enredar na sua desavergonhadamente lúdica e funcional proposta musical: funk de feição orquestral, rico em arranjos que usufruem das vastas possibilidades instrumentais ao dispor dos arranjadores, breaks polirrítmicos que sustentam passagens jazzy de tendência cinemática, aproximações às cadências estudadas nos “manuais” oferecidos ao mundo por gente como Mulatu Astatke, assomos soul de inspiração “isaachayesiana”, derivas bossa temperadas com doces martinis em vez das normais caipirinhas, “crime jazz” orquestral em abundância que aponta para alguns momentos da obra de John Barry, interlúdios de romantismo delicodoce, e mais funk pulsante pensado para figurar no catálogo de uma qualquer library label imaginária. Ou seja, referências de elevadíssima qualidade executadas depois com panache correctíssimo e estilo certeiro. Não há um único erro musical por aqui, algo que seja o equivalente aos sempre estanhos sentimentos que resultam de  descobrir um Rolex no pulso do actor que nos procura convencer que na Inglaterra do século XII existiam dragões e que invariavelmente levam a “fantasia” a desmoronar-se.

Sim, tudo aqui é pastiche, mas a classe e a seriedade com que é executado merecem ouvidos que aceitem o programa conceptual proposto porque só assim é possível desfrutar em pleno da música que aqui se escuta e que, quase certamente, terá lá pelo meio dedo desse prestidigitador chamado Shawn Lee. Ou então não, tudo isto aconteceu mesmo e só os mais amargos e cépticos ouvintes é que duvidarão da obra-prima que a sétima arte perdeu naquela noite de 1974 em que ardeu a película de The Black Stone Affair.



[Charles Rouse] Two is One / Strata East, Pure Pleasure Records

Felizmente que catálogos históricos como o da Strata East ou Black Jazz continuam a ser alvo de oportunos relançamentos que tornam acessíveis pequenos tesouros de outra forma só alcançáveis por quem tenha bolsos mais fundos. Este álbum de 1974 de Charles Rouse, recentemente recatalogado pela britânica Pure Pleasure, é um bom exemplo. Nesta sessão registada no Warehouse, em Nova Iorque, o tenor de Rouse foi secundado pelos baixos de Martin Rivera (“Bitchin’” e “In a Funky Way”) e Stanley Clarke (“Hopscotch”, “Two is One” e “In His Presence Searching”), pelo violoncelo de Calo Scott, pelas congas de Azzedin Weston (nos mesmos temas em que tocou Rivera), a incansável bateria de David Lee, as guitarras de George Davis (que tocou nos mesmos temas que Rivera e ainda em “In His Presence Searching”) e Paul Metzke e finalmente pelo arsenal percussivo de Airto Moreira (que emprestou o seu pulso imaginativo a “Hopscotch”, “Two is One” e “In His Presence Searching”).

Este disco é notório porque Rouse, habitualmente mais confortável nos domínios do hard bop em que era fluente, trocou as suas habituais working bands por um grupo de músicos de sessão convocados especialmente para a ocasião. E a “ocasião” passava por proporcionar ao saxofonista uma pontual aventura por terrenos mais funky, de grooves mais vincados, traduzindo certamente o espírito da época em que Shaft dominava os grandes ecrãs, os afros e os daishikis coloriam as ruas de Harlem e “right on” era palavra de ordem nas bocas de todos os “brothers” e “sisters”. O resultado é uma musculada sessão de toada soul jazz, com intrincadas prestações de todos os músicos, com o violoncelo electrificado de Scott a brilhar intensamente (escute-se o tema título) e as guitarras de Davis e Metzke a sublinharem harmonicamente o desempenho do líder da sessão que sopra com pulmões revigorados e com alma plena. A sua prestação no fortíssimo tema título, voando por cima da cadência ditada pelo baixo assertivo de Stanley Clarke, é absolutamente incrível.

A peça que fecha o álbum, fazendo plena justiça ao título de ressonância religiosa, “In His Presence Searching”, é um clássico exemplo do lado mais espiritual do jazz, mostrando-nos Charles Rouse a seguir as pisadas de Pharoah Sanders, por cima das colorações rítmicas livres de Airto Moreira, e da base harmónica oferecida pela guitarra e violoncelo. São quase 10 minutos de demanda intensa de um plano superior, com todos os músicos em plena sintonia com o líder que, aos 50 anos, demonstrava uma segurança plena na sua respiração e tom absolutamente notáveis, como se percebe quando começa a solar por volta da marca dos 4 minutos e 15 segundos. Há fogo real naquele peito e isso sente-se no som inquisitivo do seu solo que se desenvolve no desenrolar de frases discursivas de imensa beleza.

Pérola preciosa, pois claro.

Disco disponível na Jazz Messengers Lisboa.

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