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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 22/01/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #44: Idris Ackamoor & The Pyramids / Soul Supreme / Robohands

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 22/01/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



 [Idris Ackamoor & The Pyramids] Shaman! / Strut

Os Pyramids lançaram três importantes registos em meados da década de 70 do século passado – Lalibela, King of Kingse Birth / Speed Merging – , reflexos perfeitos de tempos de vincada militância que juntavam numa efervescente expressão cooperativa o africanismo místico de Sun Ra, a vertigem rítmica de James Brown, a densidade hipnótica de Fela Kuti e o libertário espírito de Cecil Taylor, referência incontornável do free jazz cujo Black Music Ensemble serviu de trampolim para o grupo criado por Idris Ackamoor.

Os Pyramids deram por findas as suas operações em 1977, mas, como aconteceu em tantos outros casos, a “pressão” benigna da redescoberta do passado comandada pela comunidade internacional de diggers e colecionadores e bem expressa numa ultra-activa rede de selos discográficos apostados em recuperar obscuras pérolas do passado (os três registos seminais dos Pyramids foram todos relançados pela Disko B – estranhamente, uma etiqueta focada sobretudo na música electrónica de dança…) acabou por reconduzi-los até ao presente.

Em 2016, a convite da editora britânica Strut, Ackamoor recuperou o espírito original dos Pyramids e regressou ao activo arregimentando um novo colectivo com a ajuda de Max Weissenfeldt (o percussionista alemão fundador dos Poets of Rhythm e incontáveis outros projectos e homem do leme da etiqueta Philophon) que também assumiu a co-produção de We Be All Africans, registo que sublinhava a histórica ligação de Ackamoor ao pulso do afrobeat. Em 2018, Idris Ackamoor reafirmou a sua condição de valor presente deslocando a sua base de trabalho para Londres e trocando Weissenfeldt por Malcolm Catto (outro baterista e veterano do renascimento do funk, membro fundador dos cruciais Heliocentrics, grupo em que, aliás, o baterista alemão também militou…) que produziu o excelente e bastante político An Angel Fell, trabalho que, mais uma vez, explorava o glorioso eco resultante da colisão das densas polirritmias do afrobeat com o sopro incendiário de Ackamoor.

Em 2020, Idris Ackamoor regressou aos Quartermass Studios de Malcolm Catto, em Londres, para registar nova investida à frente dos Pyramids, conseguindo, desta vez, ter ao seu lado uma das figuras originais do colectivo, a flautista Dr. Margaux Simmons, além da violinista que o ladeou desde We Be All Africans, Sandra Poindexter. Assumindo sobretudo o tenor, mas também pontualmente o alto, e dobrando as suas intervenções com keytar e os seus cânticos e declamações, Ackamoor é o claro propulsor do colectivo aqui desenhado por Malcolm Catto. Apesar do contexto contemporâneo servido por músicos que entendem profundamente as modernas declinações do groove destilado pelo funk ou afrobeat, este é um registo em que o saxofonista parece canalizar as energias de John Coltrane ou Pharoah Sanders para um conjunto de meditações sobre a vida (“Eternity”), a morte (“When Will I See You Again”), o amor (“Tango For Love”), a devoção “Theme For Cecil”, vénia ao mestre) e o africanismo que lhe corre nas veias (“The Last Slave Ship”, “Dogon Mysteries”). É, talvez por isso, um trabalho mais introspectivo, eventualmente inspirado pelo facto de Idris Ackamoor ter acabado de chegar aos 70 anos de idade e sentir que precisa de olhar para a sua extraordinária história de vida e fazer um balanço. Ainda assim, é fogo o que arde e que se escuta nas suas prestações, com solos de elegância e inventividade, que conseguem soar viscerais, poéticos, apaixonados e revoltados, e às vezes tudo ao mesmo tempo. A julgar pelo que se escuta em Shaman!, Idris Ackamoor continua carregado de energia, mostrando-se capaz de usar a experiência acumulada por décadas de vida intensa não como um âncora que o prende, mas antes como o combustível que o impulsiona.

Disponível na Jazz Messengers Lisboa.



[Soul Supreme] Soul Supreme / Soul Supreme Records

Noam Ofir é Soul Supreme, um produtor e multi-instrumentista nascido em Jerusalém, mas actualmente baseado em Amesterdão, que nos últimos anos conquistou justa, ainda que algo discreta, aclamação graças a inventivas abordagens a alguns clássicos do hip hop, oferecendo argumentos extra a DJs que não dispensam grooves fundos nos seus sets. Dois singles com recriações de clássicos incontestáveis de Grandmaster Flash, Mos Def e A Tribe Called Quest (neste último caso em dose dupla) cimentaram uma reputação que agora é confirmada para lá de qualquer margem de dúvida com o seu primeiro (e auto-editado) álbum.

É o próprio Noam Ofir que assegura a parte de leão das despesas solistas neste álbum tomando conta dos pianos acústico e eléctrico, dos sintetizadores (Moog Sub37 e Sequential  Ob6, caso tenham o botão de “nerdice” rodado para o máximo) e de alguma percussão, deixando ainda algum espaço para esporádicas participações do trombonista Valentim Guenther e do saxofonista e flautista Niklouds Holler (ambos presentes em “Snakes” e “Mellow Thompson”) e ainda do baixista Glenn Gaddum Jr e do baterista Matti Felber (juntos em “Keep Moving”). É também Soul Supreme que assina boa parte das composições, excepções feitas a “Huit Octobre 1971”, criação de culto de Cortex, projecto de jazz de fusão do pianista francês Alain Mion que em meados dos anos 70 lançou o ultra raro álbum Troupeau Bleu notoriamente samplado por MF Doom, e ainda a “Born With a Desire”, mais uma obscura criação, esta de meados dos anos 80, assinada pelo baixista Tony Palkovic, recentemente desaparecido.

Soul Supreme, o álbum, alinha-se com outras criações recentes de produtores como Rejoicer (curiosamente outro músico israelita) ou Robohands (também a merecer atenção na coluna de hoje): ou seja, produtores que usam o estúdio como palco para a encenação de fantasiosas visões do passado, buscando no jazz de fusão da década de 70, em alguma library music, no funk mais esguio e de produções mais acetinadas do arranque dos anos 80 e na visão sampladélica do hip hop as coordenadas para orientarem os seus próprios trabalhos.

O álbum com que Ofir agora se estreia soa por isso mesmo a destilação do que o próprio considera serem os melhores momentos da sua colecção de discos: uma espiral de grooves de recorte claro, feitos com pulsares baterísticos bem vincados, linhas de baixo gordas, mas de sinuosidade ágil, e colorações harmónicas inventivas criadas sobretudo a partir dos sintetizadores, com pontuais espaços para os sopros, como atrás apontado.

Descartar esta música como uma oca revisão do lado menos interessante de um certo jazz do passado pós-bop-modal-espiritual-free, no entanto, é não perceber exactamente o investimento cerebral na recriação de uma certa sonoridade passada á luz de uma moderna perspectiva que transforma em exercício lúdico o que antes poderia ter descambado para a mera demonstração de indulgência técnica, pensada para sustentar longas apresentações ao vivo perante efusivas plateias. Acontece que a já mencionada nova geração de produtores parece mais apostada em criar as rodelas de plástico negro que as próximas gerações de beatmakers vão samplar daqui a 20 anos do que em arrancar “ahhhs” a públicos que se deixem impressionar pelo número astronómico de notas que os mais proeficientes solistas conseguem debitar sobre 16 compassos.



[Robohands] Shapes / KingUnderground

Robohands é o alter-ego de Andy Baxter, produtor e multi-instrumentista londrino que acaba de apresentar o seu terceiro álbum, Shapes, trabalho que sucede a uma discografia que se iniciou em 2018 com Green e que se prolongou em 2019 com Dusk. Não é apenas uma apetência por títulos directos e económicos que se deve ler nos trabalhos de Robohands, mas também um gosto particular pela depuração de um certo tipo de som. E uma vez mais falamos dos ingredientes que ajudam a entender o ADN mais profundo do hip hop: a cadência do funk e a inventividade do jazz, a precisão matemática da library music, a ideia de sustentação proporcionada pelo groove, o posicionamento da bateria no centro fundacional de uma arquitectura singular, o flow assertivo do discurso melódico, etc, etc.

Com a esporádica ajuda de Jo Hunter no saxofone, de Francesca Uberti em vozes, de Adam Hayes nas congas e de JB Pilon no piano (apenas em “Leaves”), Andy Baxter desenha a golpes de guitarra, baixo, flauta e saxofone de bambu um álbum que vive, de facto, de formas extraídas de uma apaixonada relação com uma colecção de discos que compreende um limitado número de géneros e se refere a uma concreta época: o mais popular jazz, soul e funk, com algumas bandas sonoras pelo meio, lançados no mundo após a invenção do funk por James Brown em “Cold Sweat” e travando apenas um pouco antes de Herbie Hancock ter descoberto em “Rock It” que os autómatos também podiam ser sexys.

A perspectiva sampladélica que o hip hop estabeleceu sobre esse universo de sons muito concreto informa a musicalidade que sustenta o discurso de Robohands e de vários outros produtores multi-instrumentistas seus contemporâneos. Jazz não jazz que vive mais do estudo do que da invenção livre, funk de laboratório que prescinde do impulso sexual que originalmente o norteou em favor de uma abordagem mais cerebral, soul tomada pelo invólucro estético bem mais do que pelo conteúdo cultural. Mas, atenção, essa concentração nas formas em detrimento do conteúdo, traduz um respeito maior do que se poderia até pensar: porque reconhece beleza intrínseca na música para lá da experiência que possa ter-lhe dado originalmente espessura. Nada de errado aqui: Robohands é sério no ângulo que escolhe para se acercar desta sonoridade e descarta o mimetismo retro que tantas vezes esvaziou de interesse outro tipo de exercícios de aproximação a estas sonoridades. Merece os vossos ouvidos, sem dúvida. E, porventura até, os vossos samplers…

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