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Ilustração: Riça
Publicado a: 09/10/2020

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #31: No Gravity / Devin Gray & Gerald Cleaver / The Heliocentrics

Ilustração: Riça
Publicado a: 09/10/2020

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[No Gravity] No Gravity / Communion Records

Zero pistas orientadoras na página Bandcamp deste lançamento, mas ainda assim há uma série de outros preciosos indicadores que nos podem guiar na escuta deste No Gravity, trabalho que inaugura o catálogo da Communion Records (e depois do arranque da Phonogram Unit, em que milita o irmão do baterista João Lencastre, o saxofonista José Lencastre, eis mais uma boa notícia no mapa editorial da cena jazz nacional). Em primeiro lugar há a palavra que designa este novo selo discográfico, “Communion”: a ideia de comunhão, quando subtraída do plano religioso e aplicada no plano musical, indica uma abordagem que busca na partilha a descoberta de um espaço impossível de alcançar por uma só mente criativa, a ideia de que da soma das partes resulta sempre algo mais do que a mera aritmética poderia sugerir. Esse conceito sai reforçado pelo nome do trio que serve também de título ao álbum, No Gravity: flutua-se sem gravidade quando não há uma massa que puxe os corpos para um centro, que lhes dê peso, que os mantenha fixos. Ou seja, as contribuições do pianista Rodrigo Pinheiro, do baixista, contrabaixista e manipulador de electrónicas João Hasselberg e do baterista que também recorre a percussão electrónica João Lencastre são aqui equiparadas, sem que haja um elemento que funcione como óbvio centro ou guia.

O resultado, é uma música altamente exploratória, fluída, líquida de tão harmonizada e que se apresenta ao nível “molecular”, sem ângulos ou esquinas, toda ela orgânica na forma como progride, aparentemente sem margens definidoras. E isso permite-lhe soar como uma espécie de corpo estético híbrido e mutante, algures entre o jazz, a música improvisada livre ou a música contemporânea. Tal facto surge amplificado pelo nítido interesse do grupo em explorar outro tipo de possibilidades texturais, adicionando a electrónica ao arsenal rítmico, libertando o piano para deambulações de poética abstracta absoluta. E na sua subcave, tanto os graves de Hasselberg quanto os pulsares de Lencastre apresentam-se inquisitivos, irrequietos, naturalmente curiosos, libertos de qualquer “dever” formal, capazes de se perderem em derivas que nos recompensam sempre a escuta atenta, na forma como parecem estar em permanente estado de inquietação. Quando a ausência de gravidade não nos ancora a uma ideia, a um registo ou conceito rígido, nada impede o pensamento de se perder na imensidão cósmica de possibilidades que o infinito espaço sonoro pode representar. E é esse o caso aqui.



[Devin Gray & Gerald Claver] 27 Licks! / Rataplan Records

São de gerações diferentes, os bateristas Devin Gray e Gerald Cleaver. A discografia de Gray recua até 2005 e coloca-o de pés firmemente apoiados num plano mais underground e a colaborar em projectos de gente como Nate Wooley ou Michael Formanek, entre vários outros. O percurso discográfico de Cleaver, baterista natural de Detroit, teve início duas décadas antes e levou-o a trabalhar ao lado de lendas como Roscoe Mitchell, Joe Morris ou Matthew Shipp, para citar três nomes muito diferentes.

Na página Bandcamp com que se apresenta este projecto, David Gray explica como conheceu Gerald Cleaver num workshop conduzido por Dave Douglas em 2006. Explica o mais jovem baterista que o senhor Cleaver incentivou o ensemble em que estava então integrado a “tocar música para lá das nossas limitações pessoais e das limitações naturais dos nossos instrumentos”: “Foi quando”, explica ainda Devin Gray, “percebi que me podia sentir bem a expressar-me pessoalmente através de formas musicais que já conhecia”. Basicamente, o veterano incentivou o discípulo a não temer o desconhecido e a cultivar o risco, o salto no abismo.

E é precisamente dessa curiosidade sem fundo, desse absoluto destemor, dessa vontade de ir para lá de tudo o que já se conhece que se faz este 27 Licks, um disco gravado em finais de 2019 em Brooklyn, em que o duo aplica a energia e o prazer absoluto que descobriu a tocar em conjunto nos mais variados locais desde 2011, incluindo na rua. É também uma sentida homenagem de um discípulo a um mestre e uma celebração da energia que a amizade, o respeito mútuo e a criatividade sem amarras pode gerar. Duas baterias que dialogam, sem guião, em vívidas cadências de liberdade absoluta, de invenção formal, de luz, cor e brilho intenso, com os dois instrumentos a serem levados ao limite, explorando-se a totalidade das suas nuances cromáticas, com o metal, pele e madeira em harmonia total, num registo de um encontro especial, mas que ainda assim Devin Gray descreve como tendo aquela aura de “só mais um dia”. Porque nesta música, como nesta vida, de resto, todos os momentos são preciosos.



[The Heliocentrics] Telemetric Sounds / Madlib Invazion

Depois de, em Fevereiro último, ter levado o seu colectivo a estrear-se na Madlib Invazion, selo do genial produtor de Los Angeles Madlib e do seu fiel “escudeiro” Egon, com a edição de Infinity of Now, Malcolm Catto apresenta já novo álbum, Telemetric Sounds. Na verdade, os Heliocentrics – que já somam quase uma dúzia de álbuns numa já considerável discografia inaugurada em 2005 com um single lançado na Jazzman – já contavam quatro registos na Now-Again de Eothen “Egon” Alapatt, pelo que esta relação agora estabelecida com Madlib é bem mais natural do que surpreendente. É que Catto faz discos que soam como se fossem criados para responder aos mais delirantes desejos musicais dos mais inventivos beatmakers que correm o mundo em busca de esotéricas rodelas de vinil. Como Madlib…

No currículo extraordinário dos Heliocentrics há colaborações com Mulatu Astatke, Lloyd Miller, Melvin Van Peebles ou Orlando Julius, colocando-os, portanto, na esfera de autênticos génios que inventaram novas linguagens musicais, exploraram as mais remotas regiões do jazz e do afrobeat e definiram a aura psicadélica da blaxploitation. A essas já de si amplas coordenadas, o colectivo fluído liderado pelo baterista Malcolm Catto soube acrescentar doses generosas de inspiração angariada nos domínios da mais exploratória library music, das mais remotas regiões psicadélicas da música, no funk e no jazz mais libertário, na música cósmica e na electrónica pioneira. Não terão sido poucos os momentos em que os Heliocentrics soaram a colectivo obscuro de krautrock a quem tinha sido oferecida a possibilidade de participarem numa jam session com Sun Ra e Ennio Morricone gravada no The Shrine, em Lagos, Nigéria, algures por volta de 1973. E, se quisermos ser realmente honestos, nem assim se faz plena justiça ao som que este grupo é capaz de conjurar…

Telemetric Sounds, diga-se em abono da verdade, não desmerece todos esses gloriosos pergaminhos colecionados pelo grupo nestes últimos 15 anos. Os Heliocentrics são um género em si mesmo, delirante, densamente obscuro, uma nuvem lisérgica de pulsares de laboratório, com uma fórmula que se faz em igual medida de ciência e de magia voodoo, que tanto parece ter origem num qualquer planeta distante e desconhecido como numa caverna perdida na selva amazónica ou numa câmara secreta resguardada no interior de uma pirâmide egípcia. E posso garantir que tendo começado a escrever este texto após ter posto Telemetric Soundfs a tocar na primeira faixa, todas estas ideias são o resultado da experiência proporcionada apenas pelos seus dois primeiros temas… A densa tapeçaria de bleeps electrónicos que parecem resgatados directamente no acervo do Radiophonic Workshop adicionados ao sujo pulsar funk, à toada free jazz dos sopros e a uma gestão do espaço aural através da inteligente manipulação da mesa de mistura que é psicadélica até ao tutano é mel do mais puro, resultando num som igualmente viscoso e com propriedades mágicas. Fica o aviso feito.

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