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Ilustração: Riça
Publicado a: 27/10/2020

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #34: Aquiles Navarro & Tcheser Holmes / Surprise Chef / Dougie Stu

Ilustração: Riça
Publicado a: 27/10/2020

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Aquiles Navarro & Tcheser Holmes] Heritage of the Invisible II / International Anthem

Ambos os músicos – Aquiles Navarro, trompetista, e Tcheser Holmes, baterista – são neste álbum, Heritage of the Invisible II, creditados no plano técnico com “imaginação”, mais um dos “instrumentos” a que cada um recorre para lá da sua principal e respectiva ferramenta (além da já mencionada “imaginação”, o trompetista também usa a voz, vários sintetizadores, piano e percussões ao passo que o seu companheiro, para lá da bateria e também da “imaginação”, ainda utiliza percussões variadas e a voz). A imaginação, neste contexto criativo, é normalmente entendida como uma dádiva, uma mais valia com diferentes graus de alcance, raramente como uma ferramenta passível de ser listada juntamente com variados instrumentos (e o Juno 106 ou o Moog Grandmoher são outras “máquinas” mencionadas). Navarro e Holmes parecem dessa forma dizer-nos que a “imaginação” não é algo de intangível, inexplicável ou até superior, mas um elemento técnico como outro qualquer, de que se pode por e dispor mediante uma vontade ou um programa.

Curiosamente, ambos sublinham, em entrevistas, um lado “cultural” na sua relação com a música: Aquiles Navarro tem pais panamianos que imigraram para Toronto e esse facto fê-lo partir em busca das raízes, tendo no Panamá estudado com o trompetista Victor “Vitin” Paz, que passou pelo mítico colectivo Fania All Stars, e também com o grande Carlos Garnett, saxofonista panamiano que gravou com pesos pesados como Freddie Hubbard, Miles Davis ou Charles Mingus, sempre em busca de um balanço que já pressentia no seu “caldo” genético; já Tcheser Holmes, filho de pedagogos (a mãe, Cecelia Adams-Holmes, gere um programa de artes numa escola de Brooklyn, Nova Iorque), nasceu praticamente com um djembe nas mãos tendo desde cedo sido encorajado a praticar incessantemente. Ambos reconhecem, portanto, uma ligação à música que é profundamente cultural, enraizada. A “imaginação” a que ambos fazem questão de recorrer será, portanto, a ferramenta desestabilizadora dessa predisposição cultural, o “pedal de distorção” que lhes tempera os respectivos tons. Essa “herança invisível” a que o título se refere pode, de facto, ser pesada.

Tanto Navarro como Holmes têm já provas dadas enquanto integrantes do colectivo Irreversible Entanglements que grava igualmente para a International Anthem, compreendendo portanto as dinâmicas da criação comunitária em ensembles mais dilatados, mas aqui, nesta célula contida, embora pontualmente aditivada (sobretudo com as vozes de Marcos de la Fuente, Ricardo de León e Brigitte Zozula, além da de Carlos Garnett que vem de uma entrevista realizada por Navarro em Panamá City, em 2013, e ainda com o Juno 106 e o piano “upright” de Nick Sanders, que, aliás, protagoniza um belíssimo “M.O.N.K.” que liga o espaço às raízes – e todos estes convidados são igualmente creditados com o uso da “imaginação”…), o trompetista e o baterista são os dois únicos pilares necessárias para sustentarem um monolítico som extático, radicalmente livre, de coloração afro-caribenha, mas sem evidentes estruturas ou margens, todo ele gloriosa e ruidosa expansão, busca do que é novo e não tem forma, como em “$$$ /// billete”, ritualístico e cacofónico exercício de tentativa de alcance das estrelas, que busca no mergulho cego, na repetição hipnótica e na implosão de estruturas uma ideia funda de liberdade. Um programa que, aliás, se impõe a todo o álbum.

Aviso: audições repetidas poderão revelar novos labirintos em que os nossos ouvidos vão certamente querer perder-se.



[Surprise Chef] Daylight Savings / College of Knowledge Records – Mr. Bongo

A contínua actividade de um projecto como os Heliocentrics e os mais recentes argumentos explorados por ensembles como os Calibro 35 ajudam a explicar que haja um micro-contexto para uma banda como os Surprise Chef, que chega vinda de um subúrbio de Melbourne, na Austrália onde, a julgar por este Daylight Savings, o mundo não avançou para lá de 1978.

Os Surprise Chef revelaram-se ao mundo em 2019 com a edição de All News is Good News na sua própria College of Knowledge Records, operação que gerem a partir de uma casa comunitária que é também estúdio e hub criativo. O disco de edição original algo limitada não demorou a captar a atenção da londrina Mr. Bongo que lhe ofereceu uma mais ampla exposição que rapidamente lhes trouxe efusivos (e plenamente justificados…) aplausos. Agora, apenas alguns meses após esse relançamento da Mr. Bongo, eis que Daylight Savings se propõe a empurrar a fasquia na única direcção que importa.

Carl Lindberg no baixo, Andrew Congues na bateria e Lucky Pereira e Hudson Whitlock nas percussões garantem uma sólida fundação rítmica. E quando escrevo “sólida”, o que quero dizer é sólida o suficiente para suster a pressão de uma torre de contentores recheados com mercadoria pesada: Lindberg e Congues entrelaçam padrões cadenciados com absoluta mestria deixando apenas o espaço mínimo para que a dupla de percussionistas o possa colorir com as suas congas e cowbells. Em cima dessa granítica base, Lachlan Stuckey e Jethro Curtin inventam fantasistas solos de guitarra e teclados (sobretudo órgão ou sintetizadores vintage), com argumentos harmónicos adicionais a cargo da guitarra slide de Joe Orton. E chega! O resultado é um viscoso mel de groove, viciante, pegajoso, denso e dengoso, como convém, com o funk de temperos jazzy nos solos a soar amplo, com a dose certa de atmosfera que parece respirar o mesmo ar que se pressentia nas clássicas gravações da Capitol comandadas por alguém como David Axelrod. A próxima aventura na saga Ocean’s 11 bem que poderia recorrer a esta gente de Melbourne que certamente seria bem servida. Isto é funk cinemático da melhor estirpe em busca da acção certa no grande ecrã: escute-se “Dinner Time”, por exemplo, e veja-se lá se não se vê claramente um George Clooney impossivelmente elegante ao volante de um descapotável, com os néons de Las Vegas espelhados no capô encerado. Clarinho como água…



[Dougie Stu] Familiar Future / Ropeadope

Enquanto alguns procuram familiaridade no futuro (e um encaixe no presente), há quem teime em agarrar-se ao passado como… bem, como se não houvesse amanhã, na verdade. E a presunção de uma certa crítica de que quem hoje se lança na exploração de um qualquer território que possua nobre lastro histórico (e não será isso, aliás, comum a todos os grandes territórios artísticos?), o faz liberto ou, melhor escrevendo, desprovido de referências nesses cânones de antanho diz bastante de quem parte desse (bastas vezes errado) princípio e muito pouco dos que realmente criam sem temerem explorar outro tipo de influências, porventura menos canónicas e certamente sem a chancela dos que se arrogam guardiães de uma qualquer superioridade estética, histórica, estilística, ou o que seja.

E eis Dougie Stu: produtor natural de Chicago, mas hoje residente em Oakland, na Califórnia. Nesta sua estreia na Ropeadope, o multi-instrumentista (que aqui assume despesas no baixo, sintetizadores, piano eléctrico Fender Rhodes, piano acústico, vozes e percussões pontuais) convoca para a sua beira um antigo conterrâneo, o notável guitarrista Jeff Parker, bem como vários músicos da Bay Area que se percebe serem aqui usados como pontuais peças de sessão para responderem aos arranjos que o líder pensou para cada uma das suas composições. E logo aí se adivinha a quebra de uma das regras aparentemente “sagradas” do jazz, forçando esta música a uma abordagem conceptual e laboratorial, desenhada na mesa de mistura depois de captados diferentes takes e não necessariamente no tipo de gravação directa mais tradicional neste tipo de música.

Mas Stu conhece a história: escutam-se aqui ecos do lado mais espiritual do jazz, das experiências de Alice Coltrane, mas também das produções mais atmosféricas do jazz de fusão mais comercial (outro pecado não permitido, pelos vistos, às novas gerações), numa perseguição de uma ideia muito particular de ambiência, com o autor a mostrar-se bem mais interessado em desenhar “moods” do que em expor artifícios técnicos expansivos. Este Familiar Future é subtil, contido, pensado para se encaixar num lado específico da história, talvez aquele em que alguém como Donald Byrd ou até os Azymuth em tempos se fizeram notar, com produções de seda, criadas à medida das FMs com vista para o mar, naqueles anos 70 solarengos a que a fotografia de película fez tão poética justiça. Este futuro é, enfim, familiar porque nada aqui pretende ser disruptivo ou sequer renegar a história, já que não é de ambição experimental que se faz um trabalho desta natureza, antes de rigor formal. E isso, por estranho que algumas pessoas possam pensar, também é digno de nota. Azul ou de qualquer outra cor…

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