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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 14/06/2023

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #120: Especial Sei Miguel

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 14/06/2023

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.


[O Carro de Fogo de Sei Miguel] UM UM UM E N​Ã​O HÁ FORMA DE MORRER (Shhpuma)

[Sei Miguel] The Original Drum (Clean Feed)

[Sei Miguel Unit Core] Road Music (Clean Feed)

Se é possível fazer uma ligação entre os diferentes períodos criativos de Piet Mondrian – que levaram o pintor holandês a progressivamente abandonar um estilo mais figurativo em detrimento da crescente abstracção que o consagrou como um dos maiores artistas do século XX -, não será igualmente impossível ver na abstracta música de Sei Miguel uma fuga para dentro do âmago do impulso eléctrico do rock que primeiro o inspirou, uma ligação à faísca primordial que incendiou os blues amplificando-os até ao infinito.

Por acidente cósmico ou calculado desígnio, os primeiros meses deste ano viram a edição de três diferentes álbuns de Sei Miguel. Um Um Um E Não Há Forma De Morrer é o novo registo d’O Carro de Fogo de Sei Miguel – com o líder no trompete de bolso, composições e arranjos, Fala Mariam no trombone alto, Nuno Torres no saxofone alto, Bruno Silva na guitarra eléctrica, Pedro Lourenço no baixo eléctrico, André Gonçalves nos “órgãos” (aspas dos créditos originais), Luís Desirat nas percussões de pele e metal e Raphael Soares nas de madeira. José Lencastre, ressalvam as notas de capa, toca saxofone alto nas gravações efectuadas no Sabotage. Este álbum inclui gravações feitas ao vivo em três momentos distintos (entre 2017 e 2022 no Sabotage, O’culto da Ajuda e também na ZdB), sai na Shhpuma e sucede ao primeiro trabalho com essa mesma designação carimbado pela Clean Feed em 2019.

Road Music é creditado ao Sei Miguel Unit Core – com Miguel, Fala Mariam e Bruno Silva e ainda Pedro Castello Lopes em percussões muito específicas em 4 das 10 faixas – e volta a agregar material gravado em concerto em diferentes localizações entre 2016 e 2021.

Finalmente, há ainda que referir The Original Drum, álbum em que apenas o nome de Sei Miguel consta na capa, mas que se faz com múltiplas participações, nas suas 4 faixas: escutam-se André Gonçalves (Lyra-8 no tema 1), Bruno Parrinha (clarinete alto no tema 3), Ernesto Rodrigues (viola na faixa 2), Fala Mariam (trombone alto em todas as faixas), Helena Espvall (violoncelo no tema 4), Monsieur Trinité (udu nbwata no tema 2), Nuno Torres (saxofone alto no tema 3), Paulo Curado (flauta no tema 3), Rafael Toral (feedback de MS-2 modificado no tema 4), Raphael Soares (claves nos temas 1 e 3), Rodrigo Amado (saxofone tenor na faixa 3), Sami Tarik (tamborim no tema 3, pandeiro no tema 4) e ainda, pois claro, o líder Sei Miguel que se faz ouvir com o seu trompete de bolso em todas as peças do alinhamento.

É com burburinho do público que Um Um Um E Não Há Forma De Morrer arranca, forma de nos dizer que esta é uma experiência colectiva e que, de alguma maneira, a vibração que emana dos espíritos presentes é captada pelos músicos que estão em palco. E depois, recortando o silêncio, ou nascendo dele, Sei Miguel atira-se ao “Âmago”, com frases curtas, rugosas e expressivas que funcionam como um chamamento colectivo, uma exposição a que começam por responder as percussões e só depois o “órgão” e restantes instrumentos. O primeiro movimento é o do encaixe, o da procura do lugar certo (ou errado…) na equação, com os diferentes sons a traduzirem a expectativa da experiência (o resultado não é nunca tão importante quanto a sua antecipação). “Pequeno Veículo” é a peça mais curta (gravada no O’culto): começa igualmente com o sopro vital de Sei Miguel, mas depressa integra o trombone de Mariam e o baixo de Lourenço, fontes sonoras a que são proporcionados amplos espaços de expressão, com o líder a “remeter-se” à pontuação em clave a dada altura. Finalmente há “Straight Face”, outra peça que se estende para lá da marca dos 20 minutos e mais um exercício de abstracta transformação do silêncio e do ar em massa sonora densa e tensa, mas nunca urgente ou estridente. Há um claro elemento de contemplação por aqui e os músicos entendem que escutar é mesmo tão importante quanto soar. É a vibração comunal que sai vitoriosa.

Road Music, creditado ao Sei Miguel Unit Core, é matéria distinta. Nas notas de capa, é o próprio Sei Miguel que clarifica o que aqui se reúne: “Para mim, o principal desafio técnico do jazz, género musical que se autonomizou gradualmente no século XX, foi o de conjugar e compatibilizar uma maior exigência musical com uma boa dose de humildade em relação aos meios orquestrais. Os trios ou quartetos com que tenho vindo a apresentar o meu trabalho na estrada, desde há muitos anos, são os exemplos mais refinados da minha escrita; ora melodias simples, ora uma versão radicalmente simplificada de peças maiores no conceito de orquestração. Estes são, de facto, os meus Standards de Jazz… A minha vida tem girado à volta deles, e continua a girar”. Em forma de introdução a “Sentinela”, o músico explica também que “é uma rara versão para trio” de uma composição “antiga” normalmente executada por “grandes ensembles” que são “coisas muito bonitas e muito caras”: “esta é a versão ‘pobre’ e tem a sua beleza”, conclui. De facto, beleza é coisa que por aqui não falta: o brilho metálico do triângulo de Castello Lopes ilumina a interação dos sopros de Miguel e Mariam, que estabelecem uma intrigante, ainda que breve, conversa que encontra eco noutras das peças deste mais dilatado alinhamento. Aqui, sei Miguel apresenta uma visão de maior contenção de meios, mas tão expansiva em termos de ideias quanto as dos outros registos por aqui mencionados. Melodias sinuosas que nos conduzem a espaços harmónicos inusitados, tudo gizado a traço grosso, mas de económica e irrepreensível beleza. 

Finalmente, há que considerar neste conjunto de lançamentos o álbum The Original Drum. Sobre o material aqui reunido, Miguel explica: “Não acredito na vocação composicional do jazz. E não me considero um verdadeiro compositor. No jazz, ou pelo menos no meu jazz, compor implica e significa – e isto parece-me suficientemente importante – o mero estudo da forma; uma forma abstracta, colectiva, que está lá, podemos dizer, apesar da interpretação dos músicos; são eles que estão de facto no coração do jazz, são eles o coração do jazz. As minhas peças, mais ou menos ambiciosas, estão no limiar, no limite: entre o que julgo saber e o que julgo ignorar. Visões. Homenagens. E, claro, também um meio de realçar o talento dos músicos com quem tenho o prazer de trabalhar”. Há por aqui uma outra versão de “Sentinela”, menos “pobre” e certamente mais “cara” já que conta com prestações de Bruno Parrinha, Fala Mariam, Nuno Torres, Paulo Curado, Rodrigo Amado, Raphael Soares, Sami Tarik e do próprio Sei Miguel. O “rendilhado” é por isso bem mais intrincado e mais dilatado também, deixando clara a intenção exposta pelo líder de usar as composições como abstracto estudo de formas, colocando os músicos como peças-chave desse estudo. Eles escutam-se e tomam decisões no momento que não são meras reações ao clamor colectivo, antes adições a uma equação em contante fluxo de mudança. E isso é algo que exige tanto de quem toca quanto de quem escuta. O jogo é constante, mas não há ganhos ou perdas. Apenas acção permanente.

Três álbuns, três distintas declinações de uma arte em permanente mudança porque exposta sobre o tempo. O futuro é miragem abstracta na distância e Sei Miguel alcança-o de cada vez que respira. E isso é obra.

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