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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 12/08/2025

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #143: Azymuth / Helena Casella

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 12/08/2025

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.


[Azymuth] Marca Passo (Far Out Recordings)

A ligação duradoura entre a música brasileira e a americana precede o estrelato de Carmen Miranda em Hollywood e encontra-se enraizada em histórias compartilhadas moldadas por lutas coloniais e resiliência cultural. No seu mais recente lançamento, Marca Passo, a lendária banda brasileira Azymuth demonstra com vivacidade a profundidade desse diálogo musical de longa data. O álbum entrelaça as cadências rítmicas do samba, a riqueza harmónica da bossa nova e do jazz, e os grooves contagiantes do funk e da disco, forjando uma linguagem sincrética e universal que transcende fronteiras. Trata-se de uma abordagem cósmica do samba — uma que incorpora com fluidez texturas e cadências jazzísticas, criando uma tapeçaria sonora tão rica que, por vezes, parece ser executada por uma orquestra, e não por um trio.

Alex Malheiros, o único membro fundador sobrevivente após o falecimento de Ivan “Mamão” Conti e José Roberto Bertrami, permanece como o coração pulsante do grupo. As suas linhas de baixo proporcionam uma base vibrante que assegura a continuidade do som característico da banda, tão cativante quanto no arranque do seu percurso há mais de cinco décadas. Ao seu lado, estão dois músicos notáveis: o recém-chegado Renato Massa, um baterista dinâmico com créditos em trabalhos de Marcos Valle e Ed Motta, e Kiko Continentino, um teclista talentoso cujos arranjos para Milton Nascimento e Djavan atestam bem o seu pedigree musical. Desde que se juntou a Malheiros em 2016, Continentino injectou nova energia no grupo e a experiência colectiva e a compreensão do espírito original dos Azymuth são evidentes mais valias em Marca Passo.

Em entrevistas, Malheiros deixou claro que os novos membros captam a essência do grupo — a criação espontânea e a improvisação —, técnicas que impulsionaram a gravação do álbum no Rio de Janeiro. Kiko Continentino, em particular, brilha intensamente ao longo do disco, transformando os Azymuth num trio ácido encharcado de Hammond num momento e, no seguinte, num trio de jazz com Rhodes que parece vir de outra galáxia. Os ritmos de Renato Massa são uma cascata incansável — canalizando o samba com os pés e o funk com as mãos —, enquanto Malheiros toca com uma alegria que remete aos primeiros dias da banda no estúdio Haway, no Rio, em 1975, quando gravaram seu álbum de estreia, Azimuth (como eram designados na época).

O que talvez seja mais marcante em Marca Passo é que, apesar da sua reverência ao som clássico da banda, este novo trabalho soa inteiramente contemporâneo — o álbum, de facto, não é nem revisionista, nem nostálgico. Isso deve-se, em parte, ao facto de que a fusão jazzística que é marca registada dos Azymuth se tornou numa incontornável referência para toda uma nova geração de artistas de jazz europeus e americanos. A presença de Jean Paul “Bluey” Maunick, dos Incognito, em “Last Summer in Rio” reforça ainda mais o alcance transgeracional do samba-jazz cósmico e ácido dos Azymuth — uma influência que persiste desde meados dos anos 1970 e impactou várias gerações de músicos de ambos os lados do Atlântico. Com mais de três dúzias de álbuns em seu nome, incluindo uma dúzia lançada pelo selo londrino Far Out Recordings, o legado dos Azymuth continua a prosperar até hoje.

Embora contribuições ocasionais do baterista Victor Bertrami, do teclista Dudu Viana, dos percussionistas Ian e Sidinho Moreira e do saxofonista José Carlos Bigorna enriqueçam o álbum, é o trio central — Malheiros, Continentino e Massa — que impulsiona a sua profunda sofisticação. As suas recentes apresentações ao vivo, marcadas por uma evidente alegria e um senso compartilhado de propósito, reafirmam que Marca Passo não é uma banda que apenas marca o passo, como o título poderá sugerir, mas sim uma que avança com vitalidade e visão, traduzidas numa música densamente repleta de ideias frescas e um swing-funk perfeitamente adequado às pistas de dança globais mais livres e progressistas.


[Helena Casella] Pit Of Impressions (W.E.R.F. records)

No final de “Undefined Borderline”, tema de abertura de Pit Of Impressions, álbum de estreia em nome próprio de Helena Casella, escutam-se algumas vozes em português — soa a gravação de um final de festa, com um brinde e chocar de copos. O tema com mais de sete minutos, o mais longo do alinhamento deste álbum da cantora, que tem ascendência belga e brasileira, tem óbvias ligações à estética neo-soul, sobretudo à mais orgânica visão refinada por estetas como Erykah Badu ou D’Angelo, mas a sua duração dilatada, com arranjos que entendem que as boas ideias requerem tempo para se desenvolverem plenamente, remete-o claramente para os domínios do jazz: talvez se estivesse a celebrar um primeiro take bem-sucedido? O jazz e a soul contemporânea são, de facto, as duas principais coordenadas de Pit Of Impressions, mas a sofisticada dimensão harmónica das canções e, de forma talvez mais subtil, a gestão rítmica dos arranjos que se desenrolam sobretudo num atmosférico mid-tempo, também remete para a rica música do Brasil, como por exemplo se percebe durante “Imaginary Windows” ou, sobretudo, “Power Plants”, deixando claro que a história familiar de Helena Casella deixou marcas fundas na sua musicalidade.

Em entrevistas, Helena é generosa ao revelar as suas principais referências e não se escusa a citar nomes da cena britânica como Mansur Brown, Cleo Sol ou James Blake — “my biggest inspiration” —, mas a cantora que é igualmente uma talentosa pianista também refere clássicos como Donny Hathaway, Lonnie Liston Smith e gigantes como John Coltrane ou Sonny Rollins quando instada a nomear as fundações da sua musicalidade. Casella também menciona, numa entrevista de apresentação produzida pela sua editora, que o baterismo mais “espacial” de Brian Blade é outra inspiração que ela procura traduzir com a sua própria música que foi sendo gravada ao longo de um dilatado período de tempo com uma banda de jovens amigos: Euan Jenkins na bateria, Joel Svedberg no baixo, Johnny Biner na guitarra, Halfpastseven nos teclados (juntos formam os Radiohop, uma banda baseada em Amesterdão conhecida por fundir hip hop e jazz) e ainda Tallulah Rose no saxofone e o seu irmão Thomas Casella nas vozes de apoio (a ficha técnica lista igualmente contributos do guitarrista Agus Fulka em “Frozen in Sight” e do vocalista Michiel Dendooven em “We Are Everything, Always”).

Casella não é um misterioso fruto de geração espontânea e o seu talento já tinha deixado marcas em trabalhos tão distintos quanto o álbum de estreia da banda de jazz contemporâneo de Roterdão Imaginarium, numa das melhores faixas (“You Should Know”) de Dandelion, álbum do rapper e produtor de hip hop belga Kunde (ambos trabalhos de 2024) ou até no colectivo de Ghent Jamaican Jazz Orchestra, com quem gravou uma deliciosa “Morning Girl” em 2019. No mínimo, essas são amostras da versatilidade de Helena Casella, cuja voz doce, capaz de inteligentes harmonizações, tem um carácter tão distinto que lhe permite brilhar em qualquer contexto. Essa qualidade é plenamente aplicada em “Pit Of Impressions”, trabalho que ainda brilha de forma mais intensa pela sua delicada dimensão poética: a artista e compositora revela que as suas leituras de obras de Milan Kundera (“Immortality”) ou Octavia E. Butler (“Parable of the Sower”) ajudaram a guiar a sua caneta que traduz de forma clara as suas experiências e visões de vida: “I don’t mean to be a burden / When a look may seem uncertain / Infiltrating your awareness, unwanted vibrations / Passed on in the process”, canta ela na balada “Frozen in Sight” em que aborda os momentos em que se sonha acordado, em pleno dia.

Pit Of Impressions pode ser o resultado de um conjunto disperso de canções que foram sendo escritas ao longo dos últimos anos, mas a coesão da banda, a direcção musical e os arranjos que Casella assina conjuntamente com os Radiohop conferem-se uma sólida unidade e afirmam este álbum como um sólido primeiro passo numa promissora carreira.

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