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Fotografia: Beatriz Passos
Publicado a: 15/04/2024

Embrenhados numa simulação musicada.

Niecy Blues & Mafalda BS na ZDB: R&B e trip-hop de mãos dadas em Lisboa

Fotografia: Beatriz Passos
Publicado a: 15/04/2024

A noite era quente, mas pedia uma subida até ao Bairro Alto. A ZDB recebeu, na passada quinta-feira, 11 de Abril, Niecy Blues e Mafalda BS. Previa-se uma noite dedicada aos cantos mais etéreos, alternativos e lentos do R&B atual. As fronteiras são indefinidas, mas, no fundo, os pontos de conexão estilística entre as duas artistas são mais importantes do que conseguir precisar com exactidão o que é esta música que ouvimos.

É difícil perceber se estes ecos são reflexos do passado ou um nevoeiro que esconde uma música que ainda está por vir. Shawn Reynaldo afirma que o “trip-hop – ou algo semelhante – está a fazer um comeback”. O género que floresceu durante os anos 90 pode estar a ser um alvo estilístico a que vários artistas vão buscar novas (ou de novo?) referências. Parecem haver aqui ligações (nas batidas mais lentas, na mistura entre a instrumentação orgânica, o sample e a eletrónica) que apontam para uma reapropriação destas valências. O autor do artigo refere, inclusive, Niecy Blues como uma das figuras desta nova vaga do género na atualidade. Também é difícil ter a certeza se este é um comeback, ou se, na verdade, o trip-hop alguma vez foi mesmo embora. Argumentaria antes que sempre foi estando presente, em figuras como Massive Attack, Portishead, Tricky ou Björk, que ainda hoje mantêm relevância e atividade, mas não só: foi aparecendo no cinema e influenciando constantemente a evolução de outros géneros.

Se Shawn Reynaldo estivesse por Portugal, Mafalda BS seria uma forte candidata a adicionar a esta lista: o seu Canto em Cantos absorve esta estética, com uma forte presença dos breaks lentos, mas une-se a uma expressão vocal mais própria do R&B, e a uma instrumentação algo jazzística, que é muito mais sentida ao vivo que no próprio EP. A presença de um saxofone no formato live facilita essa aproximação. Tomás Alvarenga, de OCENPSIEA, começa o concerto com uma melodia solta, mas de notas prolongadas e reverberadas. Mafalda vai ganhando o seu espaço em palco através do piano eléctrico e a sua voz surge tímida em consonância com as teclas.

O concerto em duo permite que se crie lugar para a improvisação e para a imprevisibilidade. Assim, ao longo da atuação, a artista apresentou o EP de estreia a solo, e criou várias pontes para novas músicas e jams. Uma lufada de ar mais jazzístico para o tom ébrio destas paisagens, que tinham como pano de fundo uma voz ecoada, teclas e pads. Gil Godinho ainda se juntou para formar um trio e tocar guitarra clássica em “NSN.MEV”.

Nas jams que separam os temas do último EP, vislumbramos nova música. Salta à vista uma performance numa Roland SP404, com uma voz samplada e recortada, lembrando que nesta trip nunca pode faltar algum hip hop (pun intended). Em momentos chegamos a ouvir riffs que lembram os primeiros trabalhos de BADBADNOTGOOD. No entanto, mesmo que a batida tenha estado muito presente no EP e nesta noite, há muito éter e ambient no concerto. Quando Mafalda canta sem palavras para ancorar as melodias, lembramo-nos que o inefável habita nesta música de leveza melancólica. Se há alguma coisa que pode unir esta amálgama estilística, esta é sem dúvida a melancolia. “Canto em Cantos”, o tema mais marcante e repetível do EP com o mesmo título, fecha o concerto de abertura da noite numa nota alta.



Se falamos de emoção e de melancolia como parte desta música, Niecy Blues é incontornável na conversa. A sua voz carrega, além de um controlo incrível, uma emotividade ímpar. A artista, “responsável pela escrita, produção e arranjos do projecto – a excepção é ‘The Architect’, produzida por T. Morris Wilson” (como explica a folha de sala do concerto), pinta paisagens mais etéreas, que tornam esta Exit Simulation menos exacta. Se tivéssemos de nos basear nas coordenadas desta “saída”, o destino final seria certamente múltiplo: cada um interpretará a subjectividade da mesma com a sua própria bússola.

No álbum de estreia de Niecy Blues, os instrumentais são de uma experimentação única. Há processamento de instrumentos até à exaustão. O que fica é uma camada enevoada, na qual sobrevoa a sua voz, entre loops, harmonizações e refrões, que bem podiam ser cantados ao ouvido pois nunca magoariam ninguém — acreditamos até bem mais no poder curativo que poderiam ter. Dá para ouvir Solange e até primórdios de serpentwithfeet nesta música. A espiritualidade, influenciada pela religião e pela igreja (presente no seu background) é sentida e bem-vinda. Se precisarmos de provas, teremos sempre “U Care”. A produção soa difusa por ser tão reverberada, mas é tão coesa, tão profundamente bem trabalhada, ao nível de grandes referências do ambient atual e do R&B mais alternativo.

A ZDB foi a última paragem de uma tour que foi feita de muita emoção para Niecy Blues. Uma guitarra aguardou por si no fundo do palco, mas a própria afirmou que não ia ser capaz de cantar a música que lhe estava destinada, por ser de profunda tristeza. Reforça esta melancolia que a assola, chegando a brincar na letra de “Messages from Above” quando canta “I’m not a cactus / I need a lot of watering”.

“The Architect”, com a sua batida possante e sincopada, deu mais energia ao concerto, e o público reagiu. Ao longo do tempo, a audiência esteve atenta e ressoou com esta estética que expressou espiritualidade tanto na voz como no carácter etéreo dos instrumentais. O ritmo, ora dado por batidas arrastadas, como por arpejos de baixo profundos, guiou até uma saída que só podia ser simulada: é difícil alguma vez sair de onde está reza nos deixou.


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