Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.
[Sun Ra] Nuits de la Fondation Maeght (Strut)
A quantidade de títulos discográficos de Sun Ra actualmente disponíveis em múltiplos catálogos é absolutamente assombrosa e prova definitiva de que, para lá do espaço, o líder da Arkestra também soube fazer do futuro o seu habitat natural. Mas o caso era significativamente diferente em 1970. O músico nascido Herman Sonny Blount em Birmingham, Alabama, por volta de 1914, revelou o seu nome artístico num par de álbuns editados em 1957 — Jazz By Sun Ra, Vol. 1 (edição da Transition, mais tarde relançada como Sun Song pela Delmark) e Super-Sonic Jazz (El Saturn) —, mas só começou a lançar discos regularmente na década seguinte, sobretudo através da sua própria editora, a El Saturn Records, operação estabelecida conjuntamente com Alton Abraham que funcionava de forma independente e com distribuição muito limitada. Dois volumes de The Heliocentric Worlds of Sun Ra, o álbum Nothing Is… (editados em 1965-66 pela ESP-Disk de Bernard Stollman) e ainda Sound of Joy (Delmark, 1967) foram, na década de 60, excepções no fluxo contínuo de lançamentos na El Saturn, ainda assim em selos demasiado modestos para que uma séria repercussão na Europa se tivesse feito sentir.
Em 1970, incentivado por Willis Conover, que contribuiu decisivamente para a divulgação trans-oceânica da mais avançava nova música americana através das suas emissões na rádio Voice of America, Sun Ra começou finalmente a ponderar apresentações na Europa, preparando-se para seguir os passos de vários dos seus pares que há muito aí encontravam públicos receptivos até às mais radicais propostas musicais. John F. Szwed relata nas páginas de Space is the Place – The Lives and Times of Sun Ra (Random House, 1997) como o simples acto burocrático de obter um passaporte se tornou para Sun Ra um gesto de libertária afirmação de uma nova identidade: “That passport gained talismanic force over the years, and musicians shook their heads when they saw it”.
Um ano antes disso, em 1969, o quarteto de Cecil Taylor — com os saxofonistas Jimmy Lyons e Sam Rivers e o percussionista Andrew Cyrille — apresentou-se ao vivo na Fondation Maeght, instituição criada por Aimé Maeght, milionário e patrono das artes. A abertura em 1964 de um impressionante museu em Saint Paul de Vence, localidade próxima de Cannes, deu dimensão física à Fundação e permitiu a criação da série de apresentações Nuits de la Fondation Maeght que, através da visionária curadoria de Daniel Caux, em estreita colaboração com Chantal Darcy, se tornariam numa verdadeira montra para a Europa de alguma da mais avançada música americana: além de Taylor, Caux produziu aí espectáculos de Albert Ayler, La Monte Young com Marian Zazeela e Terry Riley, e, pois claro, Sun Ra.
O próprio Daniel Caux, autor de entusiasmadas crónicas na revista L’Art Vivant sobre nomes-chave do minimalismo e do mais disruptor free jazz, descreveu a passagem da Arkestra pelos jardins da Fondation Maeght de forma graficamente detalhada: “The audience is stunned before a spectacle that surpassed in every way anything they could have imagined. Films are projected behind the musicians; these include vistas of New York and Chicago, street scenes, Arkestra rehearsals, rockets to the moon, Egyptian gods or plumed African warriors. Lights are filtered on to the stage or illuminate it strongly while Sun Ra’s organ throws lightning bolts. Dancers brandish emblems or symbolic objects. From this surge of collective improvisation, emerges the alien sonority of a bass clarinet, or six flutes playing in unison to a theme intoned by a choir, or a few rippling piano notes to the howling of a Moog synthesizer, thus the music takes on varied and unpredictable aspects. Then suddenly one of the musicians jumps over a luminous glass sphere which only moments before was supposed to represent the all powerful sun…”
Após a série de apresentações na Fundação, Aimé Maeght instou Daniel Caux a usar os registos áudio dos concertos como base para a criação de uma editora. Chantal D’Arcy acabaria por inspirar o nome do selo, Shandar, que se estreou em 1970 com a edição de dois volumes resultantes das gravações dos concertos de Albert Ayler a 25 e 27 de Julho desse mesmo ano (em 2022, a INA em estreita colaboração com a Elemental, lançou a totalidade das gravações num luxuoso boxset de 5 LPs ou 4 CDs). Seguiram-se edições de Steve Reich (Four Organs / Phase Patterns, com gravações originalmente feitas em Nova Iorque e Berkeley), Cecil Taylor (uma caixa de 3 LPs com música gravada na Fondation Maeght em Julho de 1969) e, logo depois, em 1971, os dois volumes que documentaram a passagem da trupe de Sun Ra por Saint Paul de Vence. A edição presente, da Strut, recolhe a totalidade das gravações num boxset com 6 LPs que inclui igualmente uma reprodução do programa original e um booklet com ensaios de Daniel Caux, Jacqueline Caux e Paul Griffiths e fotos de Philippe Gras da performance da Arkestra.
John Gilmore, Marshall Allen, Pat Patrick, Danny Davis, Danny Ray Thompson, Alan Silva e June Tyson são naturais destaques num conjunto de 19 músicos e bailarinos que ali assinaram uma brilhante ainda que algo incompreendida viagem pelo particular cosmos imaginado por Sun Ra. O notório promotor Norman Granz escreveu mesmo a Maeght para lhe apontar o “mau conselho” que o tinha levado a programar concertos de Ayler e de Ra: “Não são músicos sérios”, terá garantido o homem que organizou os famosos concertos Jazz at the Philharmonic entre 1944 e 1957. O cérebro da Arkestra funcionava, decididamente, numa dimensão diferente, tal como o estonteante material agora lançado deixa claro. A música de Sun Ra parecia avançar, ao mesmo tempo, em direcção ao passado que Granz tinha exaltado com a sua mítica série de concertos, mas também rumo a um futuro que então poucos logravam vislumbrar. E o próprio Sun Ra procurou explicar o que ali tinha apresentado, focando-se na impressionante “Friendly Galaxy No. 2”, peça que arranca sob audível ovação do público presente na noite da gravação, em Agosto de 1970, com uma incrível introdução de Sun Ra no Farfisa: “One of the things which most impressed listeners at the Fondation Maeght is the passage for six flutes ad lib, six flutes playing in harmony. I could say improvising in harmony. I’m inspired by it to do something else that would be totally different. I believe it’s a musical idea which would be totally different. I believe it’s a new way of using flutes. It’s at once both very melodic and harmonious and at the same time so distant, as if the music was heard in the distance through a sort of mist. It’s so ‘out of this world’.” Fora desse mundo e certamente fora desse tempo. Talvez agora consigamos finalmente admirar esse futuro que Sun Ra ousou inventar.
[Timo Lassy Trio] Live in Helsinky (We Jazz)
A expressão “site specific”, frequentemente usada para descrever a forma como artistas plásticos interagem com os diferentes espaços em que apresentam as suas obras, também é aplicável no contexto do jazz. Qualquer músico dirá que a energia de um lugar — um clube, um festival, um estúdio, uma sala de ensaios… — tem reflexo directo na forma como se toca e que todos os detalhes contribuem, de forma mais ou menos pronunciada, para a performance: o ambiente humano do lugar, a disposição do palco, a iluminação, o sistema de som… Quem já possa ter estado no G Livelab, descrito nas notas de lançamento deste Live in Helsinky como “a principal sala para música ao vivo” da capital finlandesa, perceberá bem que o carácter especial desse lugar tem uma correspondência directa com a alta definição acústica e com a vibrante intensidade da performance do saxofonista Timo Lassy, do contrabaixista Ville Herrala e do baterista Jaska Lukkarinen aqui documentada. Equipado com um poderoso sistema de som Genelec, único no mundo e, lá está, desenhado e construído especificamente para aquele espaço, o G Livelab — uma sala gerida por músicos, o que é igualmente detalhe relevante — parece que faz de cada lugar disponível para o público o equivalente ao sweet spot num qualquer estúdio state of the art: é como se cada espectador estivesse a escutar música num sistema hi-fi com um preço equivalente ao de um carro de luxo.
O trio comandado por Timo Lassy demonstra aqui ter plena consciência do que significa tocar num lugar com essas características porque a alta resolução da gravação conduzida por Kimmo Antikainen expõe claramente o tom e o ânimo de cada um dos músicos: o tenor de Lassy exibe toda a sua nobre rugosidade e soa de forma intensamente telúrica sem, no entanto, invadir o espectro sonoro dos restantes instrumentos; o contrabaixo domina os graves, apresenta-se fundo e sinuoso, mas não deixa de circular entre as frequências mais baixas que tanto o saxofone (que quase soa como um barítono em “Rumble Outro”) quanto o bombo da bateria também debitam, como tão bem se percebe na fabulosa “Mountain Man Exit / Orlo”; e as diferentes partes do kit de Lukkarinen beneficiam de total clareza, com os seus pulsos a conseguirem fazer cintilar os pratos e extrair grooves de elegância formal absoluta da tarola. E depois, quando o público se faz ouvir para aplaudir um solo ou saudar o trio no final de cada peça, é como se nós mesmos lá estivéssemos nessa noite de Setembro de 2023.
O material a que o trio aqui dá nova vida chega dos álbuns Moves (Membran, 2018), Trio (We Jazz, 2021), The Soul & Jazz of Timo Lassy (Ricky-Tick Records, 2007) e Love Bullet (Membran, 2015) e ainda do single “Mountain Man Exit” (We Jazz, 2022), trabalhos de momentos muito distintos da carreira multifacetada do saxofonista que é um dos pilares da vibrante cena jazz finlandesa. Mas nas mãos deste trio com sólidos pergaminhos técnicos e com bem afinado entrosamento telepático, esse reportório disperso soa perfeitamente coeso, com identidade vincada, como se fossem criações originais estreadas naquela noite após um longo período de ensaios. Essa vincada unidade, no entanto, não retira espontaneidade aos músicos e cada um demonstra ser detentor de criativa imaginação no momento de solar e levar as peças para outro lugar. Em “African Rumble”, por exemplo, sem o harmónico enredo pianístico que servia a versão original, Lassy opta por um balanço mais moderado e preenche os espaços com um discurso saxofonístico que tem algo da seriedade de um pregador entregue de corpo e alma a um sermão que captura a imaginação da congregação, facto que o inscreve sem margem para dúvidas na escola coltraniana de investimento total no momento, tanto no plano físico como no espiritual. Live in Helsinki é um entusiasmante retrato de um trio em perfeita comunhão de ideias num espaço que premeia a entrega sem reservas.