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Nicolas Jaar

Cenizas

Other People / 2020

Texto de Miguel Santos

Publicado a: 20/05/2020

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Neste período de recolhimento, o escapismo tornou-se absolutamente essencial ao equilíbrio mental e é muitas vezes nas artes que nos refugiamos para alcançar esse objectivo. Para aqueles que conseguem escapar aos ecrãs e às garras de um amante tresloucado de tigres, por exemplo, a música continua a ser um refúgio certeiro. Além de abafar o som do mundo e ambiente que nos rodeia permite-nos adaptá-la à nossa realidade. E nos tempos que correm, uma aposta certa de fuga é o feitiço sonoro conjurado por Nicolas Jaar.

O artista chileno-americano faz electrónica que mexe com o corpo e com a mente, dois elementos que todos temos — e que certamente já viram melhores dias. Ao longo da sua carreira, Jaar mostrou que a sua virtude está em conseguir conjugar o pensamento com a acção. É música electrónica sensorial, em que reflectir e dançar convivem em união ou separados. E se em 2017-2019 — álbum que Jaar lançou em Fevereiro deste ano sob o nome artístico Against All Logic — o mote era mais a dança, em Cenizas, o seu mais recente disco, a música surge de um desejo de sentir tudo, mostrada através de uma sonoridade mais ambiente e sombria. Mas, segundo o próprio, a escuridão que se ouve deve ser sentida como o início de um caminho para algo melhor, mostrando que o sucessor de Sirens aponta mais para a cabeça do que para os pés.

Nos primeiros momentos de “Vanish” conseguimos perceber porquê: as badaladas góticas que nos introduzem ao álbum não soam a instrumento de rave, nem a cripta de onde surgem seria um local adequado à dança. É uma escolha deliberada de Jaar para preparar o tom mais taciturno e conceptual deste projecto, tal e qual como a ausência de percussão ao longo da maioria da sua duração. A percussão ribombante que entra de forma decisiva nos últimos momentos da potente “Cenizas” serve não só como o clímax desta música mas também da tríade de temas que nos introduz ao álbum, escolhas que mostram o calculismo definido da arte de Jaar.

A batida tribal de “Mud” é outro dos momentos em que a percussão tenta destacar um momento importante. Depois do soundcheck abstracto de “Gocce”, o tom meditativo encerra a primeira parte. É banda sonora de um ritual com ayahuasca à mistura, um momento de viragem no álbum, um presságio de alguma mudança necessária e urgente (“A drunk man’s on the lead/ Skies and all bleed”). Mas nunca chegamos de facto ao plano astral de uma música que merecia uma conclusão mais explosiva. Em “Xerox”, Jaar retoma a meditação, desta vez auxiliada por teclas de blues através de um mantra Om distorcido e que se torna mais ambiente que voz. Mas não vai além de uma panóplia de texturas sonoras, como um quadro desinspirado do Jackson Pollock.

O encadeamento conceptual está presente um pouco por todo o álbum mas há momentos em que é difícil perceber a direcção. A cadência ordenada da tensão progressiva bem construída de “Menysid” ou a repetição fatalista e conclusiva de “Garden” contrasta com outros momentos mais experimentais do álbum como a improvisação áspera de “Agosto” ou a árida paisagem sónica de “Rubble”. O final volta a trazer alguma coesão à narrativa: na fenomenal “Faith Made of Silk” ouvimos um apelo, “Look around not ahead”, sob uma batida irrequieta e catártica. Nestas cinzas pouco se distingue e talvez seja esse o objectivo: uma amálgama de escuridão e de luz de (algumas) brasas teimosas que perscrutam pelo monte queimado.

Nicolas Jaar sempre conseguiu mostrar um aspecto mais oculto e sobrenatural nas suas explorações electrónicas, algo escondido e superior, recatado mas pronto a desafiar-nos à sua maneira. Consegue eficazmente conjugar o melhor de vários mundos em lançamentos aprazíveis e, mais do que isso, pertinentes.

“There have always been ghosts in the machine”, frase proferida por Dr. Alfred Lanning no filme I, Robot, vem à memória quando se pensa no trabalho de Jaar e é em Cenizas, o mais fantasmagórico dos seus trabalhos, que o artista se esforça mais para os encontrar.


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