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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 15/12/2025

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #144: The People’s People / Joonas Tuuri Quartet

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 15/12/2025

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.


[The People’s People] The People’s People Present The Spirit of David (Frederiksberg Records)

O movimento dos Direitos Civis na América e todas as convulsões políticas que se seguiram, a Guerra do Vietname, os ecos dos movimentos independentistas em África e uma consciência de que a organização comunitária poderia oferecer uma base para a evolução de uma sociedade foram factores decisivos na transformação das dinâmicas culturais afro-americanas entre meados da década de 60 do século passado e finais da década seguinte. Editoras como a Strata East ou a Black Jazz, colectivos como a Association for the Advancement of Creative Musicians (AACM) em Chicago ou a Pan Afrikan People’s Orchestra de Horace Tapscott, aventureiros projectos discográficos como Organic Music Society de Don Cherry ou M’Boom de Max Roach permanecem como sinais da arte musical afro-americana a assumir um papel libertário cujos efeitos ainda hoje perduram.

É nesse efervescente contexto que se devem compreender as acções de Jeff Jones, um saxofonista e compositor de Oakland, na Califórnia, um lugar onde todas essas forças transformadoras parecem ter convergido. Jones foi o instigador do ensemble The People’s People, um projecto que fundia intenções activistas com uma prática musical rigorosa e que haveria de gravar, em 1976, o álbum The People’s People Present The Spirit of David, uma raríssima prensagem privada (a última cópia vendida no Discogs em Janeiro de 2025 alcançou o valor de 2800 dólares!) que acaba de ser reeditada pela extraordinária Frederiksberg, um selo especializado em reedições que foi fundado em Nova Iorque, em 2013, pelo documentarista dinamarquês Andreas Vingaard.

Esta oportuna e sinceramente necessária reedição vem acompanhada de reveladoras liner notes da autoria de Karl Evangelista, um guitarrista e compositor filipino-americano que dirige o ensemble Apura (lançaram Ngayon na Astral Spirits em 2023), que trabalhou com músicos como Oliver Lake ou Louis Moholo-Moholo e que é um lecturer na San Francisco State University no departamento de Race and Resistance Studies. Escreve Evangelista que “entre as muitas maravilhas duradouras de Oakland, na Califórnia, está o seu legado de activismo político e social. Esta é a cidade que deu origem ao Merritt College, a instituição que Bobby Seale e Huey P. Newton frequentaram quando formaram os Panteras Negras em 1966; é a cidade que protestou, marchou e se revoltou quando Oscar Grant foi baleado em 2009; Oakland fica a poucos passos do berço do Movimento pela Liberdade de Expressão de Berkeley, alimentou um centro nevrálgico do movimento Occupy e passou décadas a lutar contra a falta de habitação, o racismo e a brutalidade policial”.

Foi nesse agitado hub de inconformismo que Jeff Jones decidiu centrar a sua actividade. Esclarecem ainda as liner notes que “a solução inovadora de Jones para os crescentes problemas sociais da Bay Area foi usar o entretenimento para educar e interagir com a comunidade local. Ele apresentava-se sob os auspícios do Programa de Pequeno Almoço Gratuito para Crianças em Idade Escolar dos Panteras Negras e também organizava concertos em parques locais sob a bandeira do Jazz for the Homeless (Jazz para os Sem-Abrigo)”. Foi desse dedicado activismo que nasceu o projecto The People’s People.

Jeff Jones recrutou uma primeira banda para o assistir no processo de estruturação das suas composições e que incluía o pianista Bruce Harris, o igualmente pianista e arranjador Ben Tom Herr e o baterista Dennis Seacrest. Mas a sessão de estúdio — resultante de um único take contínuo — foi realizada com o baterista com formação clássica Jack Spinovich e ainda com rodados músicos profissionais como o pianista Steve Espanosa, o vocalista Emmons Porter, o percussionista Ray Vega e o guitarrista Leonard Franklin. Ecoando a férrea disciplina imposta por outros visionários — como Sun Ra, que submetia os membros da sua Arkestra a um intensivo programa de ensaios, exigindo exclusividade dos seus principais músicos —, Jones também impôs aos músicos que seleccionou para The People’s People três anos de intensa preparação em que a música, como refere Evangelista citando o próprio líder, era “treinada até à exaustão, como na recruta militar”. “Os participantes eram mais ou menos proibidos de aceitar trabalhos remunerados nesse período, e o líder da banda, que guardava a maior parte do seu capital para pagar o tempo de estúdio, não tinha condições de alimentar ou pagar a banda”.

O resultado desse programa tão exigente, no entanto, foi extraordinário e fica explícito ao longo de quatro peças que interligam de forma imaginativa jazz espiritual, soul e funk e até ecos de música africana numa suite com óbvio lastro emocional que de facto reflecte toda a complexidade de uma era de profundas agitações sociais. “Monica”, uma balada que Jones escreveu para a sua filha, ancora a visão de Jones numa experiência profundamente pessoal que se pressente na sua entrega, com o tom do seu saxofone a revelar uma dedicação total à sua visão. O expressivo saxofonismo de Jeff Jones marca igualmente “Q Street”, que arranca com uma meditativa exposição no saxofone que não enjeita uma aproximação a latitudes culturais distantes e que abre espaço para Franklin demonstrar ter sido um estudante atento das invenções de Jimi Hendrix na guitarra e para Espanosa se aproximar do espaço num portentoso solo no Fender Rhodes. O bem oleado engajamento dos músicos com a visão de Jones é igualmente notório em temas como “Fritz”, uma excursão bebop uptempo em que o saxofone volta a assumir a dianteira, ou “Where is My Autumn Love”, uma terna balada que parece pensada para encaixar na programação nocturna das rádios.

De uma era em que o compromisso com a evolução com base num dedicado trabalho junto das comunidades parece contrastar com o individualismo deste “capitalismo tardio”, esta música é mais um valoroso sinal de que é na entrega incondicional à arte que a humanidade melhor se resolve.


[Joonas Tuuri Quartet] Pindorama (Eclipse Music)

Há uma Copacabana imaginária algures em Helsínquia, encostada à Mansku, onde o frio cede ao calor de um sol inventado; por aí há também um Corcovado desenhado nos intervalos dos prédios de Kalasatama; vendedores de água de coco a empurrar carrinhos coloridos estacionados diante da catedral em Kruununhaka; e doces e frescas caipirinhas no topo das preferências dos clientes que relaxam nas esplanadas de Kallio. Tudo isto se revela na fantasia tropical que Joonas Tuuri e o seu quarteto projectam em Pindorama, segundo álbum que o ensemble apresenta depois da auspiciosa estreia em 2022 com Dimensions, um registo marcado por uma elegância bop absoluta, polida com um inconfundível twist contemporâneo.

Tuuri é hoje um dos contrabaixistas mais requisitados da Finlândia, músico de agenda preenchida e de presença constante nos palcos que dão corpo à vibrante cena jazzística de Helsínquia. Faz parte do Bowman Trio, do JAF Trio e do septeto The Watercolors, todos com actividade regular e discos que atestam a vitalidade dessa cena; integrou também os Lithium, projecto que incluía o guitarrista português André Fernandes e que deixou dois registos de sólida invenção entre 2018 e 2022; e tem surgido como colaborador em trabalhos alheios, entre eles os de Susanna Aleksandra, vocalista estoniana radicada em Los Angeles, ou de Anna Inginmaa, sua compatriota. Não menos relevante é a sua faceta pedagógica: Tuuri ensina na Hyvinkään Musiikkiopisto, detalhe que não deve ser visto como mero apêndice curricular, mas como sinal de um músico que valoriza a reflexão e o estudo, que compreende a importância de olhar para trás e colher as lições da história. Essa atenção ao passado transparece de forma clara nos discos que assina com o quarteto: são obras que revelam uma escuta atenta e uma aprendizagem constante, tanto dos mestres mais celebrados do jazz como das pérolas discretas que sobrevivem fora do cânone oficial, mas que para os mais dedicados iniciados têm um peso fundamental.

Quando questionado sobre as suas referências, o contrabaixista aponta nomes que iluminam a direcção deste Pindorama: os guitarristas Chico Pinheiro e João Bosco, o cantautor Djavan ou ainda as gravações brasileiras do gigante Toots Thielemans. Essa cartografia pessoal de influências ajuda a perceber a forma como o quarteto constrói uma música simultaneamente solar e sofisticada, que recupera tradições sem nunca soar a exercício de mimetização. É precisamente a conjugação entre a capacidade de trabalho em múltiplos contextos e a erudição musical evidente em cada nota que torna Tuuri um artista pleno. A sua imaginação, sempre vívida, traduz-se aqui num mergulho particularmente estimulante nas subtilezas de um jazz iluminado pela claridade dos trópicos, ecoando décadas de inventividade que tornaram a música brasileira um dos capítulos mais originais do jazz global.

Mas este sonho tropical não seria possível sem os três músicos que o acompanham: Ilmari Rönkä no saxofone alto e flauta, Toomas Keski-Säntti no piano e Anssi Tirkkonen na bateria. Cada um deles é fundamental para dar corpo às composições de Tuuri, peças que pedem elevada desenvoltura rítmica e harmónica, e que colocam todos perante o desafio de responder a uma música que exige atenção, elasticidade e imaginação. O comping de Keski-Säntti é cheio de balanço e subtileza; por outro lado, nos solos de piano eléctrico, como em “Bem-Te-Vi” ou “Maré Alta”, há um abandono lúdico que remete para a leveza do samba, enquanto em “Começos” ou “Reflexo”, aí já sentado ao piano acústico, revela ser igualente possuidor de uma elegância serena e doce educada pela bossa nova. Rönkä, por sua vez, mostra uma versatilidade notável: na flauta, como em “Bem-Te-Vi”, traça linhas melódicas que parecem desenhar a própria paisagem avistável do Cristo Redentor, enquanto no saxofone adorna temas como “Sonâmbulo” com frases curtas, incisivas e carregadas de intenção, evocando a preguiça quente de uma tarde à beira-mar. Tirkkonen completa o círculo com pulso firme, sofisticação e um domínio impressionante do tempo rítmico que o Brasil depurou ao longo de décadas. O uso inventivo dos pratos dá textura e cor ao discurso do quarteto, com especial eficácia em “Escuro”, faixa que sintetiza o entendimento profundo do baterista acerca dessas cadências distintas. E há ainda Tuuri, sempre no centro, a sustentar e a ligar todos os elementos. As suas linhas são sinuosas, criativas, e funcionam não apenas como suporte, mas como motor que guia e incentiva os companheiros. O solo electrificado em “Escuro”, breve, mas incisivo, resume em poucos segundos a clareza do seu pensamento musical: imaginação, risco e brilho.

Esse equilíbrio entre as vozes do quarteto é amplificado pelo material que interpretam. As composições de Tuuri não são meras estruturas de improvisação; cada uma contém pequenas histórias dentro de si, narrativas que se desdobram em camadas e que exigem múltiplas escutas para se revelarem por inteiro. São peças que desafiam sobretudo no plano harmónico, onde os diálogos entre os instrumentos se tornam complexos e profundamente interdependentes. É essa riqueza que garante que cada regresso ao disco oferece novas descobertas, novos detalhes escondidos nos interstícios da música.

Ouvir Pindorama é, assim, partilhar de uma fantasia construída com rigor e sensibilidade: uma viagem em que Helsínquia e o Rio de Janeiro se sobrepõem, em que o frio do Báltico se dissolve no calor tropical e em que a disciplina do jazz europeu encontra o balanço inconfundível da música brasileira. Seria uma experiência única testemunhar esta música ao vivo, num clube íntimo de Kallio, numa noite quente de verão, com uma caipirinha na mão e a sensação de que, por uns instantes, Copacabana se tinha mudado para o coração da capital finlandesa.

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