Nduduzo Makhathini estreou-se ontem em Portugal com um memorável concerto no Auditório de Espinho – Academia. Acompanhado por Dalisu Ndlazi no contrabaixo e por Lukmil Pérez na bateria, o pianista sul-africano, que é também professor universitário e investigador, assinou, perante uma atenta e praticamente esgotada sala, uma autêntica aula de poética reflexão sobre a necessidade do esvaziamento, a procura da pertença e a ligação ao cosmos.
A atenção com que as pessoas seguiram as duas longas passagens discursivas do pianista é confirmação absoluta da sua funda eloquência, por um lado, mas também demonstração clara de como hoje — sobretudo hoje — todos e todas partilhamos de uma dramática sede — sede de empatia, de compreensão, de aceitação da diferença. Há, claro (e infelizmente), quem opte por não saciar essa sede, quem prefira definhar enquanto escuta falsos profetas acreditando que esse é o caminho, mas, na música com que nos presenteia, Makhathini propõe uma alternativa, um outro modo de pensar e sentir, um outro caminho, mais simples, mais real: o da música como superior manifestação de humanidade. Pode parecer estranho, mas nos dias que correm tal proposta é rara e por isso mesmo profundamente radical. Perdemo-nos quando nos esquecemos do que somos, de quem somos. E o que a música de Nduduzo Makhathini tem de mais abundante é o precioso lastro da memória, precisamente a primeira coisa que os falsos profetas abandonam e encorajam quem neles acredita a abandonar também. Quando toca, Nduduzo conta histórias ancestrais e de um futuro de que ousa lembrar-se. Coisa incrível, obviamente.
O sábio James Brown dizia que todos os músicos da sua orquestra tocavam tambores, incluindo o pianista, o guitarrista, o baixista, os sopros… No trio de Nduduzo Makhathini, todos os músicos tocam tambores, de facto, incluindo o próprio pianista e o contrabaixista, para lá do homem que se senta à bateria, naturalmente. Mas, e isso é que é notável, todos são eles mesmos uma orquestra. O caso de Dalisu Ndlazi é especialmente revelador dessa dupla condição: durante boa parte do concerto, o contrabaixista soa de facto como um percussionista, retirando do seu instrumento acentuações pertinentes para os polirritmos conjurados pelos seus companheiros, mas há outros momentos em que o enleio harmónico estabelecido com o piano de Makhathini quase remete para o papel de uma inteira secção de cordas numa orquestra. O inverso é igualmente verdade no caso de Nduduzo: no seu pianismo registam-se tangentes ao universo de Abdullah Ibrahim, sobretudo nos seus mais pungentes arremedos melódicos, mas o pianista também toca tambor, usando repetidamente a mão direita e as teclas do espectro mais agudo como uma espécie de talking drum com que vai sinalizando mudanças aos seus companheiros. E Lukmil é um poço de infinita contenção e subtileza, dono de um toque tão suave como a mais leve das brisas.
Apesar de o mais recente álbum de Makhathini, o extraordinário uNomkhubulwane editado o ano passado pela Blue Note, ser a principal fonte dos temas tocados ontem, a verdade é que mais do que de uma revisitação do seu próprio reportório, o concerto de Espinho fez-se de uma constante reinvenção dos temas, de uma permanente busca nos labirintos da sua própria memória. Tocar, disse-nos ontem Nduduzo Makhathini, é esvaziar-se, deitar para fora aquilo que se guarda, tudo o que se viveu. E nesse sentido, o músico que a isso se propõe é o mais generoso dos seres. Tudo desagua no momento, portanto: a música clássica estudada na escola, o arrebatamento espiritual descoberto no jazz de Coltrane, as melodias tradicionais escutadas na infância na casa dos avós e algo ainda mais remoto que desponta quando de repente se estabelece sintonia com o cosmos. Nduduzo fala de ser um canal, um veio de transmissão e até dá o exemplo de um concerto na Hungria em que no final gente do público lhe agradeceu por ter tocado uma melodia tradicional daquele país, algo que convenceu o músico sul-africano de que, de facto, há um depósito universal de memórias que todos reconhecemos como nossas. Talvez isso ajude a explicar porque é que num dos mais comoventes temas da noite, Makhathini tenha desenhado uma melodia que não soaria estranha num disco de Amália Rodrigues.
Esta estreia de Nduduzo Makhathini no nosso país foi incrível. Não deverá passar muito tempo até que o possamos voltar a aplaudir por cá. E quem sabe até se não se cruzará até com alguma orquestra local. Mais do que um desejo, talvez seja apenas a manifestação de uma memória do futuro. Que venha depressa.