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Fotografia: Hugo Silva / Red Bull
Publicado a: 11/08/2019

Entre a experimentação e a gratificação imediatista.

NEOPOP’19 – Dia 4: o desnorte é o design, o techno é a pop

Fotografia: Hugo Silva / Red Bull
Publicado a: 11/08/2019

Há 13 anos, a electrónica ganhava um festival novo. A estátua da mulher vianesa plantada no meio do Forte Santiago da Barra passou, por dois dias, a olhar pelo Anti-Pop. Terá feito muito sentido, quando o estilo (por definição) mais consumido ainda estava no armário (e a divisão nacional em completa remissão), mais interessante de se ouvir à socapa e gozar em público.

A mudança de prefixo indica que o NEOPOP sabe proteger o seu nicho, sem ter de provocar danos colaterais. Amar um hemisfério, respeitar o outro. Simples. Ao contrário, talvez haja coisas a aprender no balanço, e transpor um para o outro: tentar amar o techno como se ama a pop sugere um falhanço titânico, e não menos porque vivemos uma era do género como rótulo limitante. A pop é um conceito de pouco rigor, permeável, embora o techno ainda inspire uma ideia mais ou menos clara do que é — e é nessa segurança que se baseia este festival, onde as pessoas o usam literalmente como camisola (e onde se pode questionar se, para os portadores de bilhete, interessa realmente quem está no palco, se é um holograma ou um manequim controlado remotamente…) Poderemos desmatar novos territórios. Se quisermos ver isto à lupa, o neo (novo) do nome vem modificar o pop que, numa versão anterior, era denegrido. Ou incluir, na sua forma peculiar, um som que era banido.

Na noite final de NEOPOP, tentamos aplicar este método à curadoria Red Bull, mas, sejamos francos, esta programação mede-se por uma bitola muito diferente. O Teatro Sá de Miranda volta a acolher sob a sua abóbada, no resguardo do veludo vermelho, um par de propostas pouco ortodoxas; antes de começar, ouve-se Carl Craig, da escola techno de Detroit. Na escala da ortodoxia, aliás, as escolhas de sábado estão muito abaixo das meditações audiovisuais de SURTO e Nonotak. Com Aïsha Devi, desaparecem as esperanças de ver esta selecção de artistas descer até ao Forte; com a união da electrónica inventiva dos ingleses Plaid (antigos colaboradores de Björk) à gargantuesca escultura sonora de Felix’s Machines, aniquilam-se todos os resquícios dessa esperança risível. No palco principal, imagine-se, o espectáculo de uma assustadora máquina vertical a mecanizar e combinar instrumentos, sendo bombardeada com cores e formas; os artistas atrás, na régie. Sejamos francos: coisas mais estranhas já aconteceram, como a anterior.

Voltemos a Aïsha Devi, artista suíça cujas grandes âncoras Holly Dicker da Resident Advisor tentou decalcar há dois anos: “frequências, meditação, cânticos e visuais espacialmente disruptivos”. A citação não está nem um pouco datada. O que não vale é chamar-lhes âncoras; se o forem, são escorregadias e sem grande utilidade. É esse o busílis da sua performance, em que o desnorte é mesmo o design.

Os visuais do fotógrafo Emile Barret guiam-nos por arquitectura decadente, parques de estacionamento, natureza morta, ruas clássicas desfiguradas virtualmente, renderizadas em algo maior que a vida, de cores saturadas e invertidas. Por vezes, surge como cursor uma relíquia — um dos artefactos que se viram no início, por trás de Devi, frequentemente vista no vídeo a explorar grutas e a participar em aparentes rituais. É como ver alguém a jogar uma versão altamente Y2K e espiritual de Tomb Raider, cujo director musical não conseguiu os direitos para Vulnicura de Björk.

É demasiado de tudo. Um enjoo de strobes; um sem-fim de simbologia sagrada (na fronteira da paródia, devido à descontextualização) em alto relevo, da música ominosa que os acompanha. Todavia, a viagem principal é pela riqueza soprano de Devi. A sua voz parece querer, em simultâneo, expiar os pecados da humanidade e condená-la ao fogo eterno. Consegue perturbar-nos profundamente. Raras vezes Devi permite à sua voz que brilhe sem estar compactada em camadas de insalubridade sónica; faz sentido dispensar a maquilhagem, até porque a beleza irrealista (na pop e periferias) deixou de gerar dividendos. Esta não é a preocupação maior do NEOPOP, mas vai ser curioso perceber se esta electrónica em êxtase, esteticamente feia e lacerante, institui um paradigma com longevidade.

No que depender de Jeff Mills, o grande nome da noite, já em cena no Palco NEO, a sua obra não deverá sentir os ventos da mudança. É instantaneamente óbvio que o veterano do techno não veio para atender à voracidade dos festivaleiros, que podia ser satisfeita nas anónimas ondas de Surgeon, na nossa triste despedida do palco ANTI. Não é um evangelista. Tem as credenciais suficientes para fazer o que quer: afinal, trata-se do feiticeiro de Detroit, fundador da Underground Resistance (colectivo da zona que se batia pela mudança política, incluindo a dignificação da juventude afro-americana, sob o signo reivindicativo dos Black Panthers).

Mills ergue-se sobre solo conhecido, respeitando o corolário da repetição, e preocupa-se com cavar mais fundo, fazer filigrana. Consegue encontrar os grooves que são um achado neste festival, longos, ventilados, intrincados, assumidamente cerebral e, ainda assim, rico na sua simplicidade. Bombos desfilam, palmas pontuam o quadro, sub-graves amaciam-no; dos retalhos de tecido que o techno tem como base, Mills faz um enxoval. E sendo exploratório, levando o seu tempo, é aplaudido incessantemente.

Demasiadas horas passadas com os ritmos lancinantes já criam novas lógicas dentro de nós. Num certame destinado aos devotos do género, o techno propicia-lhes o conforto que a pop tenta dar ao máximo de pessoas possível, isso é óbvio. Mas muito do que ouvimos é como uma pop grotesca — se entendermos pop como música de gratificação, em torno de checkpointsacessíveis —, uma pop levada às últimas consequências. Uma definição que não está longe dos belíssimos Tale of Us e os seus hinos melodicamente agridoces, cujos sintetizadores vão beber ao eurodance, a Giorgio Moroder e a Fatima Yamaha, de excitação melancólica. São a nossa despedida, às cinco da manhã, a uma hora de pensamento invasivo…

Uma canção pop oferece um circuito ergonómico e elegante, iluminado por faróis (refrões e hooks) para se agarrarem à membrana auditiva. O techno segue, por norma, um de dois caminhos: ou vai desbravando pela experimentação, encontrando-se em choques e ondas, ou liga o turbo e nos sobrecarrega com o que (supostamente) queremos. É gratificação imediatista, violenta, repetida. E quando tudo acaba? A pop vive em melodias e pormenores; o techno deixa o vestígio de um zumbido. Uma comichão que, sendo atacada, só cresce. Para quem esse ardor é sempiterno, o NEOPOP volta para o ano.


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