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Fotografia: Filipa Aurélio
Publicado a: 17/08/2022

Tudo igual, mas tudo diferente.

NEOPOP’22: se estás a ler isto é porque fazes parte da resistência

Fotografia: Filipa Aurélio
Publicado a: 17/08/2022

Ao fim de dois anos silenciados por uma pandemia global, não houve força capaz de impedir que o Forte de Santiago da Barra voltasse a testemunhar um evento de qualidades únicas e particulares na história da cidade de Viana do Castelo, que alberga desde 2006 (na altura ainda era o Anti-Pop) a cultura rave como parte do seu próprio ADN. A 15ª do festival NEOPOP superou todas as expectativas e viu brotar dois palcos que reflectem o talento e inclusão de todos os artistas que escolheu receber. Sem ter que subir ao templo sagrado, foi na margem do Rio Lima que nos voltámos a encontrar e, para nossa maior surpresa, até um casamento aconteceu.

Marcado pela presença inebriante de um público desejoso de voltar às maratonas épicas de dança, o primeiro dia foi um pré-aquecimento para aquele que seria um fim-de-semana com as mais intensas batidas por minuto a ecoarem pela cidade. Ainda que em torno do recinto se ouvissem resquícios da romaria da Nossa Senhora d’Agonia, rapidamente se identificava uma multidão que corria (enquanto sorria de braços abertos) para a entrada da auto-proclamada Capital do Techno.

Apesar da apologia do festival sempre se ter manifestado numa programação que promove o mérito e o talento, em nenhuma edição anterior se sentiu da mesma forma que o pensamento também estivesse direcionado para a inclusão e a heterogeneidade da comunidade que, com o passar dos anos, encontrou desafios de crescimento e acabou por abraçar uma abertura de horizontes. De gosto refinado e bastante eclético, o NEOPOP preparou uma experiência consciente de todos os espectros sociais que temos vivido, e não há louvor maior do que o de termos testemunhado a evolução para um programa  tão detalhado e bem pensado.

O palco principal, também conhecido por NEO Stage, foi alvo de sucessivos live acts que encheram os ouvidos da forma mais idiossincrática que o festival poderia ter para oferecer. A peregrinação espacial começou logo no primeiro dia e foi comandada por Mogwaa, produtor conhecido e já apadrinhado por Peggy Gou que, antes da artista (mas calma que há mais pelo caminho), saudou-nos com uma apresentação do seu trabalho e, navegante da estética sonora mais dreamy da eletrónica, guiou o público por um dos momentos mais oníricos do festival. Mas a noite ainda estava a começar quando o entusiasmo manifestou-se com total evidência em Cobblestone Jazz que, já conhecidos pelas produções mais arriscadas dentro das variadas fusões, libertaram as correntes mais longas e incentivaram a que dançar fosse não só recomendável como praticamente irresistível. Sucesso garantido enquanto o público aguardava silenciosamente pela artista principal da noite. 

Foi quando Dea (DJ também editado pela Gudu Records), abriu caminho para o desfecho da primeira noite, que pouco tempo demorou até que o público em ênfase gritasse pelo nome de Peggy, intermitentemente, sem diminuir a intensidade. Acarinhada pelos mais diversos contextos musicais, o set de Peggy Gou foi uma subida e descida activa entre duas montanhas que bem conhecemos – a do techno e a do disco. Pelas palavras da própria artista, as suas escolhas musicais reflectem uma experiência verdadeira daquilo que mais facilmente poderia unir todo o público presente naquele momento e a verdade é que poucos (ou nenhuns) foram aqueles que não dançaram e gritaram por mais. 

Mas não se enganem, apesar do NEO Stage ter sido carregado pela energia mais intensa do público, a mesma se repartiu pelo palco secundário, também conhecido por ANTI Stage (referência àquele que era o primeiro nome do festival, há 15 anos). Foi exactamente neste mesmo momento que a hora de ponta criou trânsito para todos os que correram até à outra ponta do recinto para ouvir Freshkitos que, em família, encheram a plateia de admiradores e ravers nostálgicos prontos para celebrar os mais de 10 anos anos do festival.

A única coisa que não se viu, mas era absolutamente impossível de passar despercebida, era o pó que levantava do chão de cada vez que alguém saltava. A chuva foi quase como uma aparição que veio para benzer a capital do techno no primeiro dia e a lua cheia esteve vermelha porque era importante contrariar o frio. Mas isto são só detalhes e não condicionantes. Ninguém desistiu e os rostos foram-se sempre multiplicando até ao fim.



Era quinta-feira quando o público se preparava para constatar as mudanças de paradigma que têm acontecido nos clubs pelo mundo fora. Nunca pensámos num período tão curto de tempo, encontrar uma força feminina tão poderosa em palco. Aliás, até arriscamos dizer que na nossa experiência, o mais marcante de toda a 15ª edição do NEOPOP tenha passado precisamente por aí.

Embora tenha sido de destacar e recordar a performance de luz que KAS:ST nos trouxe em palco, com dimensões megalómanas e encantadoramente únicas, o caminho ficou traçado pelos nomes femininos que deram energia à plateia, a ponto de não poderem passar despercebidas. 

Tal se viria a comprovar através do alinhamento principal do NEO Stage, onde constavam Honey Dijon, Amelie Lens e Nina Kraviz. Embora com perfis bastante distintos dentro da música de dança, a força unificadora do trabalho já longínquo das três DJs manifestou-se numa só rajada de sets que veio para ficar na nossa memória: Dijon pela própria resistência na qual manifesta a perpetuação do house como uma voz que sobreviverá a todas as fases e tendências actuais, Lens por ter vencido todas as dificuldades pessoais para estar no palco firme e pronta para levantar voo e Kraviz que, já pela manhã adentro, rasgou a alvorada com a vontade de fazer dançar que já lhe conhecemos. 

Do lado do ANTI Stage, também a “voz” se ouviu feminina com a Ana Pacheco a iniciar o serão e Violet em b2b com Photonz para uma alienação através do acid house em ponto de partida para uma expansão corporal. Mais no fim, o grito mais alto foi de Courtesy que, a trepar as batidas do hyperpop, nos mostrou outras dimensões mais burlescas desta tendência musical mais recente. Ninguém ficou parado mais de dois minutos e, se parou nem que tenha sido por breves segundos, foi por apenas não estar pronto para o que tinha acabado de acontecer.



A fim de curar a desidratação que se podia começar a sentir após o começo do festival, o recinto tinha disponíveis cinco pontos de abastecimento de água potável gratuitos para que cada pessoa conseguisse superar as exigências de quatro dias de intensos movimentos físicos – e no terceiro dia já se sentia o entusiasmo a superar expectativas. Foi na sexta-feira que os bilhetes esgotaram e a intensidade foi difícil de medir. Fácil será de entender quando vos dizemos que Hector Oaks tocou no Anti Stage e fez suar cada poro de cada corpo que testemunhou a elevação mais eficaz de clubbing mais underground como se não houvesse mesmo amanhã. Revelação do terceiro dia do festival, o DJ é mestre na arte da seleção da música da vanguarda . A plateia não parou, o staff não parou, ninguém parou. Havia ventoinhas que se moviam sozinhas, sem eletricidade, apenas fluxo de vento causado pelo movimento de todas as pessoas. Esta constante foi transversal aos dois palcos – há quem diga que viu vibrar a água do Rio Lima com as batidas mais rápidas do festival inteiro. Mesmo em frente à estátua que caracteriza o festival, Anfisa Letyago estreou-se nos palcos vianenses, ao contrário de Paula Temple e Richie Hawtin, que voltaram ao festival com sorrisos rasgados e uma enorme saudade. 



O último dia aproximava-se quando algumas dificuldades apareceram. Não é surpresa que as dinâmicas de voos e horários nem sempre funcionam dentro do previsto, e que uma das piores possibilidades é ter que alterar os horários em cima do acontecimento. 

Os alarmes ainda não tinham tocado para a abertura do recinto quando nas redes sociais já corria o anúncio de algumas alterações na programação diária. A mais flagrante era que Jeff Mills estaria a actuar afinal no palco ANTI Stage, num horário mais tarde do que o previsto. Apesar de isto não colocar em causa as confirmações do último dia do NEOPOP, os murmurinhos correram as redes sociais e a alteração que causou mais tensão foi a do NEO Stage onde a organização do festival colocava durante duas horas e meia o nome NEOPOP Soundsystem. Curiosos pelo que viria a ser este nome, algumas pessoas duvidaram da capacidade de estar ao nível do anteriormente previsto. Mas quem já frequenta o festival há alguns anos sabe que isto não é um improviso, mas sim uma decisão que a organização todos os anos costuma tomar. Não obstante, foi de coração cheio que os DJ s que fazem parte da organização do festival subiram ao palco para prestar homenagem a Magazino, DJ que nos deixou para navegar rumo a outro universo no passado mês de Dezembro. As lágrimas sentiam-se, mas ninguém baixou os braços. Para muitos, este terá sido dos momentos mais memoráveis do festival inteiro, que deixará rasto para a eternidade na memória do trabalho de todos os artistas que fizeram parte da família NEOPOP

Superadas as decisões de última hora, todo o público se manteve firme para terminar a semana em grande. Incapazes de agir em silêncio perante todo o contexto político actual, foi a encerrar o palco secundário que Daria ergueu a bandeira da Ucrânia, uma parte da sua identidade e  uma mensagem política presente. Embora os registos fotográficos quase não tenham acompanhado este momento, a mensagem ficou entregue, mesmo que não tenha existido prolongamento nas palavras.

Muito aconteceu durante os quatro dias de festival e a verdade é que todos eles acabaram por reflectir aquilo que se tem vindo a sentir nos últimos anos. Depois de toda a pressão e exigências profiláticas que foram sendo inseridas  na vida de cada um de nós, é surpreendente ver vencer a nossa vontade de dançar e de continuar presente em momentos como este.

A edição do NEOPOP de 2022 reflectirá para sempre a resistência que existe e que, com consciência e ética, fará da música de dança e dos ravers elementos indispensáveis na cultura e nos movimentos sociais de libertação e emancipação. 


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