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Fotografia: José Fernandes e Hugo Macedo
Publicado a: 13/07/2019

Uma Filha da Mãe e uma lenda viva no Passeio Marítimo de Algés.

NOS Alive’19 – Dia 2: somos todos escravos do ritmo de Grace Jones

Fotografia: José Fernandes e Hugo Macedo
Publicado a: 13/07/2019

No segundo dia de NOS Alive 2019, exercemos a prerrogativa de chegar quando já o sol se retira; talvez isto signifique uma espécie de armistício com o nosso arqui-inimigo de anteontem. Em noite de Primal Scream, Vampire Weekend e Gossip a encabeçar as festividades ditas principais, o recinto mostra-se perscrutável e menos caótico do que no dia anterior — atenção: evitar a todo o custo as zonas da restauração — e a mobilidade dentro das plateias improvisadas é surpreendentemente alta.

Fenómeno curioso: a tendência do público a prestar-se a uma tolerância sem precedentes. O ímpeto de celebração e gritaria que faz Portugal ser lembrado pelos artistas parece nunca desvanecer, só potenciar-se, alimentado por uma fome crónica de espectáculo — o one woman show de Tash Sultana é uma boa prova de talento, mas a histeria a todo o segundo é quase tão sonante como aquela que recebe Grace Jones, também no Palco Sagres… já lá vamos.

Pela primeira vez a pisar um palco a solo, a rapper afro-asiática Chong Kwong faz-se empresa a quatro: DJ Maskarilha, o hype man Pablo e a parceira no crime Nina Rae são os principais conspiradores da sua preparação em nome próprio.

Entretanto, desde a edição do seu single homónimo e a mais recente “Não Te Convidei”, a artista já não é estranha a uma considerável fracção do público, que se predispõe a encorajar a sua entrega expedita de barras e punchlines. Uma adição bem-vinda ao por vezes monocromático (e de um género só) panorama do rap nacional, Kwong está pronta para atacar e agradar em igual proporção — ainda que o entusiasmo não disfarce um certo déjà-vu quando ouvimos com atenção as letras, ficando a sensação que se está a mastigar o que já foi mastigado anteriormente.

Para já, Chong está em arranque de operações e não deixa de ser uma promessa — e sim, sabemos que a MC de 31 anos não é uma novata nestas andanças, mas isso não quer dizer que isto não seja um início de uma nova vida. A prova dos nove virá no longa-duração Filha da Mãe, cuja feitura, confessa, mimetiza a vida: repleta de “altos e baixos”. Já no pico da noite, que terá lugar no Palco Sagres, absolutamente zero baixos.

Durante décadas, Grace Jones foi um alienígena onde quer que pisasse terreno. Vulto andrógino, musa de Jean-Paul Goude que desafiou os talhes em que agradavelmente se arrumam belíssimas modelos. A sua melanina era cor e textura, o seu pescoço era cortado e estendido, os membros reconstituídos em ângulos humanamente inatingíveis para consolidar em Jones o seu estatuto mais natural, de transcendência, e ainda assim com uma ressonância interior patente, granulosa, lasciva — da Jamaica aos EUA, feita ícone da iconoclastia plástica.

Quando se atirou aos fonogramas, movendo-se primeiro num disco decadente e mais literalmente em discotecas gay, foi ganhando segurança no seu toque transgressivo. Em 1978, encontrou Sly and Robbie, a secção rítmica bicéfala que propeliu o seu som numa nova escavação — já sem retalhos do disco, o novo tecido de reggae luxuosamente sujo e new waverefrescantemente anguloso vestiu-a sem precedentes. Mesclou-se Grace Jones, ícone da ruptura visual, e Grace Jones, voz terminantemente grave e monolítica em groovesgargantuescos.

Muito se tem escrito sobre desinformação promocional: a de que a sua aparição no NOS Alive marcaria a sua estreia em palcos lusos. Não é, de facto, a verdade: há registos sucessivos de concertos mal-recebidos em clubes hoje engolidos pelo tempo e notas sobre uma mulher lúbrica, teatral, em regime de auto-paródia. Em retrospectiva, não são opiniões dissidentes da caricatura que o quórum popular quis fazer de Jones, a negra tenebrosa da masculinidade exacerbada, sem talento para lá das poses. E, de certa forma, esta é uma estreia em Portugal: é a primeira vez que cá actua depois dessa desconfiança ter dado vez definitiva ao mito Jones.

O seguimento da tour de force “Williams’ Blood” — uma homenagem ao legado da sua mãe que hoje corporiza — para uma versão emotiva de “Amazing Grace” leva a tão esquartejada Jones ao limite vocal, e parece que vemos o seu sangue a borbulhar. Que sublime chapada de luva branca às vozes que quiseram sufocar a jamaicana numa das suas tantas dimensões — e, justamente, uma das quais é o seu amor pela sua pátria: expressa em todos os recortes do trio discográfico de Warm Leatherette, Nightclubbing e Living My Life, em particular durante “My Jamaican Guy” em que Jones usa um véu pintado das cores da bandeira.

Essa é apenas uma das múltiplas indumentárias que vai ostentando durante cerca de uma hora de concerto, ou não fosse Jones a figura que é — um animal de palco e das câmaras, deliciando os fotógrafos e alterando o semblante como mais ninguém. A cadência do concerto contorna essas mudanças de figurino, em que Jones se ausenta brevemente e vai falando, rindo-se, fazendo pequenos encores de si mesma. E o mito Grace Jones — se nos esquecemos, ela lembra-nos —, para além da plasticidade mais literal e o poderio vocal, não deixa de encapsular um certo terror, atirando-nos um olhar e fazendo-nos tremer. São pequenas lembranças para que ninguém caia na tentação de ver numa Jones mais velha um espírito sumo de agradar. O público continua aqui por ela, que estende os braços para nos absorver e para colidir com a bateria, e nos incita a gritar o “leatherette” que falta ao seu “warm”.

Animal de palco que nos doma, Jones mantém-nos presos à expectativa da próxima música e ornamento — consegue-o primeiro em “This Is”, mais um momento que extrai do brilhante Hurricane de 2008 (avisa-nos de que o próximo disco, quase tão lendário quanto ela, vem aí). O seu primeiro desaparecimento fá-la ressurgir em lustroso espartilho, com uma máscara vermelha que lhe agiganta os olhos e de onde saem tentáculos. A abertura apoteótica fez-se com “Nightclubbing”, capitalizando o suspense rítmico desta versão de Iggy Pop, com o pano preto que caiu para revelar uma Grace Jones maior que a vida, de uma espécie de capa engrandecida pelo vento. Gritos; drama — quem disse que Jones mudou assim tanto desde as suas primeiras performances, mesmo? Não há assimetrias entre a intérprete do majestoso A One Man Show, documentado para a posteridade por Goude, e a mulher que em 2019 nos devora sem piedade (e, no final, nos mostra os seios).

Visionem, durante uma hora, o delírio e os braços famintos do público, os mesmos em que Jones virá tocar, carregada por um segurança que beijará na testa, as gargantas roucas que lhe devolvem “Pull Up to the Bumper” durante minutos a fio. A dominar um varão, um bailarino pintado com motivos tribais, tal como Jones — por esta altura munida de um chicote e extensões maratonistas de cabelo — que dele se abeira com olhar animalesco e a pegada de caçador. O peso dos graves e da percussão é tão brutalmente conseguido que nos teletransportam para os estúdios de Compass Point, em Nassau, e os grooves deste êxito ou de “Private Life” encarnam em algo ridiculamente palpável — quem não ginga que sinta a sua pulsação. Depois da explosão de confetti, Jones desce e torna-se real.

Agora, imaginem tudo isto ser relegado para o espaço secundário. Não adianta argumentar que o intimismo dá-se com mais facilidade no Palco Sagres: ninguém precisa de intimismo num espectáculo de Grace Jones. O problema evidente recolhe-se a partir da observação do palco principal, ainda mais no segundo dia: o rock alternativo em disposição, com maior enchente para Vampire Weekend, mostra rendimentos decrescentes, com uns Primal Scream recebidos a meio gás e Gossip — que começam antes do desfecho do concerto de Jones — no mais anti-climático final concebível, com grandes intervalos e supressões constantes entre membros da plateia. Podemos formular a questão de vários modos: qual o sentido de transferir as honras de encerramento a uma banda cujo hiato terminado agora durou três anos? Grace Jones está, literalmente, ali ao lado.

Em minutos, todos se arrepiarão com a frequência do começo do fim, na imortal “Slave to the Rhythm”; Jones dançará com um hula hoop durante o que parecerão ter sido dez minutos. E todos estes sortudos cantarão a uma só voz: “And now, ladies and gentlemen… here’s Grace!” — mas ninguém o dirá mais alto que Grace Jones.


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