O mais recente álbum de Nitin Sawhney, Identity, deu um passo ousado ao incluir a voz do antigo futebolista Gary Lineker no single principal, “Illegal”. Lineker, conhecido pela sua recente demissão de comentador da BBC por ter manifestado solidariedade para com os refugiados e imigrantes nas redes sociais, tornou-se a figura central de uma grande polémica que levou a uma crise na BBC, com outros apresentadores a demitirem-se em solidariedade.
Sawhney, um admirador das posições de Lineker, não hesitou em convidar o antigo futebolista e estrela de televisão para contribuir para o single. Curiosamente, a faixa foi posteriormente apresentada no programa de rádio da BBC, acrescentando mais uma camada ao debate em curso sobre o despedimento de Lineker.
O percurso artístico de Nitin Sawhney, marcado por uma gama diversificada de géneros, desde a eletrónica e o hip hop ao jazz e ao neo-clássico, ganha novos contornos com Identity. Após o sucesso e a aclamação da crítica do seu disco de 2021, Immigrants, Sawhney mergulha nas complexidades das vidas e lutas humanas no seu último trabalho. Como ele mesmo explica, “Identity, o álbum, é uma carta de amor para quem todos nós somos”, oferecendo um comentário convincente sobre os desafios de navegar pelos julgamentos e definições da sociedade.
Depois do marcante Beyond Skin, nomeado para o Prémio Mercury em 1999, Sawhney recebeu inúmeros prémios, incluindo seis doutoramentos honorários, o Ivor Novello Lifetime Achievement Award de 2017 e uma condecoração da coroa britânica, que inicialmente recusou e que acabou por aceitar em homenagem ao seu pai. Como compositor, é membro da BAFTA e da Academia e é Presidente do Conselho de Administração da PRS Foundation, a principal instituição de caridade do Reino Unido que financia a nova música e o desenvolvimento de talentos.
A capacidade de Nitin Sawhney para misturar perfeitamente géneros musicais e abordar questões sociais no seu trabalho sublinha a sua influência duradoura e o seu empenho em ultrapassar as fronteiras artísticas. Identity promete ser uma adição estimulante à sua ilustre discografia, convidando os ouvintes a abraçar a sua humanidade comum face às divisões sociais.
Este mais recente espectáculo de Nitin Sawhney passa por Lisboa — 4 de Fevereiro, CCB — e pelo Porto — 5 de Fevereiro, Casa da Música.
Podíamos debater que boa parte dos artistas que atravessam o mesmo território musical que o seu — e aqui falo desse vasto espaço onde a electrónica e a música clássica se podem cruzar com a pop ou com tradições de qualquer lado do globo — são apolíticos. Mas a sua arte está ligada a esta ideia de querer transformar o mundo num lugar melhor. Ela parece servir um propósito que é maior do que o do simples entretenimento…
Eu procuro fazer música que reflita os meus sentimentos e eu sou uma pessoa que pensa muito sobre o mundo. Creio que, quem quer ser artista tem de ser honesto na forma como se exprime, tem de haver uma catarse. É importante ser-se honesto e a forma como alguém sente que está o mundo também faz parte disso. Estou sempre a expressar o que sinto sem nunca impor limites a isso. Acho que a música não é um espaço para limites, mas sim um espaço para a exploração, expressão e honestidade.
Sem dúvida. A extrema-direita portuguesa quer fazer uma manifestação e está a pedir às pessoas que levem tochas — imagine-se onde é que nós já vimos isto… — para marcharem por um dos bairros mais multi-culturais de Lisboa, uma área onde se encontram muitas comunidades asiáticas e africanas. Acredita que a arte no geral — e a música em particular — pode desempenhar um papel importante na erradicação deste perigoso tipo de ideais?
Acho que a música é pura. A música real é pura. A música que eu gosto de escutar vem sempre de um sentimento que é honesto. Estas pessoas ligadas à extrema-direita, elas são completamente o oposto. O que eles fazem vem do ódio, da corrupção da alma, da estupidez, da agressão… Isto é totalmente o oposto daquilo que eu entendo que a música deve ser. A música vai sempre ser um contra-golpe para a agressão e para o ódio, porque a música é a língua das emoções genuínas, pois vem das camadas mais profundas da alma. Qualquer indivíduo que pratique agressões de qualquer tipo contra outras pessoas só pelo que elas são só pode ser um verdadeiro idiota [risos]. Eu não posso mesmo… Nem há sequer música que venha de um lugar desses, de ódio. Talvez exista quem o tente fazer, mas para mim nunca funciona. A música tem de vir de… Uma pessoa até pode sentir raiva e pode expressá-la, mas o ódio já é algo que não tem cabimento na música.
Quando é que decidiu convidar o Gary Lineker? Já o conhecia antes dos problemas que ele teve com a BBC, por ter expressado a sua visão acerca dos refugiados e imigrantes?
Eu já o conhecia antes disso, mas através do Twitter. Nós seguimo-nos mutuamente e ele vai gostando de algumas coisas que eu digo. Fiquei agradado com o facto de ele ter um trabalho muito bem pago não ter sido impedimento para ele dizer o que pensa sobre o mundo. É engraçado quando escutamos um desses políticos a dizer: “Ele devia focar-se na sua área.” São essas mesmas pessoas aquelas que não se deixam ficar pelas suas áreas, como o Boris Johnson, que era um jornalista e, de repente, começa a falar e a a agir como se soubesse tudo e mais alguma coisa. O meu ponto é: as pessoas saem muitas vezes das suas áreas, sejam elas quais forem. Existe esta ideia de que só se pode ser uma coisa apenas e não se pode fazer mais nada o resto da vida. Isso é uma idiotice e tem zero significado. Tem tudo a ver com o medo que as pessoas têm da verdade. É isso que tem estado a acontecer com o Gary Lineker. Ele disse as verdades, apontou o dedo ao ódio e às acções ridículas do nosso governo, que se tem aproximado cada vez mais da extrema-direita e tem sido cada vez mais antagónico e desrespeitador dos direitos humanos e das leis internacionais. Isso tem vindo a ser apontado não apenas pelo Gary, mas por várias outras pessoas também. Agora as pessoas querem novas eleições porque o governo actual está longe de ser popular. Este governo não representa o povo, apenas dá voz a si mesmo.
Numa crítica ao seu álbum Identity, o The Arts Desk descreve-o como “uma mistura de homem de negócios, produtor e músico.” Descrever alguém nunca é uma tarefa fácil, mas eu adicionaria mais alguns classificativos, como compositor, activista cultural e político ou até mesmo construtor de pontes entre culturas. Que forma arranja para se descrever a si mesmo, 30 anos após o seu primeiro álbum?
Descrevo-me como alguém que tem trilhado uma jornada maravilhosa. O meu amor pela música começou quando eu era muito novo e continua a ser o mesmo que eu tinha aos 4 ou 5 anos. Acho que a música revela algo novo todos os dias e isso altera a minha identidade em determinados pequenos aspectos a cada dia que passa. A música é, para mim, um lugar onde genuinamente me sinto em casa. É a compor e a tocar música, a engajar outros músicos através de colaborações, que eu me sinto mais eu. Se me pergunta como é que me descrevo ao dia de hoje, descrevo-me como um músico.
Nós vivemos tempos diferente, diria até estranhos. Como é que você, uma pessoa que alcançou o respeito de diferentes culturas, se posiciona perante os desafios que a música está a enfrentar com a presença crescente da inteligência artificial? Vi há pouco um vídeo a anunciar o primeiro canal televisivo de sempre movido a I.A., em que os pivôs gerados por I.A. podem facilmente comunicar em qualquer língua, dependendo do que o espectador optar. Acha que vai chegar o dia em que será normal um produtor fazer um tema que soe perfeito para um cantor brasileiro e, em vez de fazer uns telefonemas à procura de alguém, recorra à inteligência artificial para resolver o assunto?
Eu acho que esse dia já chegou. As pessoas já conseguem fazer isso. A minha perspectiva é: eu acredito que qualquer que seja a música que tu compões, tu deves ter a capacidade para a tocar ou fazê-la representar ao vivo de alguma forma, deves conseguir falar sobre essa música e contar a história por detrás dela. Portanto, isto não é como fazer café instantâneo e é precisamente isso que a I.A. faz. É café instantâneo. O que eu faço é mais uma infusão, que demora o seu tempo até conseguir trazer algo de refrescante.
Eu li o seu contributo para a coluna On my radar, do The Guardian, em que fala de um beatboxer, Jason Singh, de tal forma que eu me vi obrigado a ir escutar a música dele no Bandcamp. É um tipo realmente intrigante. E a minha questão é: será que um dia vamos poder escutá-lo num dos seus discos?
O Jason é um grande amigo. Eu conheço-o há mais de 30 anos. É um tipo bestial. E sim, eu adoraria trabalhar com ele nalgumas coisas. Ele está no Philtre a fazer sons de pássaros, na faixa “Journey”. Ele é um artista muito criativo que está sempre a fazer algo refrescante. Adoro a forma de pensar dele. Ele é uma pessoa muito boa e um artista brilhante.
Eu estava a ver se o fazia libertar alguma informação sobre os próximos passos que irá dar [risos]. Portanto, e de forma mais directa: o que é que o futuro lhe reserva ao nível de novos trabalhos?
Eu continuo a escrever música para cinema e televisão, entre outras coisas. Eu só faço um disco quando me sinto com vontade e necessidade de dizer algo. Sinto que, neste momento, continuo focado no Identity, pois ainda há muito por dizer em relação a esse álbum. Há muita coisa que ainda posso fazer em torno desse trabalho. Vou escrever uma peça orquestral para a The Hallé, de Manchester, que vai ser uma suite do Identity. Será para uma orquestra de 80 músicos e foca-se na ideia do super-ego, ego e id, um conceito da psicologia que está ligado à nossa identidade e sobre o qual me tenho debruçado imenso. Esse é capaz de ser o projecto mais importante que tenho para breve.
Perguntei-lhe se tinha um novo trabalho em mente porque editou o Identity não muito depois do Immigrants, o que me levou a pensar que talvez tivesse intenção de manter esse ritmo de lançamentos.
Ainda não vai ser já, mas é algo sobre o qual tenho andado a pensar, um novo álbum. Tenho de explorar mais primeiro.
O que pode dizer-me sobre os espectáculos que vai apresentar no Porto e em Lisboa? Quem vai trazer consigo para o palco? E o Identity será o foco principal ao nível do alinhamento?
Também vou tocar outros temas mais antigos, mas sim, haverá mais músicas dos meus dois últimos discos. Vou levar comigo a Eos Counsell, uma violinista fantástica de música clássica; a Shapla Salique, uma cantora brilhante que consegue cantar em inglês, mas que também teve treino clássico de hindí; a Eva, que já tem cantado comigo várias vezes; e o Aref Durvesh. Nós somos um quinteto neste momento e eu tenho estado a gostar bastante desta formação. Esta banda soa-me muito concisa e também muito versátil. Estou muito entusiasmado. Vamos andar a tocar pela Austrália, Nova Zelândia… Depois em Março temos digressão no Reino Unido. Estamos a tentar estar presentes em alguns festivais de Verão, como o Glastonbury ou o Latitude — estamos neste momento a discutir os contratos com esses festivais. Sinto que esta é uma banda muito boa e eu já toquei com estes músicos brilhantes no ano passado, tendo tudo corrido muito bem. Viajar com eles para Portugal deixa-me muito entusiasmado.
O espectáculo terá componente visual?
A performance em si já é muito visual. Acho que estou mais preocupado com… O que importa é que haja boa iluminação. Quando vou ver uma banda ao vivo nos dias de hoje, eu quero ver a banda. Eu gosto dos visuais, dos vídeos… Mas há tanta coisa que se pode fazer hoje em dia no capítulo visual, que tanto pode ser entusiasmante como fonte de distracção. Quando vou a um concerto quero ver músicos a tocar. É isso.