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Fotografia: João Octávio
Publicado a: 26/05/2025

No alcance do estímulo sonoro das artes performativas.

No ritmo do DDD – Festival Dias da Dança’25: o que é que o som tem para dançar?

Fotografia: João Octávio
Publicado a: 26/05/2025

A intima relação entre som e dança é desafiada no olhar que escuta essa interpelação. Sem que nisso  haja uma procura exaustiva ou absoluta no querer entender melhor, é possível partir-se à aventura de desfrutar de um alargado e inclusivo programa na mais recente edição do festival que marca  invariavelmente a temporada de dança contemporânea e as várias zonas de fronteira. Entre vários espaços do Porto, Matosinhos e Vila Nova de Gaia, a 9.ª edição do DDD – Festival Dias da Dança ao longo de 12 dias, trouxe 27 espectáculos. Parte-se para uma análise de 5 deles. Os estimulantes campos das artes performativas fizeram de Abril e Maio um lugar para pensar melhor este presente e futuro. Talvez seja esse o maior dos estímulos neste campo das artes — o corpo no lugar do pensamento.

[Fugaces]

Entre outras opções, a escolha de ponto de partida com “Fugaces” no Palácio do Bolhão, na peça que junta a coreógrafa Aina Alegre ao Centre Choréografique National de Grenoble & STUDIO FICTIF, enche-se de um acertado propósito. Aí escutava-se um pujante trombone de varas feito chamamento, anunciando algo mais a chegar, rompendo por entre o corpo de dança em sincope provocante. Afinal, este rumo de dança faz livre uso do desafio constante que se reconhece da herança do flamenco de Carmen Amaya. É por essa trajectória de vida artística que progride “Fugaces”. Desafiante e convidativo, mas também com intromissão, é que em diferentes momentos o elenco performativo abandona o linóleo e avança pelas franjas da plateia. Mete-se com aqueles que vieram apenas para ver, convida a tomarem parte activa, sendo esse convite um não querer em simultâneo. Do ritmo da batida de pés no chão passa-se em sincopados paços para um declarado “Boléro” de Maurice Ravel. Esse tema universal, propositadamente composto para ser dançado em ballet clássico, em melodia uniforme e repetitiva, vivendo das nuances fronteiriças. Houve desafio no dançar e no evocar uma trajectória clássica transposta ao presente, nada clássico. Singe-se a ideia do dançar, o som de ontem implicado na reposta vivida do presente — permeável no sentir efectivo.

[violetas]

A vinda ao Teatro do Campo Alegre, da refrescante coreógrafa angola Vânia Doutel Vaz, traz uma estreia — “violetas”. Peça que dá pano para mangas e das mais compridas e estimulantes de costurar. Num daqueles muitos minutos feitos eternidade, tão longos que nos deixam tempo de reflexão em estado inquieto, a pensar em estar-se ali. Houve quem abdicasse, muitos mais ficaram para ver no que dava. Não havia som, era um quase silêncio e as cinco performers rondavam a moldura de público que definia os limites do espaço para dançar. Contudo era o vazio. Num quase subverter o lugar de escuta num lugar de fala. Como anunciavam, houve “um corpo que dança único e suficiente”. À vez e nesse propósito de confrontar os limites, as bordaduras do estar a ver sem ser visto. Muito feito disso, de haver um palco em que somos, enquanto público, o espectáculo a ter lugar. Isto é, em que se está à espera que a peça comece e disso mesmo sendo feita. Lugar de conforto posto em causa desde o princípio. Observar cede ao pensar, e enquanto cada um desses 5 corpos dançou à vez no linóleo, desenhado ao jeito de uma reformulada grande sirumba, os outros rondavam-nos pelas costas. Implicava olhar de soslaio. E essa dança era libertadora, purgava algo de dentro de cada corpo. Houve contudo uma permanente reflexão latente, desconfortável até sobre a ideia de margem, de limites do observar e ser observado. Um jogo dum “quem é quem” em perspectiva — uma espera que nunca alcança, na esteira de Beckett. Embora com uma luz de penumbra em tantos momentos, para uma dança sem lugar, ou lugar de uma não dança. Sem música, que em muitos momentos explorava o (des)conforto do silêncio. Porque naquele contexto assim resultou intenso o proposto — “o que muda em nós quando mudamos de lugar” — e que ficou no ar em retórica pergunta nesta plateia-palco. Quem foi quem? De cada vez que um acto performativo faz pensar, há o lugar da transformação, e isso é estimulante e fundamental no existir.

[OU]

Será que apenas se vêem dançar corpos sobre o linóleo? Apetece deixar ficar a pairar ao sair-se de “OU” de André Braga & Cláudia Figueiredo, da Circolando – Central Elétrica. Para esta peça juntam Panaibra Canda, coreógrafo e dançarino moçambicano que prossegue na reflexão pós-colonial do país natal. Acerca-se em “OU” à mística realidade das curandeiras de Inhambane (Moçambique), que vão ao mar sem saber muito bem como e o que lá vão fazer, mas trazem de lá o que precisam. É uma coreografia envolta em seres ou o que deles resta que o mar traz também por sua iniciativa. Troncos boiantes, conchas e búzios, despojos da terra no mar e do mar em terra — área fronteira feita de trocas. Socorrem-se do que Paul Carter chamou “política de chão”, como referem em sinopse: “Um novo pisar que não terraplane o terreno, mas que deixe o chão galgar o corpo, determinar gestos, numa nova coreografia social”. Vamos ao longo da evolutiva dança e construções dos seres boiantes vendo que há um meio ritual sem saber. Valem as palavras mágicas, projectadas em tela, que abrem campo ao misticismo, mas deixam por explicar — não saberão explicar. Como se lê: “No primeiro dia que fui ao mar, entrei na água das 15 até às 4 horas da madrugada do dia seguinte. Agora, explicar o que aconteceu lá no mar não é fácil, porque não era eu, era um espírito.” Nem elas as fazedoras, nem os antropólogos que transpõem essas práticas para o outro nosso mundo.

Assim como refere Marshall Sahlins em “The New Science of the Enchanted Universe”, onde revela, baseando-se em diversas práticas de culturas ancestrais, “como até as esferas aparentemente mundanas e demasiado humanas da ‘economia’ e da ‘política’ emergem à medida que as pessoas negoceiam com os poderes dos deuses e, em última análise, os usurpam.” A dança de Braga e Canda sobre o chão que pisam convoca todos os seres ancestrais e os espíritos a juntarem-se, às tantas são muitos mais os que ajudam a edificar os castelos de troncos e apontam os caminhos rumo ao futuro. “É um mistério, e não se trata de insistência… São segredos antigos que não podem ser revelados nunca. Mesmo que pergunte, não podem contar. Se falarem, eu adiro ao mar de vez, não volto mais” — conta (na transcrição, em tela) a curandeira em funções. Houve ainda o antropólogo Gonçalo Mota, ali em acção como videasta de craveira, numa adição de sons e imagens, plenos de volúpia e fundamentais no chamamento preciso. João Sarnadas, prolífico músico de Aveiro com projectos mais abstractos e fundador da Favela Discos, foi quem assegurou a sonoplastia.

[C.C. Crematística e Contraforça]

Tempos de cre·ma·tís·ti·ca — assim mesmo em partição silábica, e talvez pelo único reduto tornado possível na sua repartição, isso que é segundo os preceitos etimológicos, da arte de produzir e acumular riqueza. No DDD, no palco do Rivoli, deu-se a estreia de C.C. Crematística e Contraforça, a nova criação de Vera Mantero & Cúmplices — Henrique Furtado Vieira, Joana Manaças, Paulo Quedas, Teresa Silva como elenco. Na realidade, cúmplices somos muitos, os que assistem à estreia como os que nem dela fazem ideia. Mais, haverá que se apressar a explicar que este novo trabalho se debruça na existência das comunidades indígenas da Amazónia, para que aumentem e de que maneira as cumplicidades. Mantero e demais envolvidos sobrevoam neste processo o vasto território da floresta entre as florestas. E pode ser visto o grande tapete que cobre parte do palco como esse mapa. Quem faz a coreografia acontecer tem ossos da pelves humanas nas mãos. Poderiam ser corações, serão os ossos dos ancestrais? Assim como na narrativa ficcional, em título, de Olga Tokarczuk em “Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos”. Estas pelves nas mãos de cada um dos cinco que andam pelo território traz carga e não leveza na dimensão. Evoca o passado e resiliência. É ali que pertencem por que os seus antepassados estão ali, simbolizam esse ossos. Do garimpo à desflorestação, seja pela madeira seja pelo inventado uso do solo, a Amazónia continua a saque numa crematística servidão. E até mesmo quando as vozes nativas têm microfone, tempo e ouvidos que as escutem, o que se ouve é um crepitar bocal, parece que irreversivelmente não são entendidas — dispostas a um papel parodiante. “Ordem e progresso” — é isso que se inscreve na bandeira, não é?

Mas afinal o que resta a estas comunidades ancestrais que se vêm englobadas e atropeladas pela gestão do território, a que se inventou o nome de país? É por isso que há um sentido de urgência e de denúncia aqui. A música é um fio narrador que se sente mal se entra no espaço cénico, sob um manto de cinzas. Para João Bento, que assina a direcção musical e o desenho de som em CC, em discurso directo para o ReB, refere: “Existiu um desejo forte de voltar ao estúdio de som e desta forma estive primeiramente vários meses a compor no meu próprio estúdio com uma série de máquinas e instrumentos”. Há uma intensidade crescente no espaço sonoro. As cadências aceleram e fazem agitar os corpos no espaço, que procuram um entendimento que se quer simultaneamente reactivo — observação e resposta. É por isso que a descrição desde o processo de aquisição e prática na peça é como descreve Bento: “Num desejo forte de perceber um certo tipo de toque que parte de certa forma de uma cultura rave ou nocturna, fui também à procura disso no som que criei, beats bastante poderosos cruzados com um espécie de músicas mais leves.” É com essa dualidade que se aglutinam para uma efectiva capacidade reactiva. Para o final, emaranhados os dançarinos, representam um novelo humano — irreversivelmente. Dispostos a parecerem mais e resilientes. Unindo as comunidades indígenas trazendo uma ancestral contraforça. A pairar sobre essa força no terreno — efectiva, mas num “ensaio de mudança” que se ouve desde um alto lugar. Onde nos encontramos como espectadores, sobre a peça e sobre a realidade evocada. A música ouve-se numa dimensão aérea, feita partindo de gravações de viagem de avião.  E como denota Bento, numa “procura grande de não situar o ouvido em nenhum lugar concreto, ou seja o tapete ou a ‘carpete voadora’ é puxada muitas vezes de forma a deixar o espectador em lugares que não está à espera”. Tudo se apaga, para voltarem num sentido irónico, como a verem que estão a ser vistos como um espectáculo do palhaço. É para bater palmas? A quê e a quêm? Ao que  C.C. (Crematística e Contraforça) traz da realidade — seguramente não. À força e ao pensamento trazido desta criação, seguramente sim, e todos mais escutados serão escassos.

[Æffective Choreography]

Com Æffective Choreography, André Uerba trouxe uma peça de enorme transcendência ao palco do Auditório de Serralves, que permanecerá como marca deste DDD, e não porque tenha sido uma das últimas das 48 récitas de todo o festival. Com esta performance, em que o público toma realmente parte, Uerba trata de intervir num sentido terapêutico, ou pelo menos com esse intuito. Isso acontece partindo do corpo com os intérpretes Daniel Seabra, Joyce Souza, Lucas Damiani, Manoela Rangel, Maria Roque e Miguel Fonseca — como performers não profissionais, dispostos a fazer da sua acção um acto de terapia. Contudo, de pronto se dá conta que mesmo esse “divã” imaginário, que serve de chão, inclui todas e todos os que, entre os presentes, se disponham a tal. Uerba está ao piano de cauda, tocando uma melodia envolvente para acomodar ainda em melhor lugar a chegada de cada um(a) que entra para assistir. Depois a música é servida por Kreatress, criadora do desenho de som e da sua evolução em tempo real. Portadora de uma voz inebriante, indo do canto carnático indiano à musica clássica europeia, numa miriade de recursos musicais — lentos e profundos. No Bandcamp, apresenta-se artisticamente como resultado do “metamorfismo do mundo da música clássica, transformando e explorando diferentes reinos da música — caminha com os seres de luz e os adoradores da lua”. Tanto a música como a coreografia desaceleram o tempo, para que se esbatam os limites e os corpos como que se derretem. Um processo que permite despir a pele mais exterior que protege, mas também retém a exteriorização dos processos do sentir desde dentro. A intimidade passa para um plano cada vez de maior nudez interior — e esse é o maior reduto de todos a expor. A música assume um papel de grande conforto e condução. É natural que nessa lenta forma de sedução surjam os corpos a desnudar-se. Parece inevitável e evolutivo dentro da performance. Mas é contudo no momento de falar do eu de cada um(a) — com uma nudez escancarada dos corpos, onde a exibição não existe — que se depara a real vulnerabilidade humana. Aí deixa de haver lugar de fuga e a exposição é máxima e contundente. Atinge o que tiver que atingir, doa a quem doer — e dói, porque há feridas. Pese embora cada confissão e testemunho sejam as de cada um(a) perfilado(a), escutam-se relatos que ressoam nos demais, porque os traumas estão por degolar, e estão presentes. Sofre-se e purga-se algo na melhor das experiências de cada um(a). A ideia de espectador(a) no lugar de conforto é trabalhada por inteiro nesta coreografia dos afectos preparada por Uerba e musicada por Kreatress tem um papel, nada passivo, do lugar de fala (interior). Cabendo-lhe uma expressão que é investigada, num processo de grande intimidade emocional, enquanto se presta atenção a um espectáculo de artes performativas, em que todos(as) estão no mesmo barco (palco) sem excepção — condição humana de vivências acumuladas.

A música como sonoplastia de um corpo que dança pode ouvir-se rápida, lenta, de presença fugaz ou permanente. Pode até nem estar presente e da ausência se faz a cadência para o ímpeto sobre o linóleo. A edição deste ano do festival DDD serviu estas possibilidades coreográficas — entre as assistidas — que mostraram o quão fundamental e imprescindível é o desenho do som. Para dançar uma coreografia são precisos dois — um deles o corpo sonoro.


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