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Fotografia: Hugo Silva / Red Bull
Publicado a: 10/08/2019

O Teatro Sá de Miranda abriu portas para novos mundos dentro da programação do evento minhoto.

NEOPOP’19 – Dia 3: o horário nobre é de manhã, a sala nobre é da invenção

Fotografia: Hugo Silva / Red Bull
Publicado a: 10/08/2019

Good evening. (…) We would like to inform you the show begins in 5 minutes“. O estereótipo que se podia construir de um festival de techno, como são todos os estereótipos, é fácil: bichos carpinteiros, substâncias, algum abandono de rigor para abraçar coisas mais frenéticas. Contra tudo e contra todos, o NEOPOP é controlo (quase) total sem castrar a possibilidade de perdição lá dentro, e — esta é a surpresa mais observável — exerce-o com pontualidade imaculada. Nesse jogo, o festival de Viana do Castelo faz xeque-mate a todos os concorrentes. Quem está em palco dá o último toque, agradece, desliza com as roldanas da mesa onde pousou o material, e é substituído pela peça seguinte. O relato desta madrugada no recinto podia ser semelhante, mas aceitámos um convite especial.

Faltava algo na frase inicial: “Welcome to Teatro Sá de Miranda”. Ao terceiro dia de NEOPOP, em vez da redoma escura à frente da noite cerrada, vimos uma abóbada em trompe-l’oeil, um candelabro, paredes em prateado fosco, as curvas rendilhadas dos balcões. “Two minutes ‘til showtime. Please take your seats“. Tudo a postos e costura a rigor para receber Carlos Maria Trindade e Switchdance.

Teoricamente, é mais uma junção artística do jeito imprevisível que se quer nestes eventos — dos mesmos produtores do Red Bull Culture Clash. Previsivelmente, o casamento das teclas do eterno Herói do Mar com o baú analógico a que se entrega o produtor “de Lisboa via Goa” não é uma fachada com vista a benefícios fiscais. Há amor criativo a promanar destas duas faces que não trocam olhares, cada uma na sua suave coreografia de trás para a frente, em sinal de apreciação individual, mútua e experimental.

O Teatro Sá de Miranda é o receptáculo para uma colisão de mundos que não sabemos dizer inventiva ou apenas de montagem exímia. Seja em que registo se escreva, o pulsar de SURTO, assim se apelidam, estremece o veludo dos bancos e a madeira do chão, enquanto nos liberta em movimento ascendente os floreados quase pianíssimos. Não fazem da música monólogo. Completam-na com a performance da dançarina Marta Viana sobreposta às projecções visuais de João Botelho, que narram o sol de Outono a iluminar uma natureza que resplandece e imediatamente se torna desértica — como a música, dir-se-ia numa analogia gratuita. Máscaras como motivo recorrente e ambiguidade nos fluxos da dançarina; de um início em que lhe parece ser administrada à força memórias tingidas a sépia, adquire controlo e prazer, até os devolver à psicose final. É bom ter esta proposta, tal como é fechar os olhos e deixar que as tonalidades pintem a história.

Ao contrário do ano passado, o techno não foi ao teatro; ficou na fortaleza que é o seu lar durante quatro dias. Chegados ao terceiro, o que mais há para jantar? A sexta-feira presume-se o primeiro grande dia — quer dizer, vendo como Amelie Lens limpou a noite de quinta, a celebração já é mais que oficial, e ainda assim, é estranho ver que, à meia-noite, o NEOPOP ainda não tem cada cantinho seu aos barrotes. O ribombar paranóico de Mashkov, há meia-hora no Anti, sofreu uma razia total, contando-se 21 pessoas (sem baristas e seguranças, também não contando o unicórnio, o dinossauro e o Minion em amena cavaqueira). Mais gente decidiu entrar na simples cozinha dos berlinenses Pan-Pot — que mostram alguma contenção  e sabem fazer evoluir o seu set, inicialmente exasperante — mas ainda sobra espaço.

Sem desprimor para a expedição orgulhosamente não refinada de Mashkov ou a brutalidade anónima do duo de Berlim, parece que a curiosidade evadiu o cenário principal. Ainda se pode saborear a calistenia patrocinada por Colin Benders (que se poderia dizer, só pelo cabelo, Howard Stern do techno) e que aprimora uma paleta banal de sintetizadores, claro. Afinal, algo mais curioso foi ao teatro nesta noite. Foi consignada à sala nobre algo com a mesma força bruta, examinado com mais minúcia: estar sentado num concerto deste tipo, se não é um acto político, é uma pequena revolução na absorção de música hipoteticamente imediata.

Switchdance e Carlos Maria Trindade deram-se a algo mais rico e ondulante, que poderia ser (mais) desconcertante em formato maior, demasiado incerto para talvez até o palco Anti. Esta encomenda não dava garantias de ser digerível como o público da madrugada o deseja, trémulo e incauto. Ao contrário, o produto seguinte na linha não é uma novidade. Importou-se dos Nonotak — artista visual francesa Noemi Schipfer e o arquitecto e músico japonês Takami Nakamoto — um teste da relação da música com a luz, um assalto visual. O palco recebe quatro telas montadas na perpendicular, manipulando perspectivas e luzes oblíquas, sem se alhear da potência sonora. Não foi banger atrás de banger, o que não faz cair por terra as suas chances de se ter dado bem no palco principal, a dosear a experimentação com o ranger de ossos necessário para se qualificar. Uma pedrada no charco que seria bem-vinda, agora que, no Forte, Pot-Pan deixaram de conhecer mais que os bombos e eletrocussão.

Quando o experienciado espanhol Paco Osuna entra em cena, a troca (tão suave quanto mecanicamente possível) chega a ser engraçada. Serve-nos o kickdrum destemperado de sempre, o som nu, sem mais, e leva a (agora sim) multidão a um paroxismo geral; muito depois, virá mostrar o porquê de andar há 20 anos nisto, com uma variação maturada do technoclássico. Consegue capturar o mesmo estado de graça que Amelie Lens há exactamente um dia, nem mais um minuto, mas com ingredientes que os polarizam: sequenciamento como não se ouvirá mais nesta noite; energia maquinal em carne viva.

Mais uma troca, as delícias do público continuam a ser feitas, com o despudorado Chris Liebing em piloto automático a tomar conta do palco Neo, onde Rebekah, produtora de Birmingham, daria murros mais guturais de seguida; o português Vil, no Anti, parece rodar nos pratos os mecanismos internos de uma bomba, e Matrixxman irá renovar a guerra dos bombos. (Porque um cliché obrigatório numa crónica musical é descrever algo de forma absolutamente arbitrária e sem significado fora da cabeça do autor.) Do nada, o amanhecer já começou; demasiadas nuvens encobrem o sol, que nunca chega a aparecer. Só por isso não diremos que, debaixo do sol, nada novo.


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