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Fotografia: Vera Marmelo - Gulbenkian Música
Publicado a: 07/08/2022

Da sarjeta ao céu, a distância é curta.

Nate Wooley’s Seven Storey Mountain VI e Pedro Carneiro & Rodrigo Pinheiro no Jazz em Agosto 2022: perdidos em Querelle

Fotografia: Vera Marmelo - Gulbenkian Música
Publicado a: 07/08/2022

Não tinha nada na mão quando caiu morto” (Turva Língua — NU NO). Não tínhamos nada quando caímos mortos. Apalpar uma sarjeta onde desfalecer e só numa ínfima esperança um lancil para acomodar cabeça. Morre-se e morre-se muitas vezes. Não é escolha é abraçar a fatalidade. Para dar algum sentido há que fazer uns quantos piretes, sem nunca arriscar navalhada, ao buraco negro. Repetimos e recordamos o que ouvimos minutos antes, nas vozes vindas de cima do Coro Gulbenkian — ou seriam nossas? – “I’m not afraid of you”, com calma primeiro e em auto-convencimento de seguida — “I’m not afraid of you”, “I’m not afraid of you”, “I’m not afraid of you”. Prova de sobrevivência, de existência a que assustadoramente damos o nome de realidade. Escapatória – será possível? – para o desmoronamento do subconsciente após o concerto de ‘Nate Wooley’s Seven Storey Mountain VI’.

A solenidade é máxima. Não é assim em todos os cerimoniais sacrificiais? O grande auditório praticamente esgotado, as cortinas abertas a deixar ver o jardim — para quando o de papoilas? — as três baterias de Chris Corsano, Teun Verbruggen, Ryan Sawyer num plano superior. Os dois órgãos Rhodes de Håvard Wiik e Rodrigo Pinheiro no plano do palco, frente a frente. No meio, Susan Alcorn (guitarra e pedais), Julian Deprez (guitarra eléctrica), Ava Mendoza (guitarra eléctrica) — e que bem neste registo em comparação com o dia anterior –, Samara Lubelski (violino), C. Spencer Yeh (violino) e no vórtice e numa condução sublime quanto invisível – a mão de Deus? — Nate Wooley (trompete). As baterias num registo raso, mas rico, nada enfadonho. Os dois órgãos em diálogo e drone. Temperar. Tudo nos convida à famosa metáfora da viagem. Tranquilo. Tranquilo – “Deus os cria, eles se juntam”. Há poucas inevitabilidades, esta é uma delas. Estamos, porque queremos. Ouvimos com atenção. É mantra sem pulseira, sem barragem e muito menos sem a ilusão de futuro brilhante e sem escapismo – MUAHAHAHA!. O futuro edificou-se há muitos milénios – “though Eve was made from Adam’s rib”. Queremos sair dele? Não podemos! E o mantra acompanha-nos. Trompete, baterias, órgãos e cordas lá longe. A bonança antecede a tempestade. Sempre foi. Perguntai aos soldados.

Julian Deprez, discreto até ao momento em que espanca (não há pecado na expressão) a guitarra. Cordas no limite e madeira triturada. Damo-nos conta. A catedral é vitral e campa. Vitral e campa. Ascensão e queda, queda, queda. Reprime-nos a frustração. Mas porquê? Somos pecadores. E qual é o mal? Deleitamo-nos com um som irrepreensível e daí? Mais facilmente no escuro. E vamos. Cada um com o que pode. A construção da história é fodida. A ideia de um momento inicial só o damos a Pasolini e a Nat Wooley. Caramba música é isto. Que se entretenham com a multidisciplinaridade e critérios da UE. Sigla amorfa. Queremos morrer. Queremos ir a Brest – queremos ter em nós os medos e no ouvido a forca. Estamos na primeira comunhão e no altar. Sacrifiquemos o cordeiro. A MÚSICA. Ouvimos. Na tacanhez relutante da pós-modernidade seremos sempre uni disciplinares. É MÚSICA. No marranço para encontrar novas estruturas, outras dimensões. És ventríloquo descontrolado. Não falas, só nos recalcamentos. Álcool em trago. Ou de ópio, porque a noite é feita para os amantes. És Julie Christie. Há um carácter inicial e iniciático. Causa estranheza. Mas, claro, causa – In Gloria. Santo Spiritu – nem que isso esteja na ponta de um cachimbo. 

No fim aplaudimos de pé. Há uma dose de masoquismo que nunca devemos descurar. Todos queremos morrer. Ou pelo menos tactear a morte. Riscar o chão ou apontar ao céu. Estamos aí. Da sarjeta ao firmamento a distância é curta.



A cortina púrpura fechada. A acústica é fundamental. MÚSICA. O piano e as marimbas a desenharem dois lados de um triângulo aberto. Num dos vértices Rodrigo Pinheiro, no outro Pedro Carneiro e, no que se abre, a plateia. Excepcionalmente animada e entusiasta, alguns com t-shirts da JOP (Jovem Orquestra Portuguesa), a remeter para uma ideia incessantemente recorrente e quase nunca concretizada — o de retirar o carácter demasiado formal do espaço e a sacralização que se faz dele. Os alunos a retribuírem o muito que Pedro Carneiro, enquanto director artístico, lhes deu, não só em termos musicais, mas, estamos certos, a alegria de procurar na música a integridade enquanto pessoas. Este contentamento em relação ao que se faz é tão vincado em Carneiro, que já não constitui surpresa a forma simultaneamente leve e hiperconcentrada com que aborda o instrumento. Recordando somente os concertos dos últimos anos, OUT.FEST, mesmo com alguns percalços pelo meio, e o final do Rescaldo 2022, em que as crianças procuram nas marimbas o encore sonhado para o final do festival.

A colaboração entre Pedro Carneiro e Ricardo Pinheiro pertence ao campo da inevitabilidade. Lembrem-se “Deus os cria, eles se juntam”, em disco Kinetic Études (Phonogram, 2021) e em concertos anteriores na SMUP e na Orquestra de Câmara Portuguesa (Algés), por exemplo. Diálogo que se faz de escuta, não deveriam ser todos assim? Onde o vazio é silêncio-silêncio e o seu preenchimento feito com assinalável mestria e cuidado, seja pelas notas do piano de uma imaculada clareza ou pela forma assombrosa como Carneiro usa toda o atrevimento sonoro que lhe confere aquele gigante Scolopendridae. Uma divisão em temas, mas que definem um verdadeiro contínuo. A ideia, de repetição, de escuta e resposta (lá está, diálogo), de uma luminosidade ao alcance dos eleitos. Se fosse só mestria técnica Joe Satriani tocaria todo e qualquer instrumento.

Da sarjeta ao firmamento a distância é curta e quando te fizerem a pergunta – “Não fazes música?” Tudo se torna mais claro – “Nunca! Jamais matar o que amamos!” MÚSICA.


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