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Publicado a: 30/09/2018

Neneh Cherry no Waves Vienna: o intemporal poder da classe

Publicado a: 30/09/2018

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTOS] Alexander Galler e Hannah Toegel

A cabeça de cartaz do festival de Showcases Wave, em Viena, foi Neneh Cherry, de regresso em 2018 com o novíssimo álbum Broken Politics que tem produção de Four Tet.

O sucessor de Blank Project, trabalho de 2012 lançado na Smalltown Supersound que contou também com Kieran Hebden na cadeira do produtor, tem sido descrito por Cherry em entrevistas como um trabalho mais “reflexivo e silencioso” do que o predecessor e essa ideia foi realmente central na apresentação que decorreu na sala nobre do espaço WUK, o hub deste festival vienense, perante algumas centenas de pessoas.

O Waves integra, tal como o holandês Eurosonic ou o português Westway Lab, uma rede europeia de festivais pensados para apresentar perante novos mercados projectos emergentes e por vezes também alguns já estabelecidos. Foi o que aconteceu nesta edição, com Portugal a merecer honras de país convidado, facto que se traduziu numa generosa embaixada artística comandada pela plataforma Why Portugal e que integrou nomes como Surma, Rodrigo Leão, Holy Nothing ou :papercutz, entre outros.

Num descontraído ambiente num centro cultural de arquitectura industrial semelhante à da lisboeta LX Factory – embora de escala bem mais reduzida –, um ambicioso programa de conferências, workshops, discussões e concertos procurou, com pleno sucesso, ligar a indústria austríaca ao que está a acontecer em diversos outros países europeus.

 



De certa maneira, a presença de Neneh Cherry faz pleno sentido num evento desta natureza — um de muitos pensados pelas diferentes organizações e plataformas europeias, quase sempre dependentes de algum tipo de apoio estatal ou europeu e claramente destinados a fomentar uma saudável cooperação e interacção entre os países que integram o projecto de continuo aperfeiçoamento deste continente em que nos encontramos.

Nascida e educada na Suécia, mas com ampla visão de mundo decorrente de circunstâncias familiares que a levaram a viver nos Estados Unidos (foi co-educada pelo padrasto Don Cherry, celebrado trompetista de jazz e pedagogo norte-americano), Neneh fez carreira a partir de Inglaterra, viveu em Espanha e abraçou na sua música influências da Jamaica ou da música de África, assumindo-se como uma verdadeira cidadã do mundo antes de regressar à Suécia.

Em palco, Neneh Cherry faz alusão a essa atenção panorâmica que sempre devotou ao mundo quando explica, antes de se atirar a um dos temas do novo álbum — que, aliás, alimentou a parte de leão da contida apresentação de pouco mais de uma hora —, que foram as notícias de uma manifestação na Polónia a favor do direito das mulheres poderem abortar, com toda a gente a vestir-se de preto em sinal de protesto para com a resistência à aprovação de novas leis, que a inspirou no momento da escrita, dimensão do seu trabalho que é dividida com o seu marido Cameron McVey que também integra a sua banda.

O lendário compositor e produtor que trabalhou com Massive Attack, Portishead ou Soul II Soul é apenas um de cinco (ocasionalmente seis…) músicos em palco, dividindo-se entre o seu computador e o microfone que usa para secundar Neneh. Há mais um homem com computador, mesa de mistura e efeitos ao seu lado e um terceiro que além do computador e de teclados se ocupa também de pontuais percussões. A banda completa-se com duas mulheres: uma teclista/vibrafonista e outra baixista/harpista. Todos se dividem em multi-tarefas no palco, inclusivamente o roadie oriental com ar de miúdo que num par de temas ajuda efusivamente ao som final tocando percussões ou baixo.

 



Neneh fez questão de frisar logo ao início que a quase totalidade do alinhamento seria preenchida por temas do novo álbum e mesmo antes do encore confessou ser muito pouco dada a nostalgia, um disclaimer que julgou necessário fazer já que resumiu os seus notáveis argumentos de passado aos dois temas finais: a sua versão para o clássico “I’ve Got You Under My Skin”, original de Cole Porter a que Frank Sinatra tão famosamente deu voz e com que Cherry contribuiu para o primeiro volume da série Red Hot + Blue, e ainda “Manchild”, dois ecos do arranque da sua carreira que a cantora acedeu interpretar porque apesar de não ser nostálgica dá valor ”à história”. E a sua, de facto, é digna de nota.

O registo nestes últimos temas, os únicos em que ouvimos Neneh usar os seus dotes clássicos de MC, foi bem diferente do usado no restante concerto, com a artista a soltar-se um pouco mais e a mostrar que o seu flow, embora datado e de recorte clássico, continua plenamente seguro e afiado.

No resto do concerto — que se percebeu ser o resultado de trabalho recente, com afinações a serem ainda necessárias, sobretudo até por parte da própria Neneh que pontualmente pareceu esquecer-se de algumas das letras… — Cherry deixou a sua voz envolver-se num manto de reverb e eco, bem harmonizado com o ambiente dubby que caracterizou toda a apresentação. Tons jazzy, apontamentos exóticos nas melodias e velocidades rítmicas mais vagarosas são outras das características das canções que por vezes parecem fazer-se de diferentes partes, o que leva a pensar se Four Tet não terá sido em Broken Politics um pouco Teo Macero, tendo eventualmente editado e colado elementos dispersos em temas finais… a confirmar, ou não, quando o quinto álbum de Neneh Cherry finalmente nos chegar às mãos.

Certo, certo é que Neneh continua a ser uma voz política e actuante. Quando alguém do público gritou, não sem boas razões para isso, “we love you, Neneh”, ela retribuiu e confessou “e precisamos todos tanto de amor neste momento, não é verdade?”, desabafo certamente justificado pelos acontecimentos políticos recentes nos Estados Unidos e Brasil (inquérito do senado a Brett Kavanaugh pré-confirmação para o supremo norte-americano, mesmo tendo em conta as acusações sérias e não formalmente investigadas que lhe foram dirigidas por mulheres como Christine Blasey Ford; progressão assustadora de Bolsonaro na corrida à presidência no Brasil).

Mais à frente, garantiu “melhor morrer por uma causa nobre do que viver e morrer como escravo”. “Soldiers” foi depois o tema final de uma apresentação de pouco mais de uma hora que soube a pouco. “That’s it… kind of…”, rematou, certamente aludindo ao facto de o espectáculo carecer ainda de rodagem. Haverá digressão europeia mais ampla em 2019 e não me espantaria se a encontrássemos por cá num dos nossos cartazes mais aventureiros (Nos Primavera Sound? Super Bock Super Rock?). Fica o alerta. Venha de lá o disco então que a combinação Cherry/McVey + Four Tet costuma render belíssimos momentos.

 


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