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Ilustração: Riça
Publicado a: 26/11/2020

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #37: Rob Mazurek Exploding Star Orchestra / Angel Bat Dawid & Tha Brothahood

Ilustração: Riça
Publicado a: 26/11/2020

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Rob Mazurek Exploding Star Orchestra] Dimensional Stardust / International Anthem

A Exploding Star Orchestra aqui conduzida por Rob Mazurek conta uma dúzia de cabeças, várias delas líderes de pleno direito nos seus próprios projectos, casos de Joel Ross, Jeff Parker, Jaimie Branch e Damon Locks, para citar apenas alguns nomes (todos eles com fortes ligações àquela que é, cada vez mais, a instituição que define a vibração presente de Chicago, a International Anthem). Este Dimensional Stardust traduz, portanto, um sério investimento em recursos (sobre)humanos, o que faz pleno sentido já que Rob Mazurek encara este fluído projecto como o seu mais avançado laboratório musical, o espaço criativo em que aplica as suas particulares noções de orquestração desenvolvidas com aturado estudo que o levou a investigar obras de compositores tão distintos quanto Bela Bartok ou Sun Ra. E, nesse aspecto, Dimensional Stardust representa um pináculo na carreira do prolífico músico que em mais de três décadas espalhou a sua visão por pelo menos sete dezenas de registos de diferentes fôlegos e com ensembles muito variados, percorrendo os mais aventureiros caminhos entre o pós-rock e o jazz mais livre.

Mazurek, que confessou ao New York Times ter ficado fascinado com a cósmica sapiência de Sun Ra quando, ainda adolescente, viu um dos seus concertos em Chicago, canaliza aqui a devoção de décadas que dedicou à obra do criador e eterno líder da Arkestra, mas também, talvez fruto do facto da sua actual base ser Marfa, Texas, um reconhecido hub criativo para a cena new age, do lado mais espiritual que artistas como Alice Coltrane tão seriamente exploraram.

Dessa forma, este Dimensional Stardust, trabalho que resulta de um desafio lançado a Mazurek pelo JazzFest de Berlim, pega no modelo colectivo e orquestral que o músico e arranjador estabeleceu em 2005 na sequência de uma encomenda de duas importantes instituições culturais da Windy City, o Chicago Cultural Center e o Jazz Institute of Chicago, e como de certa forma até sugerido pelo título, viaja pelas múltiplas dimensões da sua visão musical, da sua, lá está, “poeira de estrelas”, cruzando de forma surpreendentemente acessível free jazz e pós rock, arremedos de câmara, curiosas passagens pela electrónica e algo mais, numa complexa tapeçaria de sons e ideias que é também um dos seus mais ambiciosos projectos, entregando à guitarra de Jeff Parker, ao trompete de Jaimie Branch, à flauta de Nicole Mitchell ou à voz do poeta e activista Damon Locks papeis discursivos mais prementes, com as cordas a proporcionarem inteligentes contrapontos, como se sente em “Galaxy 1000” que parece traduzir o som de um encontro da Arkestra com o ensemble de Philip Glass numa peça que é plena de êxtase.

Diverso nas paisagens sonoras que propõe, nas paralelas “dimensões” que percorre, este álbum da Exploding Star Orcchestra representa um assinalável triunfo artístico, o que não é dizer pouco tendo em conta o assombroso currículo acumulado por Rob Mazurek durante a sua frutuosa carreira, mas, de facto, sente-se aqui um refinar de ideias exploradas ao longo dos anos, um cuidado extremo na tapeçaria sonora que propõe, na panorâmica visão musical que apresenta e que ousa cruzar linguagens sem nunca abdicar de uma elegância extrema, com passagens harmónicas de absoluto deleite e uma moderna abordagem ao plano rítmico. Concluindo: estamos perante um dos registos que define este ano e que oferece uma bem-vinda dose de solar espiritualidade num momento em que parece escassear a luz.



[Angel Bat Dawid & Tha Brothahood] Live / International Anthem

A ideia de que o jazz é a música do momento, a música da invenção instantânea, um documento do pensamento activo num determinado instante do tempo tem neste disco de Angel Bat Dawid uma extraordinária manifestação. Uma longa e ultra-descritiva entrada num diário pessoal, escrita de forma franca e directa, não revelaria mais sobre a experiência que Dawid recolheu durante a sua passagem pelo JazzFest de Berlim, em inícios de Novembro de 2019.

A experiência, detalhadamente descrita nas notas que no Bandcamp acompanham esta edição, foi traumática para a clarinetista e compositora que relata diferentes incidentes que traduzem o racismo com que, enquanto mulher negra e americana, tem que lidar quotidianamente. E o concerto gravado no Festspiele de Berlim torna-se, por causa disso mesmo, algo muito mais sério e complexo do que uma mera exposição directa das ideias musicais que inicialmente nos apresentou em The Oracle. Live é interacção livre de um conjunto de músicos em palco, sim, mas é também acção política, performance arte visceral, acto criativo profundamente confessional, excerto biográfico, catarse e exorcismo… Tudo de uma só vez.

Acompanhada por Deacon Otis Cooke nas vozes e sintetizador, Viktor Le Givens em voz e “instrumentos auxiliares”, Xristian Espinoza em sax tenor e percussão, Norman W. Long em sintetizadores e demais electrónica, Dr. Adam Zanolini em baixo, contrabaixo, sax soprano e percussão e ainda Isaiah Collier e Asher Gamezde em baterias, Bat Dawid oferece aqui prova inequívoca do jazz como acto cultural, como ferramente de afirmação e sobrevivência. O clamor de “Black Family”, que se estende quase até aos 10 minutos de duração, é protesto, lamento, tensão confrontacional, redenção e acto de catarse comunal perante o que soa a uma plateia esmagada pela evidência da dor de uma artista que se expõe de forma tão crua que não há como escapar das densas emoções que ali se atiram umas contra as outras.

Logo no momento seguinte, sobre piano que parece literalmente verter lágrimas sobre o arranjo, Angel pergunta “What Shall I tell My Children Who Are Black”, numa dolorosamente comovente passagem que soa tanto como sendo de agora mesmo, como de um possivelmente redescoberto disco de 78 rotações com 80 anos ou mais. E essa é uma marca distintiva da música de Angel Bat Dawid, a sua paradoxal intemporalidade: ainda que carregue elementos deste agitado presente – a electrónica, cadências aprendidas nos ritmos contemporâneos que também traduzem a experiência negra americana –, a sua música soa como algo que é liberto do tempo histórico e ainda assim ancorada numa vivência real, feita de factos, de gestos que magoam e de actos criativos que procuram exorcizar essa mesma dor.

O jazz livre é o guia neste registo em que Angel canaliza os ensinamentos de Sun Ra e do AACM de Phil Cohran, entendendo o acto criativo como sendo igualmente político e cultural, com o seu clarinete a funcionar como uma espécie de luminoso guia que conduz o seu colectivo através de uma atribulada viagem. A sua voz é outro guia, um instrumento claro neste registo, com viscerais clamores que podem ligar-se directamente aos episódios relatados e até documentados nas duas gravações que abrem e fecham o álbum – o confronto com o empregado de hotel que a impediu de tocar o piano no lobby e a participação num painel de discussão durante o mesmo festival berlinense em que Bat Dawid não se escusou, de forma veemente, a expor o racismo latente neste tipo de eventos. Porque para ela tudo é político, tudo é acto de resistência: fazer check in num hotel europeu, subir a um palco num festival de jazz ou participar num debate. Sobreviver é uma luta que não permite descanso. E entendendo isso, percebe-se, afinal, que o Live do título tem um sentido bem mais profundo do que o que normalmente se lhe atribui quando se percebe que se refere a um disco gravado durante um concerto. 

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