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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 16/03/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #52: R+R=NOW / Coma World

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 16/03/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[R+R=Now] Live / Blue Note

Em 2018, Collagically Speaking traduzia o impulso de Robert Glasper de responder aos tempos, seguindo de perto apelo enunciado por Nina Simone na era do Movimento dos Direitos Civis. Para tanto, o piansta e teclista reuniu um supergrupo com Christian Scott aTunde Adjuah (líder com longa discografia em nome próprio) no trompete, Derrick Hodge (Mulgrew Miller Trio, The Terence Blanchard Group) no baixo, Justin Tyson (Esperanza Spalding) na bateria, Terrace Martin (líder, mentor dos Pollyseeds e também colaborador de Robert Glasper, Anderson .Paak, Adrian Younge ou Kamasi Washington) nos sintetizadores, sax alto e vocoder e Taylor McFerrin (produtor com créditos em vários trabalhos de José James) também em sintetizadores. O plano não podia ter sido mais simples: marcar uma sessão em estúdio, montar o equipamento e simplesmente tocar, sem planos previamente gizados, sem composições anotadas para o colectivo seguir, sem um conceito para lá do próprio nome: Reflectir e Responder para traduzir o Momento.

Bem recebido, esse trabalho de estreia apontou a direcção para o palco e este Live foi registado no Blue Note, em Nova Iorque. Tendo em conta a própria designação do grupo, poderia ser relevante perceber exactamente em que data ou datas foi registado este material, mas tal informação não é fornecida. Entende-se, no entanto, que os tempos sobre os quais se reflecte e aos quais se responde são os deste extenso presente, do movimento Black Lives Matter, do presidente derrotado após o mais problemático mandato das últimas décadas. E perante tão agitados tempos, a música dos R+R=Now é estranhamente tranquila, uma espécie de bálsamo aural para contrabalançar uma realidade conturbada e agitada. Tendo em conta o calibre da equipa, não há surpresas no nível técnico, com o piano de Glasper, o trompete de Christian Scott e o vocoder e sax de Martin a assumirem a dianteira, seguros por uma sólida secção rítmica educada nos rigores das síncopes modernas do hip hop e do R&B.

“Resting Warrior” é aqui a peça-chave: posicionada no fim do alinhamento, a composição colectiva que no álbum de estúdio se quedava abaixo dos 10 minutos, é aqui dilatada até aos 25 minutos, colorida com “thumb piano”, e marcada com pulso contemporâneo, bebendo nas mais frescas fontes do jazz de fusão dos anos 70, mas ancorada neste AGORA que o grupo traduz, num balanço de elegante modernidade para que todos os músicos contribuem com igual assertividade. A duração e os solos de cariz poético de Martin e Scott ajudam o tema a transformar-se em mantra, com o Fender Rhodes a projectar a massa sonora para a atmosfera e o solo de sintetizador na parte final a empurrar tudo para o espaço sideral, na sua elipse repetitiva que soa a loop em disco de hip hop. E, por falar em hip hop, “How Much a Dollar Cost”, tema que Terrace Martin co-produziu e co-compôs para Kendrick Lamar, merece aqui lírica revisitação que é um agudo retrato da sintonia que dois géneros nascidos da experiência afro-americana podem alcançar.



[Coma World] Coma World / ByrdOut

A dupla Coma World é formada por Peter Bennie no baixo e electrónica e Maxwell Hallett na bateria e electrónica. Peter é um nome semi-obscuro que o Discogs revela ter ligações ao projecto de pós-rock Adam Coney que em 2019 editou o álbum Pavillion e que também integra, de acordo com as notas de lançamento, o Speaker’s Corner Quartet. Mas Maxwell já possui outros pergaminhos: metade dos Soccer96 com Dan Leavers, é também elemento fundamental da equação The Comet is Coming, basicamente os Soccer96 expandidos com a presença de Shabaka Hutchings. O duo buscou inspiração para o nome e direcção conceptual para o projecto nos relatos de um amigo que esteve em coma e a música altamente abstracta, mas igual e, talvez, estranhamente evocativa que aqui se apresenta procura estabelecer-se como uma espécie de banda sonora para uma viagem pelo subconsciente, pelo mundo interior os sonhos, das alucinações, das memórias turvas.

O lado psicadélico dos arranjos é reforçado com a estratégia de criação: jams “ritmadélicas” em estúdio, com baixo e bateria a entrecruzarem-se em grooves profundos, servindo essas bases para depois suster derivas de poeira electrónica, com sons que parecem, como o duo refere, traduzir um ambiente “uterino”, envolvendo-nos numa difusa amálgama sonora. Esse material é depois alvo de mistura analógica seguindo os preceitos clássicos do dub, impondo a mesa de mistura como outro instrumento que permite “esculpir” as peças finais, através da gestão dos volumes e silêncios e da adição de efeitos, directamente para a fita de quarto de polegada em que o master é resguardado. A editora ByrdOut aponta a sintonia com o já malogrado mestre Andrew Weatherall, ele mesmo um contribuidor para o seu catálogo, como de resto Lee Perry, esteta máximo do dub. Essa abordagem criativa ao estúdio e à manipulação dos improvisos a quatro mãos (e dois pés…) ajuda a reforçar o lado mais “out” e exploratório de uma música que se impõe como um estudo de pulsares, quase partindo da ideia de batimento cardíaco para erguer um edifício sonoro fascinante, altamente hipnótico e envolvente.

Tendo em conta a experiência de Peter Bennie como membro do quarteto que foi a banda residente das noites de microfone aberto Speaker’s Corner, em Brixton, Londres, um verdadeiro pilar da cena rap local, não é de estranhar que as cadências por aqui exploradas muito devam ao hip hop, com o baterismo de Betamax a revelar, em simultâneo, qualidades matemáticas de precisão metronómica, e soluços imprevisíveis próprios de quem educou os ouvidos nas síncopes não quantizadas de criadores como J Dilla ou Madlib. E juntos, com inspiração adicional do dub e do lado mais “cósmico” do kraut, Benie e Hallett criam aqui um entusiasmante primeiro capítulo de uma aventura que se deseja ardentemente que tenha continuidade.

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