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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 10/04/2023

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #117: Especial We Jazz

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 10/04/2023

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.


[Antti Lötjönen Quintet East] Circus/Citadel (We Jazz Records)

Dos grandes quintetos que a história consagrou, o Art Ensemble of Chicago destaca-se entre os que dispensaram o piano da sua arquitectura formal. O contrabaixista finlandês Antti Lötjönen pensou o seu próprio quinteto com idêntica estrutura e embora o caminho musical seguido seja naturalmente distinto, pode-se neste colectivo identificar uma análoga procura pela liberdade mais vibrante.

Pense-se em Circus/Citadel como uma espécie de suite ou talvez até como uma peça dramatúrgica com uma encenação aural que traz os músicos em diferentes combinações – duos, trios… – até ao centro da “trama”. Explica o líder que o título deste novo álbum – que é o segundo que o quinteto lança na We Jazz, sucedendo à homónima estreia de 2020 – se inspira num poema do poeta Paul Celan e, de facto, percebe-se que essa poética demanda pelo sublime atravessa a música conjurada por Antti Lötjönen com a ajuda de Mikko Innanen (saxofones alto e barítono), Jussi Kannaste (saxofone tenor), Verneri Pohjola (trompete) e Joonas Riippa (bateria), todos eles destacados nomes da agitada cena de Helsínquia.

As composições dividem-se em dois conjuntos: as três partes de “Circus/Citadel” e as quatro peças seguintes, mas, como sublinha o seu autor, Antti Lötjönen, o facto da música ter sido escrita durante um período de tempo relativamente concentrado atribui ao conjunto uma homogeneidade sólida, reforçando a ideia de que todo o material do álbum pertence a um mesmo arco e responde a uma única intenção interpretativa com os músicos a mostrarem profunda sintonia com a dimensão estruturada das peças e identicamente empática coesão quando as partituras indicam espaços para criativa invenção.

Sobre o contrabaixo de Lötjönen parece recair o mesmo papel que no já mencionado histórico grupo de Chicago tantas vezes era atribuído às empolgantes polirritmias: é do seu elegante, mas firme pulsar que parecem emanar as densas ideias que depois orientam os restantes músicos. Um bom exemplo disso mesmo é a segunda parte de “Circus/Citadel” em que a elaborada figura desenhada no contrabaixo parece funcionar como cola e mola em simultâneo: por um lado fornece um centro para a exposição do tema, por outro funciona como autêntico trampolim para os solistas tentarem tocar as estrelas. A energia colectiva é sempre evidente, mas os argumentos individuais também são expostos com justificado panache. É sobretudo notória a empatia exposta no espectro mais grave das composições, com o contrabaixo, a subtil propulsão da bateria de Joonas Riippa e o barítono de Mikko Innanen a serem os ribombantes trovões que se contrapõem aos brilhantes relâmpagos desferidos pelos sopros de Verneri Pohjola e Jussi Kannaste.

Mais cubistas nuns momentos, mais impressionistas noutros, a verdade é que os músicos deste Quintet East pintam sempre vívidas paisagens em que os tais dramas se parecem desenrolar com verdadeira tensão, com momentos de libertação, como a recta-final da última parte da suite que dá título ao álbum, e outros de reflexão, como acontece na peça que fecha o alinhamento, a belíssima “It Goes On”. E tudo acontece servido por uma imaginação que se afigura moderna, deste tempo, desta hora. A música de Circus/Citadel tem, obviamente, lugar num muito dilatado fluxo histórico, mas nunca finge pertencer a outro lugar e a outro momento que não seja o deste agitado presente. E se a tal vontade de atingir uma dimensão poeticamente sublime parece atravessar o álbum e inspirar títulos como “Circus/Citadel” ou “(for) Better People”, outros como “Ode for the Undone” ou “It Goes On” podem apontar para uma mais terrena realidade, um espelho dos tempos agitados que vivemos e que parecem guiar as passagens mais tumultuosas deste registo que premeia audições sucessivas, revelando de cada vez novos pormenores que nos capturam a atenção sem apelo nem agravo.


[Valtteri Laurell Nonet] Tigers Are Better Looking (We Jazz Records)

Os tigres são, realmente, muito mais bem parecidos do que boa parte dos outros seres (são gatos em ponto grande, afinal de contas). O título do álbum que marca a estreia do noneto comandado pelo guitarrista Valtteri Laurell referencia os escritos de Jean Rhys, autora dominicana que fez carreira na Grã-Bretanha pós-colonial e que publicou a antologia de contos Tigers Are Better Looking em 1962. Boa parte dos títulos deste álbum do Valtteri Laurell Nonet derivam de escritos de Rhys, incluindo “Wide Sargasso Sea”, uma prequela para Jane Eyre de Charlotte Brontë, e “Let Them Call It Jazz”, um dos contos incluídos na já mencionada antologia de 1962. Aí, relata-se a história de uma mulher afro-caribenha a braços com uma complicada existência numa repressiva Inglaterra onde é obrigada a cumprir uma curta pena de prisão, ocasião em que aprende uma canção que mais tarde é apropriada por um homem que a ouve cantar numa festa. A mulher resigna-se, dizendo para si mesmo “let them call it jazz”, já que ela sabe bem de onde vem aquele lamento profundo. 

Laurell também não deve importar-se que chamem ao que faz de jazz, impressão que sai reforçada com a sua listagem de referências para este trabalho que passam por momentos-chave das discografias de Gerry Muligan ou Miles Davis. Num curioso paradoxo, no entanto, não é o fulcral Birth of The Cool, álbum que Davis gravou à frente de um notável noneto, que o guitarrista menciona, antes Water Babies, uma compilação lançada em 1976 que reuniu material que Miles registou em quinteto em 1967 e 1968. Talvez a vincada cadência mais swingante dessa compilação justifique que Laurell a destaque como possível referência para este seu trabalho que se faz de composições com estruturas muito bem definidas, mas que também são animadas por um pulso bem firme e com vívida propulsão.

Em Tigers Are Better Looking as composições do guitarrista e líder Valtteri Laurell Pöyhönen são executadas por um ensemble de estrelas da cena finlandesa em que naturalmente se destaca o veteraníssimo clarinetista Antti Sarpila, que nas suas quatro décadas de carreira gravou dezenas de trabalhos que lhe sustentam uma inatacável reputação na mais vasta cena europeia – é ele o farol musical deste trabalho. Jukka Eskola (trompete e fliscorne), Petri Puolitaival (saxofone alto e flauta), Jussi Kannaste (saxofone tenor), Antti Rissanen (trombone), Ville Vannemaa (saxofone barítono), Ville Herrala (contrabaixo) e Jaska Lukkarinen (bateria) completam o nonaedro desenhado a partir dos mais relevantes colectivos da cena contemporânea de Helsínquia constituindo uma espécie de dream team pleno de swing.

A visão de Valtteri Laurell resulta evidente em “Wide Sargasso Sea”: as suas composições soam a bem esquissadas narrativas em que o clarinete assume o estatuto de instrumento “narrador”, enquanto todos os outros se movem em intrigantes sub-enredos que exigem concentração total por parte do ouvinte. Nessa peça, a sua guitarra também assoma a um merecido primeiro plano, evidenciando uma fluência com subtis toques de swing e uma aura pré-bop que talvez justifique a designação de “jazz de câmara” que a própria editora sugere na sua comunicação deste trabalho. Na verdade, é esse classicismo expresso na elegância dos arranjos sem espaços para disrupção, quase ecoando a sofisticação orquestral que caracterizava as melhores big bands, não fosse a sua escala ser um pouco menos expansiva, que pode sustentar essa reclamação do designativo tão usado na música clássica.

Tigers Are Better Looking soa, na verdade, a rigoroso e reverente estudo devotado às formas clássicas, um exercício de transcendência temporal e talvez até geográfica que na essência poderá não ser assim tão distante dos ficcionais universos que os escritores erguem à custa da organização das palavras em envolventes histórias.

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