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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 03/03/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #50: Don Cherry / J Jazz Volume 3

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 03/03/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Don Cherry] Cherry Jam / Gearbox Records

Quando em 1965 gravou o espantoso Complete Communion para a Blue Note, tendo ao seu lado os enormes Leandro “Gato” Barbieri no sax tenor, Henry Grimes no contrabaixo e Ed Blackwell na bateria, o cornetista e trompetista Don Cherry era já um experimentado viajante: ao lado de Ornette Coleman ajudou a moldar a forma do jazz que haveria de chegar testando os limites da arte da improvisação e ajudando a impor a mais libertária corrente dessa cultura ao gravar com o saxofonista, multi-instrumentista, líder e compositor alguns dos mais feéricos e visionários trabalhos da era. Em 1963 e 1964 gravou igualmente com o New York Contemporary Five (ao lado de luminárias como Archie Shepp e John Tchicai) e com Albert Ayler. Com Shepp e Ayler, aliás, viajou também até Copenhaga cidade onde, em 1965, gravou então a sessão para a rádio dinamarquesa que aqui, pela primeira vez, se recupera, numa gloriosa edição mono restaurada pela Gearbox e apresentada numa bonita embalagem completa com obi strip ao estilo japonês.

Com uma “pick up band” local, ou seja, quatro músicos contratados para a ocasião — Mogens Bollerup no sax tenor, Atli Bjørn no piano, Benny Nielsen no contrabaixo e Simon Koppel na bateria (grupo já certamente habituado a estas situações: dois dos músicos tinham também tocado com Dexter Gordon, por exemplo) – Don Cherry apresentou aqui três composições da sua autoria que não voltariam a ser gravadas (o que reforça ainda mais o carácter histórico desta edição) e um standard.

Esta data processa-se em rigoroso regime hard bop, com pulso swingante de recorte clássico, com a banda a soar mais do que competente por trás do líder. Todos os músicos são dotados e compreendem a “língua” em que o trompetista se expressa o que ajuda a que a passagem pelos temas resulte plena de confiança (provavelmente terá sido oleada previamente com algumas apresentações ao vivo em clubes locais, como o famoso Jazzhus Montmartre onde Cherry teria uma residência, no ano seguinte). E se há momentos nalguns solos de Cherry, como acontece logo em “The Ambassador From Greenland”, em que parece que o seu trompete está prestes a descolar para terrenos bem diferentes, a verdade é que o líder nunca deixa propriamente de ter os seus pés bem assentes na Terra. Espantoso, porque dois meses depois, em Englewood Cliffs, Nova Jérsia, no estúdio de Rudy Van Gelder, Don Cherry apontaria para as estrelas, soando totalmente incandescente do alto dos seus 29 anos, numa sessão gravada com a urgência de quem precisava chegar a casa antes do jantar: afinal de contas, Complete Communion foi gravado a 24 de Dezembro de 1965…



[Vários Artistas] J Jazz Volume 3: Deep Modern Jazz From Japan / BBE

O fascínio exercido pelo Japão é amplo: a tradição e a história perpetuadas na literatura, na banda desenhada ou no cinema apaixonaram milhões por todo o mundo. Por outro lado, a tecnologia criada por uma cultura cientificamente muito avançada sempre ditou rumos, sobretudo no universo da música, tanto ao nível da criação (Roland, Korg ou Yamaha são marcas sem as quais não se pode contar a história da música electrónica) como da audição (do lendário Technics 1200, a roda de aço que serviu de suporte ao hip hop e a toda a música de dança, a marcas como a Pioneer, Onkyo, Denon ou Audio Technica, o mais provável é que todos tenhamos crescido a ouvir música através de máquinas fabricadas no Japão…).

Por isso mesmo não será de estranhar que nos últimos tempos tenham surgido inúmeras edições focando diferentes aspectos da mais criativa música japonesa, desde os terrenos da electrónica, ao funk passando, pois claro, por diferentes nuances do jazz. É aí que entra a série J Jazz da etiqueta britânica BBE. Iniciada em 2018 com J Jazz – Deep Modern Jazz From Japan 1969 – 1984, uma incrível proposta inaugural para um olhar específico sobre a rica e múltipla cena jazz nipónica, a série teve continuidade em 2019 contraindo um pouco o espectro temporal: J Jazz Volume 2 voltava a apresentar Deep Modern Jazz do Japão, mas com a baliza de 1969-1983. Intacta, porém, mantinha-se a perspectiva de puxar para o presente um conjunto de obras em que a inventividade se aliava ao groove, o alinhamento com o lado mais aventureiro do jazz de fusão garantia material escavado de primeira água.

Pode dizer-se que a fasquia se mantém elevadíssima para este terceiro volume: se nomes como os de Eiji Nakayama ou Koichi Matsukaze Trio já tinham despontado no primeiro volume da série e (este último também contribui com material para o segundo em tema com crédito solo) Kohsuke Mine surge também no segundo tomo desta história, a verdade é que boa parte do material marca a sua estreia nestas compilações que têm servido também como ponto de partida para a expansão da cada vez mais fundamental J Jazz Masterclass, série em que a BBE aposta na reedição dos álbuns clássicos de onde tem vindo a repescar este material. E em boa o hora o faz, porque muitos destes discos foram originalmente apresentados como prensagens de autor ou de muito reduzida circulação atingindo, por isso mesmo, valores consideráveis no mercado de colecionismo.

Tony Higgins e Mike Peden são conhecedores profundos e diggers convictos que sabem exactamente que pérolas colecionar para este precioso rosário. São esses, e por exemplo, os casos do material dos trios de Yasuhiro Kohno e Masaru Imada ou do quarteto de Hideyasu Terakawa: a aquisição dos três originais poderia implicar o dispêndio de várias centenas de euros. Por aqui circula-se entre assomos de jazz de recorte modal a cargo de Kohsuke Mine e Koichi Matsukaze, mas também há energia reforçada em tons de flamenco por Eiji Nakayama, pressão tropical com tons de samba por Tatsuya Nakamura, Hideo Shiraki e Seiichi Nakamura ou desenfreados grooves de sinuosidade mais funk com o carimbo de Hiroshi Murakami, Ryojiro Furusawa Quartet e Shigeharu Mukai. E o espantoso é que nada por aqui soa amador: imposto no Japão desde os anos 20, o jazz é caso de devoção nacional que produziu músicos de primeiríssima água, tecnicamente proficientes e esteticamente aventureiros. A pianista Aki Takase e o seu belíssimo “Song For Hope” são disso exemplo perfeito: mais de oito minutos de hipnótica beleza melódica e harmónica capazes de nos suspender da realidade. Por esta altura, dá mesmo jeito. Vemo-nos no Japão?…

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