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Ilustração: Riça
Publicado a: 04/11/2020

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #35: Kahil El’Zabar

Ilustração: Riça
Publicado a: 04/11/2020

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Kahil El’Zabar] Spirit Groove + Kahil El’Zabar’s America The Beautiful / Spiritmuse

Dois incríveis álbuns em quatro meses são apenas um singelo indicador do assinalável poder do mestre percussionista Kahil El’Zabar, figura de Chicago que há 40 anos vem deixando bem documentada a sua inventividade rítmica e cromática em múltiplos projectos discográficos. Nesse longo período temporal, El’Zabar cruzou-se várias vezes com David Murray, outro mestre, mas esta foi a primeira vez que gravou com o saxofonista tenor em quarteto, com um instrumento harmónico. A dupla é secundada por Justin Dillard no piano e por Emma Dayhuff no baixo acústico, ambos seguríssimos, como bem demonstrado nos respectivos solos que assinam na extensa peça de abertura, a extática “In My House”.

A qualidade funda de Kahil El’Zabar é a sua tremenda capacidade de soar como um canal através de quem flui uma rica história musical, que vem de África e se consagra nos espirituais e nos blues, se transforma em jazz e avança na direcção de uma absoluta liberdade, acusando o balanço dos tempos com o mergulho em cadências modernas apreendidas no funk e no hip hop, como resulta claro em “Necktar” ou “Songs of Myself”. Em kalimba ou percussões variadas como o cajón, com a voz a ser usada igualmente como veículo para pontuar um discurso musical de intensa espiritualidade, El’Zabar conduz a secção rítmica por um labirinto sobre o qual Murray se espraia permanentemente inventivo, com um discurso tão sólido quanto as raízes de uma árvore centenária, sabendo soar contido ou expansivo consoante o tom de cada peça.

Com o alinhamento erguido a partir de material registado ao vivo (no clube The Promontory, em Chicago) ou em estúdio (no Rax Trax, igualmente situado na Windy City), a verdade é que se identifica um absoluto equilíbrio entre o que se obtém quando há uma troca directa de vibrações com uma audiência ou quando o tom é mais cerebral e laboratorial, como será normal em estúdio. A belíssima “Katon”, adornada pela kalimba processada de El’Khabar, é disso um bom exemplo, uma composição que parece carregar o infinito peso da ancestralidade e ainda assim sendo igualmente capaz de flutuar, tão leve quanto o mais livre dos pensamentos, com o baixo a desenrolar-se solene e o piano a oferecer um poético cenário para o saxofone de Murray que demora a entrar em cena, mas que quando o faz se impõe de forma arrebatada, parecendo evocar todos os grandes espíritos, com Trane obviamente à cabeça.

Kahil El’Zabar’s America The Beautiful, lançado há um par de semanas, é um trabalho muito distinto. Aqui, o percussionista lidera diferentes versões (consoante as composições) de um dilatado ensemble com Corey Wilkes (trompete), Hamiet Bluiett (sax barítono, entretanto desaparecido), Dennis Winslett (sax alto), Tomeka Reid (violoncelo), Samuel Williams (violino), o quarteto de cordas de James Sanders, Joshua Ramos (baixco acústico), Miguel de la Cerna (teclados), Babu Atiba (percussão africana), Ernie Adams (percussão) e Robert Irving III (piano) que executa as peças compostas, re-arranjadas e dirigidas pelo próprio El’Zabar.

O ponto de partida é, claro, o clássico “America The Beautiful”, peça de acentuado espírito patriótico escrita em finais do século XIX que neste agitado presente e sobretudo quando abordada por uma criativa e activista mente afro-americana ganha um novo e profundo sentido. A militância pela música está no âmago da arte e da prática de El’Zabar, cujo combatente espírito foi formado nas fileiras da histórica Association for the Advancement of Creative Musicians, verdadeiro pilar da contracultura de Chicago que contou com o mestre percussionista como seu director entre 1975 e 1983. Daí que a sua “apropriação” desse hino tenha uma claríssima intenção política: não se trata apenas de reclamar as ruas, de derrubar as estátuas, há que resgatar também os hinos, repensar os seus significados, sobretudo dos que cantam as virtudes de um país “maravilhoso para os pés dos peregrinos”. Os mesmos pés que subjugaram os escravos, pois claro.

Há outros hinos, com diferentes significados, que se reinventam por aqui: do fantástico “Afro Blue” de Mongo Santamaria (que ainda este ano recebeu distinta, mas também criativa atenção de Sam Gendel), ao clássico funk “Express Yourself” da Watts 103rd Street Rhythm Band de Charles Wright, peças que aqui se transformam por via de arranjos que exploram uma vibração comunal e hipnótica que se apoia na repetição, na chamada e resposta, na queda numa cadência que serve, para alcançar estados de alterados significados. E isso é especialmente sentido em “Sketches of an Afro Blue” em que as polirritmias suportam o tema exposto pela secção de cordas, o trampolim que serve para que o trompete de Corey Wilkes, primeiro, e os diferentes elementos do quarteto de cordas, depois, espalhem diferentes raios de luz, erguendo uma massa harmónica que nunca se centra confortavelmente.

As diferentes composições encaixam-se como as secções de uma suite, deixando clara que a intenção de Kahil El’Zabar foi aqui a de pintar um retrato do país que mesmo perante tamanhas ameaças perpetradas pelos poderes políticos, por séculos de uma esmagadora realidade de tensão racial, continua a ser, apesar de tudo, uma terra de sonhos, de promessas, com um potencial para ser, de facto uma America The Beautiful, generosa com todos, independentemente da cor de pele, género, orientação seuxcal ou política, independentemente das crenças espirituais ou religiosas, independentemente dos sonhos que cada um possa alimentar. Escutando o barulho bonito que Kahil El’Zabar desenha a partir dos recursos de que aqui dispõe não há como não acreditar. Diz ele que “agora é a hora de colectivamente invocarmos uma confluência de confiança e imaginação que nos ilumine um caminho futuro que nos leve a uma ética humanidade”. Haja fé.


(Estes lançamentos estão disponíveis na Jazz Messengers de Lisboa)

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