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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 23/08/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #105: Especial Carimbo Porta-Jazz 2022 – parte 2

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 23/08/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[AP] “Nu”

AP, ie António Pedro Neves, em guitarra, efeitos e composição + José Diogo Martins no piano, Gonçalo Sarmento no contrabaixo e Gonçalo Ribeiro na bateria. Todos a Nu neste sucessor de Lento, trabalho que o guitarrista lançou já em 2017. Não que AP tenha estado “afastado”: é elemento-chave do agitado ecossistema jazz portuense, membro muito activo da Associação Porta-Jazz, integrando aí diferentes projectos (desde logo o dilatado Coreto ou o colectivo liderado por André B. Silva) e colaborador da Orquestra de Jazz de Matosinhos (OJM), entre outras coisas.

Nu foi gravado a 26 e 27 deste ano nos estúdios do Centro de Alto Rendimento Artístico da OJM por Nuno Couto e Sérgio Valmont, tendo este último assegurado ainda a mistura e masterização. O som é límpido, transparente e sem “truques”, característica que encaixa na simplicidade literalmente exposta no título: a nudez aí referenciada é a dos recursos, a dos músicos que assumem uma dianteira que não admite resguardos conceptuais ou posteriores manipulações de estúdio. O que debitaram na sala de captação é o que normalmente entregam em palco, rendidos ao que as composições ditam e ao que o momento sugere.

Há uma fluída e naturalmente harmónica “tensão” entre o piano de José Diogo Martins (que de maneira tão dramaticamente diferente brilhou em ENTER THE sQUIGG de Mané Fernandes) e a guitarra de AP, duas “vozes” sonantes que oscilam, no caso de Martins, entre a linearidade melódica, e, no de AP, a exploração de nuances texturais extraídas através de um inteligente e elegante uso da pedaleira de efeitos. O “dueto” entre o poético pianismo de Martins e a abstracta coloração de AP em “Útero” ou no arranque de “Tema Inocente” são belíssimos exemplos dessa particular e muito feliz dinâmica. E a esse constante jogo entre o piano e a guitarra e os seus efeitos corresponde a discreta, mas ultra-eficaz secção rítmica dos dois Gonçalos, o Sarmento e o Ribeiro. O primeiro mostra toda a sua verve, por exemplo, na elíptica “Sim Fonia”, arredondando o discurso da guitarra sem esquecer que ao seu lado tem ainda as mini-explosões de cromatismo metálico providenciadas pelos pratos. E o segundo afirma autoridade no domínio do tempo logo em “Escuro”, tema que introduz de forma enérgica antes de se remeter ao importante segundo plano na arquitectura do tema, usando timbalões como pontilhados que guiam a restante acção. Tudo certo. Tudo a nu. Sem pudores, como convém. Apenas música pela música e tanto que isso pode ser.



[Bode Wilson] Aether

Oxigénio e carbono, na natureza, mas também algo de mais… indizível, vá, na metafísica ou na mitologia. Aether – ou Éter – é uma matéria difusa que os Bode Wilson referem ser “o quinto elemento tantas vezes usado ao longo da história para explicar o inexplicável”. E, se calhar, é desse mesmo éter que se fazem estes textos: uma tentativa de explicar o inexplicável. Neste terceiro – e deveras espantoso – registo, João Pedro Brandão (saxes alto e soprano, flauta e pedaleira de órgão), Demian Cabaud (contrabaixo e charango) e Marcos Cavaleiro (bateria e percussões) aprofundam as experiências que haviam conduzido a 26 e Lascas (trabalhos de 2014 e 2017, respectivamente), atirando fora os mapas e investindo pelos terrenos da mais pura improvisação. “Este corpo de três elementos existe e move-se numa simbiose tímbrica e estética que os transforma num elemento só”, garantem, “como um Bode irrequieto e faminto que através de terrenos montanhosos procura alcançar terreno fértil em alimento”.

E essa é, de facto, a força da música que os Bode Wilson aqui apresentam: há uma energia compacta que parece emanar de uma só cabeça, de um único corpo, como se os três músicos formassem uma unidade indivisível. De certa forma, há aqui uma linguagem comum – aquela que se desenvolve por tantos palcos e estúdios terem partilhado ao longo dos anos, em projectos próprios ou em que de alguma forma se vão cruzando, como acontece na Orquestra de Jazz de Matosinhos, mas também a que nasce da amizade, do convívio que propicia ligações fundas que hão-de, certamente, sentir-se quando chega o momento de criarem juntos.

Este disco, dizem-nos, foi “gravado ao ar livre numa capela em ruínas e integrado de uma forma transversal na natureza envolvente”. A ficha-técnica revela ter sido na Casa de Bouçós que nasceu então este “exercício de meditação, veneração e comunhão com o universo e a humanidade”. Os títulos já explicam muito: “Desencanto”, “O Eremita”, “Procissão”, “Lacrau”, “Ladainha”… Todos nos remetem para um outro mundo, longe do bulício citadino, aquele mundo em que o céu se enche de estrelas e a terra se move sob os nossos pés, onde os cheiros da chuva na terra, das plantas ao vento ou o ruído dos pássaros e dos rios nos voltam a ligar aos sentidos que vamos no dia-a-dia destreinando. É, portanto, de essências que se faz esta música, de um regresso à origem, quando ainda não existiam regras, só sons. 

João Pedro, Demian e Marcos são músicos enormes, dotados de plenos recursos técnicos e destemidos, como convém. Expressivos e perfeitamente integrados uns com os outros, criam aqui uma música vívida, que serpenteia em torno de fórmulas e linguagens estabelecidas, não enjeitando, obviamente, os ecos do lado mais livre da improvisação ou das cerebrais peças contemporâneas dos mais desafiantes compositores. Mas o que se materializa aqui neste Aether é algo novo, sem passado ou futuro, ligado a um qualquer pulsar primordial que todos ainda conseguimos sentir, sobretudo lá nos montes, onde vagueiam lacraus e as estrelas dançam o seu lento bailado cósmico.

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